domingo, 27 de novembro de 2016

A SOLIDÃO DE LÚCIO

Lúcio morava em um Conjunto habitacional em Aracaju. Seus pais moraram lá até que Deus os levou. Primeiro foi seu Filó, depois dona Dulcinéia. Lúcio herdou a casa e a banca de revistas na Praça da Bandeira. Lúcio cursou o segundo grau até o segundo ano. Os pais ficaram velhos forçando-o a trabalhar na banca. Ele era filho único e muito amado por sua família. Os vizinhos até hoje comentam: “Esse menino era o xodó de Dulcinéa”. E era verdade. Lúcio quando ia à escola, sua mãe o arrumava cedo, e o conduzia pela mão até o Costa e Silva, no Siqueira Campos. A mulher só parou quando percebeu que a voz do rapaz havia mudado. Filó era um pouco diferente. O povo de Glória não gosta muito de chamego.

A banca de Lúcio ficava na esquina com a Av. Hermes Fontes e Av. Barão de Maruin. O moço passava o dia inteiro ali. Retornava para o DER somente às sete da noite. Lúcio estava nessa vida há sete anos. Durante todo esse tempo ninguém apareceu em sua vida, nem uma namoradinha ou coisa assim. Seus colegas lhe diziam: “Lúcio troque o carro; compre um novo, desses da moda!” Lúcio tinha um fusca branco. Não havia nada de errado com seu carro, exceto, a idade, pois, o automóvel nunca o deixou na estrada.

O jovem do DER usava óculos como seu finado pai. Tinha os cabelos claros como sua finada mãe, e o nariz e a boca eram cópias de seu bisavô descendente de holandeses que moraram nos sertões de Glória e Porto da Folha. “Lúcio é a cara de seu Zé Maria, num é Filó?” “É mesmo, a cara de um, o fussinho do outro”. Lúcio não era um homem feio, mas, não era bonito também, ele estava na metade dos dois. O que mais pegava nele era a danada da timidez. “Rapaz! Olha lá! Carla está paquerando você!” “Tá não compadre!” A história terminava aí. Essas coisas faziam muito o rapaz sofrer.

Numa segunda feira, Lúcio estava em sua banca como era o costume. Por volta das nove horas da manhã entra uma moça. A menina estava um tanto apressada. Ela entrou, pediu cigarros, olhou em volta, e saiu. A visão da menina, o perfume que ela usava; a cor do vestido, a cor dos olhos e do cabelo ficaram fixadas na mente de Lúcio. O rapaz retornou em seu fusca para casa pensando em quem seria aquela moça. Ele estava tão animado com a visão daquele anjo que se esqueceu de por o carro na garagem. Aquela foi a primeira noite que o fusquinha de Lúcio dormira do lado de fora. No outro dia, pela manhã, Lúcio abre a porta para atender o leiteiro, e vê seu carro estacionado na porta de casa. Para sua surpresa, pois, isso nunca havia acontecido antes.

- Seu Lúcio chegou tarde ontem!
- Não seu Raimundo. Cheguei cedo, mas, num sei onde estava com a cabeça. Ocupei- me e me esqueci do carro! De fato, Lúcio ao chegar a sua casa nem banho tomou. Esquentou pão e café solúvel no micro-ondas, depois, foi direto para sala de som onde ficou até pegar no sono. Sua mente passeava por todos os ângulos possíveis que estavam armazenados na sua memória. Ele via a pequena comprando uma carteira de cigarros Hollywood mentolado. O dinheiro ele segurava na mão, de vez em quando, o levava ao nariz para sentir o perfume da moça. “Era coisa da Natura”. Pensou ele.
- Seu Lúcio, mas, sua pessoa num vai assim para a banca não, num é? Perguntou Raimundo, o entregador de leite da Padaria Sagrada Família.
- Como?
- O carro está sem os pneus. Parece que o dono levou. Lúcio, finalmente, vê que os pneus de seu fusca sagrado haviam sido roubados. Naquele dia ele foi de ônibus para a banca.

Lúcio residia no final da Rua Alagoas. Ele decidiu tomar o coletivo DER para a Praça da Matriz, e de lá seguiria a pé para a Praça da Bandeira. Lúcio tomou o ônibus no ponto próximo a sua casa. Uma esquina antes da Rua Bahia sobe uma moça. Lúcio não havia notado, pois, estava ainda pensando em sua amada, sua musa que o fez se esquecer do carro. Ele somente percebeu que ela estava no ônibus quando o vento entrou pela janela na curva para entrar na Rua Bahia. “Que perfume é esse?” “Será?” A moça estava sentada no banco dos fundos. Eles estavam separados por uma senhora forte, de meia idade, que segurava uma criança no colo. A moça estava ali, pensou o rapaz. “Eu poderia perguntar-lhe o nome!” Pensou novamente o vendedor de revistas. “Vou segui-la!” Durante o percurso seus olhos incidiam instintivamente sobre as colchas alvas da moça. Sua pele era branca como leite; o rapaz adorava vê-las embaladas pelo trepidar do carro. A menina estranha vestia um vestido branco estampado com rosinhas azuis. A roupa era curta – o que provocava a libido de Lúcio. O tempo passa rápido. A Praça da Matriz estava cheia de gente. Todo aracajuano sabe que Sergipe passa por ali todos os dias. A moça desce na Praça junto com Lúcio. Os dois estavam juntos e separados no meio da multidão que ia e vinha sem nada perceber. Ela entra em uma pequena loja de vender filmes e máquinas de fotografar. Lúcio a observa sem se preocupar com o tempo. A menina se sentou no balcão e inicia sua rotina de trabalho. Um rapaz moreno de feições de caboclo se aproxima dela e diz:

- Marivone! Bom dia! Linda como sempre!
- Bom dia Valdir! Onde está Setúbal?
- Ele mandou dizer que você tome conta das coisas. Ele está com o cão doente. Vai levá-lo para o veterinário.
- Setúbal é uma comédia! Setubal era o dono do estabelecimento. Valdir o fotógrafo e Marivone, a vendedora.

Lúcio anotou o número do telefone que estava no toldo que protegia a frente da loja do sol forte de Aracaju, e se retira do lugar. “Agora, pelo menos, eu sei seu nome ‘Marivone’; mais tarde vou ligar para ela”.

Dona Carmelita estava aguardando Lúcio defronte à banca fechada às oito e trinta da manhã. A mulher não falhava um dia. Era comum tê-la por perto no horário de levar rex para fazer xixi. Carmelita era uma mulher viúva aposenta. Sua idade ela não gostava de dizer, mas, todos sabiam que ela parou de contar nos sessentas. De lá para cá deve ter passado mais de uma década. Sua lucidez era plena. Falava com propriedade sobre todas as coisas que conhecia. Somente uma coisa nela irritava a Lúcio – seus pressentimentos!

- Menino que cara é essa? Viu algum bicho?
- Como dona Carmelita?
- Se sua mãe tivesse viva ela diria a mesma coisa! Que cara é essa, rapaz? Viu algum fantasma?
- Não! Mas vi a coisa mais bela de minha vida!
- E foi Lúcio? Graças a Deus meu filho; já estava na hora de você arrumar alguém! Felicidades! Rex havia feito o trabalho na grama verde da Praça. Dona Carmelita se despede e caminha na direção do semáforo no cruzamento com Av. Barão de Maruin. A mulher vestia uma roupa preta; o luto de seu marido nunca saiu da cabeça de dona Carmelita.

A banca de Lúcio era um ponto antigo. Segundo ele, há mais de 25 anos sua mãe e pai trabalharam ali. Fizeram fregueses e amigos que depois se tornaram fregueses e amigos de Lúcio. Era muito agradável trabalhar naquela banca que tinha dois metros e meio de largura por três metros e setenta de comprimento. A banca estava do lado da sombra pela manhã, e pela tarde, as árvores da praça ajudavam a amenizar o calor de Aracaju dando-lhe sombra. De tardinha uma brisa escapava da Rua da Frente e chegava até a Praça da Bandeira. Era a brisa do Rio Sergipe que deságua logo ali. Em Aracaju, o mar e o rio dialogam sem cessar, e o vento que corre a cidade vem de lá.
- Alô! Alô! Lúcio respira fundo, cuida para que Marivone não ouça sua respiração ofegante.
- Alô! Alô! A voz da moça deixa o coração do rapaz acelerado. Sua respiração se assemelha a de um corredor. Contudo, Lucio nada diz. Os pensamentos de sua cabeça ficam confusos. O rapaz tem medo de dizer besteira.
- Alô! Alô! Marivone atende ao telefone novamente, mas, não encontra resposta. A moça desiste e desliga.
- Valdir! Estão passando trote. Duas vezes ligaram para cá, eu atendo, ninguém diz nada.
- Está famosa, hein!
- Oxalá que fosse isso! Sinto-me tão só! Marivone suspirou se lembrando de Carlos Alécio, seu ex-noivo. Marivone foi deixada no altar. Seu noivo Carlos Alécio desistiu de tudo e aceitou a bolsa para estudar em Londres. “Desculpe meu amor, mas, foi um erro”. Estas foram as últimas palavras que Marivone ouviu dele. Desde então, dois anos depois do ocorrido, a moça nunca mais namorou ninguém. “Marivone minha filha! Vá passear!” É o que diz sua mãe quando a vê de cabeça baixa pensando na vida.
- É brincadeira colega! Desculpe! Valdir se retirou para atender um cliente. Marivone pensa por um instante no seu ex-noivo. Seu coração se enche de saudades e mágoa.

Lúcio esperou Marivone sair do trabalho às cinco. Esperou por ela na Matriz. Depois, a acompanhou pela cidade até deixá-la em casa. A rotina se repetia todo dia, depois semanas passaram e o rapaz fazia a mesma coisa. Colhia informações sobre a menina, a observava, mas, nada de uma aproximação. Todas as vezes que tentava, sua voz engasgava só de pensar, seu coração acelerava, sua mente entrava em confusão. Lúcio não conseguia abordar a moça definitivamente. Os seus planos se transformaram em devaneios. Marivone percebia que estava sendo seguida. Contudo sua dúvida era maior que sua fé.

- Valdir, às vezes, sinto que um rapaz simpático me acompanha. São vários os dias que onde estou ele está. Mas, ele nem olha para mim. Ás vezes, eu sinto medo. Outras vezes, eu sinto vontade de dizer-lhe algo. Eu acho que ele tem algum problema.
- Mulher, pode ser apenas uma coincidência. Relaxe!

Lúcio estava lendo em sua banca certa manhã quando Marivone surge inesperadamente. A moça não tinha o hábito de comprar cigarros naquele local. Ela procurou a Lúcio por que queria ouvir dele alguma coisa. Lúcio levanta a cabeça e encontra os olhos da menina no caminho. Aquela foi a primeira vez que os dois se olharam. A ternura e o carinho irradiavam das pupilas dos olhos de Lúcio. Marivone percebia tudo, no entanto, não entendia por que ele não falava nada.

- Uma carteira de cigarros, por favor! Lúcio se levanta e caminha na direção dos cigarros. Pega a carteira e a entrega à menina. Agora seus olhos estavam baixos evitando o olhar direto. Marivone tenta dizer alguma coisa, mas, para pelo meio do caminho. “Acho que Valdir tem razão!” Pensou consigo a moça.

A aproximação de Marivone forçou Lúcio a mudar sua estratégia. Ele a seguia de longe como se fosse seu anjo protetor. Durante as noites Lúcio simulava diálogos com ela. Ele mandou fazer pôsteres e os pendurou nas paredes de seu quarto e escritório. Lúcio estava se transformando em um especialista sobre Marivone. As pessoas da Praça da Bandeira comentavam que Lúcio abandonara a banca, porque não ligava mais para nada. Os pedidos estavam atrasados.

- Lúcio você está bem, colega? Perguntou Gileno, um colega de infância.
- Sim, eu estou bem. Hoje tenho a mulher que sempre sonhei. No quarto de Lúcio havia uma boneca de criança de uns setenta centímetros. A boneca tinha os cabelos pretos como os de Marivone. Os meses passaram ninguém mais ouvia falar de Lúcio. Sua banca estava fechada. Sua casa estava trancada e seu fusca desmontado por vândalos na frente de casa. Lúcio enquanto teve saúde rondou a casa de Marivone. O rapaz não suportou a noite de sexta feira dia 27 de março. O rapaz estava sentado em um bar defronte a casa de Marivone que fica quase no cruzamento da Av. Bahia com Alagoas. Ele fazia ponto ali quando podia. Olhava tudo depois ia embora. Naquela noite Marivone demorou a voltar da loja. Lúcio ficou no bar até ela chegar. Por isso, nervoso, pediu uma cerveja. A cerveja afetou o rapaz de forma tal, como disse seu Zé, que ele se levantou descontrolado e sumiu na rua. Lúcio viu quando Marivone chegou com seu namorado. Viu quando os dois se abraçaram e se despediram. A cena de amor de Marivone adoeceu a Lúcio. Desde então ele preferia ficar em casa sem receber ninguém.

O rapaz do leite estava desconfiado que houvesse algo errado. E então, certo dia, ele sentiu um cheiro de podre, e chamou os bombeiros. O corpo de Lúcio foi encontrado em adiantado estado, fazia uns cinco dias de morto. Os vizinhos não viram nada. O exame cadavérico diz que ele se envenenou com chumbinho. Deixou uma carta na mesa da cozinha. Na carta ele dizia: “Estou tirando minha vida por que te amo Marivone”. “Quem é Marivone?” Perguntaram os policiais. Marivone nunca soube da morte de Lúcio, embora morasse no mesmo bairro. Cidade grande é assim as pessoas nunca se conhecem o bastante. Marivone casou e teve um filho. E viveu sua vida como pode.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A ESCOLA NÃO É UM ESPAÇO NEUTRO.

O presente ensaio foi inspirado no artigo “Althusser: A escola como aparelho ideológico de estado” de Luciano Lempek Linhares (Mestrando pela PUC-PR), Peri Mesquita (Mestrado pela PUC-PR), e Laertes L. de Souza (Sem referências de títulos). Esse trabalho faz parte de nossas pesquisas sobre Educação. Temos tomado o procedimento de fazer pesquisas bibliográficas sobre diversos olhares para a Educação. O texto dos referidos autores encontra-se a disposição dos leitores no seguinte endereço eletrônico: www.pucpr.br/eventos/educere/educere2007/…/CI-204-05.pdf.

Para entendermos melhor o que Althusser pensa da Escola é necessário primeiro entender as duas teses fundamentais de seu trabalho: A ideologia e o Estado. Pois, sabendo o que ele pensa sobre esses dois temas, o nosso olhar sobre a escola e a educação pode se tornar mais nítido.

Para Althusser, a ideologia presta um serviço de fundamental importância para a burguesia dentro do sistema capitalista; é por meio dela que a burguesia consegue manter o seu status de classe dominante. Ela está presente na formação das classes sociais, na perpetuação das condições de reprodução, nos aparelhos ideológicos estatais e privados, e com muito mais força, nas escolas.

Para o pensador francês, a ideologia é o sistema das ideias e das representações que domina o espírito de um homem ou de um grupo social. São ideias falsas a respeito de si e da realidade. A ideologia promove a organização das relações objetivas em função de suas representações. Esses produtos do cérebro humano crescem ao ponto de dominar o homem completamente, assim, nos tornamos criações de nossas próprias criações ou falsas representações da realidade.

Althusser nos apresenta o conceito de ideologia usando duas teses: a imaginária e a material. A primeira refere-se à ideologia enquanto representação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência. São ideias de mundo, na maioria das vezes, fictícias, sejam religiosas, morais, jurídicas ou políticas, pois, não correspondem à realidade, à verdade. Assim toda ideologia representa, na sua deformação imaginária necessária, não as relações de produção existentes e as que dela se originam, mas, a relação imaginária, onírica como diria Freud, dos indivíduos com as relações de produção e com as relações que delas derivam. Na ideologia, não é a realidade das relações que é apresentada, mas, as relações imaginárias dos indivíduos com as relações reais em que vivem. É por essa razão que um indivíduo é capaz de dar sua vida em uma guerra para defender a ‘nação’ sem antes ponderar sobre os reais motivos do conflito, ou outro indivíduo entrar em depressão porque quebrou algum preceito moral de sua religião. Alguns são tão presos e fanatizados por suas ideias que são capazes de morrer ou matar por elas.

A segunda tese de Althusser diz respeito à materialidade da ideologia. Segundo ele, a ideologia tem também existência material. Ela existe em diferentes formas, todas enraizadas, em última instância, na matéria, pois, ela está inculcada; faz parte da mente social do sujeito. Assim, a ideologia não é somente um sistema de falsas ideias que atuam somente na imaginação, na compreensão da realidade, ou na representação do mundo. Ela tem existência material, e é nessa existência material que Althusser enfoca seu estudo. Essas ideias são, portanto, um conjunto de práticas materiais importantes para à reprodução das relações de produção, pois, elas representam os interesses materiais de uma determinada classe – a burguesia capitalista.

Para o pensador Louis Althusser, as ideologias falam de atos. Atos inseridos em práticas. Essas práticas são reguladas por rituais a que elas se relacionam no seio da realidade material de um aparelho ideológico, mesmo que se trate de algo aparentemente pequeno e insignificante como uma missa em uma capela pouco frequentada, uma partida de futebol, um jogo de xadrez, um dia de aula na escola, ou um encontro de membros de um partido político. Assim, meu amigo Souza, digo sem medo de errar, as ideologias inspiram comportamento – a ação concreta, portanto, a ideologia tem uma expressão material no mundo. Como muito bem colocam os autores do artigo em apreço no momento:

“Althusser demonstra que a ideologia não se reduz a simples imposição de ideias, ela se efetiva em práticas sociais inscritas em instituições concretas, reguladas por rituais no seio dos aparelhos ideológicos do Estado”.

O sujeito da ação e do discurso para Althusser é constituído de ideologia. Segundo ele, é a ideologia que forma a mente social do indivíduo. Por isso, ela está presente tanto na mente como no comportamento das pessoas. As praticas sociais, portanto, só existem por meio da ideologia, e a ideologia só existe para o sujeito e por meio dele. Deste modo, toda ideologia tem por função constituir os indivíduos em sujeitos concretos.

Segundo Althusser, a transformação da besta humana em sujeito via ideologia é para que este aceite livremente a sua condição de sujeição, e os atos da mesma diante do grande e soberano Sujeito (O Estado). Assim, nossa educação, formadora de nossa mente social, visa servir, em primeiro lugar, aos interesses do Estado, como diria Lacan, “O grande Pai”. Por essa causa, são considerados bons sujeitos, os sujeitos que pela mediação da ideologia da classe dominante presente nos AIEs (Aparelhos Ideológicos de Estado), seguem os modelos propostos pelo sistema capitalista, pela burguesia, sem contestar tais padrões e concepções de mundo. Como Freire diria – “Sujeitos passivos, sem fala[1], unidos visceralmente à natureza”.

A força da ideologia é tão grande que não nos revoltamos quando um ‘colarinho branco’ desvia milhões e não é punido por isso, ao mesmo tempo, achamos legítima a prisão de um reles batedor de carteiras, ou ladrão de celular cujo valor não se compara ao montante de desvio de verba pública feita pelo moço de terno. Achamos que a Canabis Sativa é droga censurável, por isso, criminalizar o usuário é correto, e que é dever do Estado puni-lo, mas, não conseguimos enxergar na imensa multidão de bêbados e alcoólatras, que carregam consigo as sequelas funestas desse vício, a pessoa do drogado e nem a letalidade dessa droga abençoada pelo Estado – como a mídia já veiculou até o ex- presidente a consome sem remorsos – e como sabemos desde criança – a igreja a usa em seus cultos, com moderação é claro! É muito difícil se lidar com ideias inculcadas! Para mim, ambas fazem mal e não devem ser consumidas.

A inculcação da ideologia dominante é aprendida, reforçada e perpetuada na escola, contudo, ela não se origina nela. A inculcação das ideias dominantes tem, antes, origem na formação das classes sociais, no seio do próprio Estado e de seus aparelhos. O Estado é visto por Althusser como uma máquina de repressão que assegura a dominação da classe burguesa e dos proprietários de terra sobre a classe operária para submetê-la ao processo que ele chama de extorsão da mais-valia – a exploração capitalista.

O Estado, segundo Althusser, funciona como um aparelho ideológico e como um poder de força coerciva. Organiza-se como um instrumento que serve para garantir os interesses da classe dominante – a burguesia, sobre a classe dominada – proletariado, ou a classe trabalhadora. Sendo assim, o Estado tem por objetivo assegurar, por meio das ideologias sobre os valores, as concepções de mundo, etc., e/ou da força física, a permanência da burguesia no poder. Como cita os autores a Althusser: “É o aparelho de Estado que define o Estado como força de execução e de intervenção repressiva”. (Linhares, Mesquita e Souza, apud Althusser,1970, p.32).

Para Althusser é o Estado, representante da classe dominadora, quem dita as regras do jogo social. O Estado é normativo; é repressivo das possíveis contestações e revoltas populares; é modelador da sociedade. O discurso considerado legítimo é o dele. Ele dita as regas de convivência, o comportamento padrão, o dito normal e o transgressor por meio de seus AIEs, e caso seja necessário, ele usa seu aparato militar, e/ou policial para manter o que ele considera ser a ordem. A visão marxista de Althusser entende que a existência do Estado só tem sentido em função do poder de Estado. Por isso, Althusser diz que toda a luta política de classes gira em torno do Estado e da detenção e conservação do seu poder. Manter o poder de Estado é o propósito da classe dominante para poder manipular os seus aparelhos ideológicos de Estado, os AIEs.



Os autores do artigo em apreço entendem que Althusser põe o Estado com duas faces distintas, mas, que se complementam. O que usa a repressão pela força e o que usa seu aparelho ideológico. O primeiro é o que se expressa sob o princípio que o Estado deve punir e ou até matar em nome da ordem social, essa é a sua força coercitiva e direta sobre os sujeitos (polícias, exército, tribunais, etc.). O segundo, é o que se expressa pela instauração dos Aparelhos Ideológicos de Estado, é o Estado em que a ideologia é realizada e se torna dominante. Ela tem por objetivo último a reprodução das relações de produção.

Althusser designa por aparelhos ideológicos algumas realidades que podem ser vistas pelos observadores atentos e imediatos sob a forma de instituições distintas e especializadas. Como diz Weber – ‘burocratizadas e racionalizadas’: Os sistemas das diferentes igrejas; os sistemas das diferentes escolas públicas e particulares; a família; o sistema jurídico; o sistema político de que fazem parte os diferentes partidos; os sindicatos; os sistemas de informação: Radio, televisão – a mídia em geral. Todos esses AIEs tem como função servir ao estado, segundo Althusser. Assim, meus caros, parece que existe um determinismo do estado sobre o sujeito, e uma seleção. Esta última ocorre na escola que não é neutra.

O presente ensaio tem como título “A Escola não é um espaço neutro segundo Althusser”. Depois de mostrar as ideias de Althusser sobre ideologia e Estado, os autores do artigo em apreço, tecem suas colocações sobre a escola usando a expressão: “Estado Escolar” em virtude das relações de funcionalidade do aparelho escolar em relação ao Estado. Para eles, a instituição escolar atua sob as orientações e normas do Estado. Ela é constituída como um AIE por ser porta-voz dos interesses da classe burguesa, e por estar, assim, a serviço da classe dominante que detém o poder do Estado e que influencia seus aparelhos ideológicos a seu serviço e em benefício dos seus interesses de classe. Os autores trabalhados nesse ensaio colocam que a escola atua no interesse da estrutura de dominação estatal tendo por finalidade a dominação da classe operária. Para tanto, a escola trabalha promovendo a inculcação das ideias burguesas. Essa dominação, por sua vez, não se dá de maneira direta, através da aplicação explícita da violência como no Aparelho Repressivo de Estado (ARE), mas de maneira disfarçada, indireta, ideológica, por meio de uma “ação pedagógica”.

Althusser acredita que após uma violenta luta de classe política e ideológica como nas revoluções, o aparelho ideológico escolar será o responsável juntamente com o aparelho ideológico político por reproduzir as relações de produção capitalista e de classe. A escola capitalista, nos dias atuais, para Althusser, faz o serviço que era feito pela igreja. O aparelho ideológico moderno, nos nossos dias, a escola, substitui o aparelho ideológico religioso do século XVI. A escola, então, é a responsável para formar sujeitos nos moldes capitalistas desde a infância. A escola trabalha junto com o aparelho estatal repressivo na formação dos cidadãos e na inculcação das ideologias dominantes, e estas estão presentes em todos os discursos escolares, seja na visão de mundo, seja no conteúdo dos livros, na estética e valores morais. Para Althusser o desenho da educação é inspirado na necessidade do estado enquanto instancia normativa, reguladora e repressiva da sociedade, e do poder de estado no qual a classe dominante se apoia – o poder de manipular as ideologias para a reprodução do modelo e perpetuação do status quo.

As colocações de Althusser citadas pelos autores do artigo resenhado que nos inspirou este ensaio são muito sérias. No início dissemos que veríamos a realidade de forma mais nítida. Com certeza, temos agora, meu caro Souza, um olhar mais maduro para o entendimento do pensamento de nosso ilustre pedagogo Paulo Reglus Neves Freire. Em “Pedagogia do Oprimido” Freire enxerga a realidade dicotomizada pelo par dominador/dominado. Isto faz alusão ao pensamento de Althusser. O interessante é que a condição do homem em Althusser é de alienado, pois, o sujeito é cria da ideologia e da necessidade de sua sujeição ao sistema. Assim, o não conhecimento de sua condição é necessário para a ordem geral. O desvelamento pode suscitar a possibilidade de revoltas ou rupturas. Portanto, o discurso do estado dever ser monológico fazendo alusão a Bakhtin, pois, esse discurso tem o interesse que todos sejam uníssonos no pensar e no agir. A contestação demanda explicações – diálogo, e isso o estado não deseja.

Por outro lado, acredito que o olhar de Althusser para o Estado e sua função no mundo não abarca toda a realidade desse objeto. Contudo, devo admitir que o estado, seja capitalista ou socialista, ou apresentado sob outra forma, será castrador de qualquer jeito. No rebanho dos homens sempre alguém dará as ordens e o inteligente obedece. A sociedade harmônica, fraterna e solidária tem existência no mundo ideal. No mundo objetivo, as relações entre os animais chamados humanos são de conflito – cada bicho estará disposto a matar, roubar, ou a fazer de tudo pela carniça – o alimento, seja esse do mundo concreto, ou simbólico. Todavia, ao contrário de Freire, Althusser não contempla a utopia de uma escola que ensine contra a ordem vigente. Embora, em Pedagogia do Oprimido, Freire não cite a revolução armada e a apropriação das ideologias estatais, ele acredita na revolução cultural e vê nela a chance de construção de uma nova realidade para os países capitalistas subdesenvolvidos. No entanto, Freire esbarra na solidez da realidade: “Qualquer estado, seja ele qual for, constituirá uma escola política, jamais neutra, segundo seus interesses”. Se a educação ocorre dentro dos muros da escola, então, toda educação formal será ideológica – trará um germe hospedado para se hospedar no sujeito aprendente e esse germe será potência para o comportamento social. Freire diz que o dominador está hospedado no dominado.

Meu caro Souza, este ensaio teve como intuito mostrar ao ilustre mestre em sociologia que é necessário o estudo de outras variáveis explicativas do fenômeno educação para que possamos amadurecer a importância do pensamento dialogista sobre educação. A teoria dialogista de Freire, implícita em seus postulados, desperta o nosso olhar para um diálogo urgente com outras teorias e outros olhares como a Teoria do Capital Humano, e o determinismo hereditário – social de Bourdie. Paz e Luz!

Referencias:

Linhares, Luciano Lempek; Mesquita, Peri; Souza, Laertes L. de: Althusser: A escola como aparelho ideológico do estado. www.pucpr.br/eventos/educere/educere2007/…/CI-204-05.pdf.

Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

[1] A expressão sem fala segundo Freire nos remete aos alunos da escola bancária que para ela, não tinham história; eram meros depositários dos discursos do professor.

O SUJEITO ENTRE O SINAL E O SIGNO

Meu amigo Souza,
Estivemos recentemente em Aracaju e pudemos discutir um pouco sobre a diferença entre a sinalização da realidade e a sua significação. Eu acredito que nossa conversa deva ter sido muito edificante para nós. Parece que os enunciados de nossas proposições despertaram em nós outros sentidos que, por sua vez, produziram mais sentidos e significações sobre a educação. É sobre essas coisas que minha humilde pessoa deseja compartilhar com o nobre mestre das Ciências Sociais.
Sua pessoa é conhecedora de nossas angústias na cadeira de Pedagogo da escola pública do sertão sergipano. Juntos nós produzimos dois artigos sobre o uso da estética musical “brega” em sala de aula com o intuito de melhorar a leitura e a produção textual de nossos educandos. Utilizamos, na época, os textos de Freire e a teoria da linguagem de Bakhtin. Este segundo autor será o foco de nosso modesto ensaio daqui pra frente. Contudo, acho pertinente, revisar uma ou duas proposições de nosso trabalho de coautoria com sua ilustre pessoa.
Para nosso amado Pedagogo Paulo Regulus Freire, o sujeito precisa de sua fala de volta para poder negociar com o mundo. Freire viu seus alunos como sujeitos castrados de seus discursos pela força da coerção social. Freire entendeu que isso parece um monólogo imposto pela escola. Em Freire, meu caro Souza, assim como para Althusser e Bourdie, a escola não é um espaço neutro, um espaço de discursos simétricos, de espaçamentos equidistantes entre seus interlocutores. Para Freire, a escola se tornou o lugar das contradições e, sobretudo, o lugar da reprodução da realidade de dominação; onde os dois polos do fenômeno se transmutam em opressor e oprimido antes, durante e depois de enunciarem.
Para Freire, o carro-chefe da educação é a linguagem, principalmente, na versão saussuriana chamada parole. O sujeito freireano é histórico porque produz linguagem, cultura, constrói uma teoria para a sua práxis. O sujeito de Freire se epifaniza pela fala ou pela escrita. Esses tipos de expressão do sujeito são os mais poderosos já confeccionados pela natureza, e pode, segundo ele, provocar uma revolução epistemológica no mundo. A revolução epistemológica do sujeito o afirma no mundo como tal.
Freire faz uso de termos que só podem ser entendidos no contexto de sua obra. Termos como “temas-geradores”, “palavras-geradoras”, “palavra-mundo”, e outros. Mas, em momento algum, os termos usados por nosso pedagogo apontam para a necessidade da sinalização da realidade. Pois, mesmo sem ler Bakhtin, Freire não concebia o fenômeno da sinalização entre falantes nativos de uma dada língua. A citação abaixo de “A importância do ato de ler” ilustra muito bem o que pensamos:
[…], processo que envolvia uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado, até gostosamente a reler momentos fundamentais de minha prática guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão critica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo. (Freire, 1989, p. 9).
A proposta, no momento apresentada, de Freire concorda plenamente com a proposição de Bakhtin sobre a diferença entre o sinal linguístico e o signo linguístico.
[…], Não, o essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular. Em suma, trata-se de perceber seu caráter de novidade e não somente sua conformidade à norma. Em outros termos, o receptor, pertencente à mesma comunidade lingüística, também considera a forma lingüística utilizada como um signo variável e flexível e não como um sinal imutável e sempre idêntico a si mesmo. (Bakhtin, 2006, pg. 86)
Para os dois pensadores, a comunicação linguística só ocorre quando os termos linguísticos não são sinais, ou seja, uma entidade linguística fora de um contexto e de uma situação enunciativa concreta, ou mera identificação da forma linguística. Para Freire o descodificar exige a presença de outros textos, textos que fazem parte do cotidiano, e da história do sujeito. A leitura para Freire não é uma primeira leitura, mas, um fenômeno engendrado numa rede contextual de diversas leituras precedentes.
O que me causa, no momento, pesar, meu caro Souza, é trabalhar com crianças que não conseguem ler os signos de seu próprio caderno. Que não conseguem dizer nada razoável sobre o menor fragmento de texto escrito com seu próprio punho, e que eles inevitavelmente serão os futuros educadores do sertão, reproduzindo a mesma lógica de produção de mão de obra na educação. Pensando assim, meu amigo das letras, eu ponho a problemática da leitura e da escrita para o futuro, para o questionamento que faremos amanhã sobre as causas da deficiência da educação do sertão sergipano.
A sinalização do texto lido é o fenômeno de decodificar o código linguístico, mas, sem acessá-lo como sua língua mãe. Pasme meu caro Souza, mas, é isso que ocorre com nossos pequenos leitores do sertão! Algo lhes aconteceu na escola que desenvolveu-se neles a habilidade de decodificar sem entender, o que indica um problema de valor cognitivo e de aprendizagem. Considero cognitivo porque vejo no decodificar sem entender uma lacuna, uma falha no processo de cognição do real, pois, apreendem suas formas, mas, não conseguem delas partir para a metacognição, ou o signo como suporte do signo. A sinalização somente identifica a forma da palavra, mas, sua ideia e suas relações com as outras ficam a margem do processo.
O que provocou esse fenômeno certamente não está no componente fisiológico do educando, pois, salvo as determinantes naturais nossa espécie desenvolveu a capacidade de ler o mundo e nele escrever sua história. Portanto, sua causa deve estar nas metodologias de ensino da leitura e da escrita. Dizendo assim, meu caro Souza, é bem cedo que o sujeito perde sua fala e, portanto, sua epifania no mundo, e o mais agravante, é na escola que isso ocorre.
O fenômeno de sinalização, de identificação da forma linguística em detrimento de seu signo impede que o educando continue produzindo em seus estudos. O carro-chefe do aprendizado em qualquer cultura é o se vernáculo, assim, sem o acesso ao signo linguístico com habilidade, e racionalidade, o educando produzirá uma falsa formação intelectual, falsa porque seu título, ou moeda de prestígio social não corresponde ao seu verdadeiro acúmulo de conhecimento e capacidade de expressá-los socialmente. Veja o que diz Bakhtin sobre a sinalização:
O processo de descodificação (compreensão) não deve, em nenhum caso, ser confundido com o processo de identificação. Trata-se de dois processos profundamente distintos. O signo é descodificado; só o sinal é identificado. O sinal é uma entidade de conteúdo imutável; ele não pode substituir nem refletir, nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este ou aquele acontecimento (igualmente preciso e imutável)1. O sinal não pertence ao domínio da ideologia; ele faz parte do mundo dos objetos técnicos, dos instrumentos de produção no sentido amplo do termo. (Bakhtin, 2006, pg. 86)
A abordagem do real na dimensão da identificação da forma linguística se assemelha a produção intelectual da chamada massa amorfa – Os “alienados”, aqueles que por motivos vários não conseguem abstrair o fenômeno de suas aparências. Não digo com isso, meu caro sociólogo da cultura, que a educação fora da escola, ou informal, não possa desenvolver encéfalos que produzam leitura consciente de mundo, mas, considerando a importância da educação na história humana, nesse ensaio, coloquemos nossas conjecturas dentro do ambiente escolar.
Caminhando na contramão da sinalização, muito comum a estudantes de línguas estrangeiras segue a significação do real. Esta depende da palavra signo, ou seja, algo que nos remeta aos “sentidos” presentes no mundo. Segundo Dorne, em um de seus trabalhos – “DE SINAL A SIGNO: A “PALAVRA” (DISCURSO) EM BAKHTIN”, o termo ‘palavra’ em Bakhtin comporta dois sentidos: Discurso e palavra (vocábulo).
[…] conforme Paulo Rogério Stella (2005) em “Palavra”. Para o autor, o vocábulo sofre dificuldade de conceitualização por dois motivos: problemas de tradução e por estar disperso e construído ao decorrer da obra de Bakhtin. Stella (2005) explica que, em decorrência dos textos serem traduzidos numa ordem diversa da produção do Círculo, determinados termos diferem de um livro para o outro, seja pelas escolhas do tradutor ou pelo público para o qual a publicação se dirige. […]. Dessa forma, segundo Stella (2005), o vocábulo “palavra” possui duplo significado em russo: Pode ser empregado tanto como correspondente direto do termo “palavra” no português, como do termo “discurso”. (Dorne, 2009, p.1)
Essa ambiguidade do termo palavra em russo vem a casar muito bem com a totalidade do pensamento do mestre de Praga. Para ele, a palavra é uma unidade ideológica, e os homens a usam em situações de enunciações concretas para expressarem suas subjetividades, portanto, é a palavra a maior via da epifania do sujeito no mundo. Isso torna o seu domínio não apenas um recurso psicológico e linguístico provido pela natureza, mas, uma ferramenta política de rupturas e mudanças sociais.
É devido a esse papel excepcional de instrumento da consciência que a palavra funciona como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for. A palavra acompanha e comenta todo ato ideoló- gico. Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma peça musical, um ritual ou um comportamento humano) não podem operar sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica – todos os signos não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele. (Bakhtin, 2006, 36)
A citação acima nos põe um valor ainda maior da leitura para a formação psicológica e intelectual do sujeito. A leitura faz o encéfalo trabalhar para decodificar e compreender o código, é, portanto, um processo de desconstrução do real. A leitura deve ser compreendida como um processo cognitivo que transcende a dimensão do texto linguístico. Ler para Feire é muito mais que isso; é ler o mundo.
na verdade, aquele mundo especial se dava a mim, como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. Os textos, as palavras, as letras daquele contexto – em cuja percepção eu experimentava e, quando mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber – se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia aprendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais. (Freire, 1989, p.9)
É a faculdade perceptiva e critica da realidade que o ato de ler deve produzir no leitor. Eis aí sua importância para produção do conhecimento humano! O processo inverso é a escrita. A escrita é a arte de enunciar no texto. É trabalhar a estrutura, ou as estruturas desse processo enunciativo. O discurso escrito é tão poderoso quanto o oral. Em muitos casos, muito mais poderoso. O ato de escrever é um ato de codificar. Meu caro Souza, vejo a escrita e a leitura como processos complementares e interdependentes. Um pressupõe o outro. Dessa forma, podemos ver que o texto escrito está para uma leitura, uma resposta aos seus enunciados. A leitura e a escrita são processos compartilhados. Estamos lendo com o mundo e sendo lidos por ele.
daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar. (Freire, 1989, p.10)
Meu caro Souza até aqui ficou posto a importância do ato de ler e grafar o real, ademais, nós já mostramos o que entendemos por sinalização e significação. O segundo termo é fundamental, não apenas, para a o expressar do sujeito no mundo das formas, mas, para sua própria constituição enquanto processo ontogênico. Assim como para Vygotsky o materialismo de Bakhtin coloca o sujeito como filho da palavra. Qual o material que constitui a substância do sujeito? O material constitutivo do sujeito é semiótico, e em seu núcleo está o vocábulo, o gene do discurso dotado de sentido, ou ideia, ou ideologia.
Que tipo de realidade pertence ao psiquismo subjetivo? A realidade do psiquismo interior é a do signo. Sem material semiótico, não se pode falar em psiquismo. Pode-se falar de processos fisiológicos, de processos do sistema nervoso, mas não de processo do psiquismo subjetivo, uma vez que ele é um traço particular do ser, radicalmente diferente, tanto dos processos fisiológicos que se desenrolam no organismo, quanto da realidade exterior ao organismo, realidade à qual o psiquismo reage e que ele reflete, de uma maneira ou de outra. Por natureza, o psiquismo subjetivo localiza-se no limite do organismo e do mundo exterior, vamos dizer, na fronteira dessas duas esferas da realidade. É nessa região limítrofe que se dá o encontro entre o organismo e o mundo exterior, mas este encontro não é físico: o organismo e o mundo encontram-se no signo. A atividade psíquica constitui a expressão semiótica do contato entre o organismo e o meio exterior. Eis porque o psiquismo interior não deve ser analisado como uma coisa; ele não pode ser compreendido e analisado senão como um signo. (Bakhtin, 2006, p.48)
O que Bakhtin diz, meu caro Souza, nessa singela citação de sua Filosofia da Linguagem é que o signo existe apenas como estrutura constitutiva da consciência individual e coletiva (totalidade das consciências). Somos o social internalizado, a materialização de suas ideologias. Será que pensando assim a educação dialogista tende a uma resposta mecânica ao meio? Certamente que não! O que sustenta nossa tese é a relativa autonomia do sujeito, pois, só interessa educar um ser que pode, mesmo muito relativamente, reescrever sua história; esse é um sujeito subversivo, um sujeito Freireano, o sujeito que rompe com a epistemologia vigente e re-significa seu real, e faz escolhas.
O sujeito que apresentamos aqui é aquele que transita entre as dimensões do sinal da palavra – uma abordagem instrumental e lexical, e o sujeito da significação – um permanente conceitualizar o real. Dizer do real ou enuncia-lo; é poder dizer dele e para ele. É o sujeito em erupção. Essa é a proposta de uma educação dialogista!
Considerar essas afirmações como lógica válida é o mesmo que considerar o ato de ler um ato de construção do sujeito, é dizer que o sujeito se constrói a cada leitura que efetua.
Para Bakhtin, o sujeito não é nem uma amalgama do mundo externo, muito embora o reflita, nem o mundo interno, orgânico, fisiológico. O sujeito, segundo ele, encontra-se na fronteira entre o orgânico e o externo. O material constitutivo do psiquismo do sujeito é o material semiótico, o signo, a palavra. Assim, as representações semióticas e simbólicas do sujeito fazem a intermediação entre este e as estruturas sociais. Tanto a superestrutura como a infraestrutura social está representada na interioridade do sujeito. Fazer o sujeito ler o mundo é abrir vias para que este se manifeste com mais potência transformadora.
Não é tanto a pureza semiótica da palavra que nos interessa na relação em questão, mas sua ubiquidade social. Tanto é verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas mais efêmeras das mudanças sociais. (Bakhtin, 2006, p.40)
Acredito que aqui, com a força dessa citação fica de uma vez por todas clara a preciosidade de uma leitura consciente da palavra, ou da palavra que é mundo e suas relações com a construção dialética do sujeito Pós Moderno. Esse deve ser o foco de nossa ação pedagógica!
Mas, afinal, o que faz uma criança sinalizar no ato de ler em vez de significar? Qual a causa desse fenômeno? No início desse ensaio a colocamos no reino das metodologias, e parece que é nele que a potência desse fenômeno reside. No nosso sertão quando ensinamos uma criança a ler separamos um processo interdependente como se ler e escrever não “fossem farinha do mesmo saco”, desculpe a expressão. Dessa forma alienamos o educando de seu contexto imediato, sua leitura não é a leitura de uma palavra-mundo, ou de uma palavra conhecida e que pode ser grafada. A criança que não associa uma palavra a sua realidade imediata usa palavras que não são de seu mundo, portanto, um termo estrangeiro para ele.
Quando ensinamos uma criança a escrever no sertão nos preocupamos com a morfologia da palavra em detrimento de seu sentido para seu mundo imediato, a forma se torna uma entidade fraca na mente do educando e logo fenece, pois, não tem lugar no seu psiquismo que aos poucos vai se constituindo.
Quando ensinamos os filhos do sertão a leitura, nos preocupamos em impor a forma sobre o sentido. A correção linguística contempla a estrutura externa do texto, a norma em detrimento de seu conteúdo ideológico imediato. Além do mais, o material usado para isso não considera o sujeito em seu locus existencial – falamos para o sertão como se este não tivesse suas peculiaridades próprias.
Quando ensinamos a leitura e a escrita aos filhos do sertão invertemos o processo natural; erigimos o reinado da langue (estruturalismo e o formalismo) em detrimento da parole (a dinâmica linguística social). A língua embora código social não deve tomar o lugar das situações enunciativas concretas (as falas, os dizeres, seus mitos, sonhos, desejos). Está nelas o milagre da leitura e da escrita. O homem só aprende com prazer aquilo que faz parte de seu mundo. Está nos enunciados de uma dada comunidade o léxico de seus filhos.
Além dessas coisas cabe ressaltar que a didática de nossas aulas objetiva com muita regularidade a resposta homogenia de uma determinada turma, ou seja, considera-se que todos devem aprender numa mesma velocidade o conteúdo proposto assim como foi planejado; o educador do sertão trabalha com metas e o ser humano com muita frequência foge dessas coisas. A resposta ao conhecimento é subjetiva, pois, o sujeito tem sua história (hereditária, cultural, ontogênica) e autonomia.
Mas, meu caro sociólogo, até que ponto podemos dizer que somos seres portadores de liberdade? Pois, sem esta, educar se transforma num processo de aprisionamento do sujeito. Educar aves que não podem voar é ensina-las a viver o cativeiro até o óbito. Educar é transformar sujeitos livres, autônomos, sujeitos que podem voar, sonhar e construir um novo mundo. A análise dos processos históricos humanos atesta que nossa espécie experimenta a experiência de conservação do modelo e de rupturas dos mesmos. As revoluções, as rupturas filosóficas, e epistemológicas nos dizem de um ser que embora engaiolado num estrutura maior que ele, por meio do sonho, das significações do real ele consegue evoluir para condições melhores de vida e de existência social. O sujeito cartesiano é real? Até certo ponto. O sujeito freudiano é real? Até certo ponto. Todos os olhares para o sujeito sempre nos darão um pequeno fragmento dele. Não se pode negar que o sujeito epistêmico de “Regras para direção do espírito” de Descartes é real. Para esse recorte do mundo, o filósofo viu a imagem ideal de alguém que com diligência segue as estradas do método científico. Quem duvidará que nós precisamos dizer do fenômeno tudo que é ele e disso abstrair o que não é? Eu e o objeto somos diferentes, embora ligados pelo olhar da admiração filosófica.
O sujeito freudiano se perde no inconsciente, possui uma estrutura topográfica, mas, não pode se conhecer a si mesmo, pois, este sempre estará submerso em meio as suas resistências e recalques. É um sujeito que transita entre o ideal e o real de sua condição humana. Será que alguém nunca viu em sua vida a veracidade das proposições freudianas? Um sujeito que ora sabe e ora não sabe, um sujeito que ora tem um núcleo bem definido, e ora transita por instancias topográficas do psiquismo humano é no mínimo maravilhoso!
Meu caro Souza, o sujeito castrado de Freud e o sujeito nuclear de Descartes me dizem da liberdade do ser. Observe que no eixo diacrônico das transformações sociais o ser se desloca. De experiência, em experiência, de aprendizado e aprendizado, de despertar de consciências, a despertar de novas consciências caminha o ser rumo ao progresso![ii]
Meu caro Souza, nossa história atesta que a ignorância é uma condição passageira dos homens. Assim, o deslocamento do sujeito, ou melhor, o deslocamento epistemológico do sujeito é sua liberdade. O sujeito possui uma liberdade relativa às condições materiais de vida e as condições fisiológicas. Em nosso locus existêncial somos escravos e príncipes.
Chegando ao final desse breve ensaio me apresenta a seguinte pergunta: Sinalizar alcança apenas o ato de ler textos escritos? Meu caro Souza a relação professor/aluno é, sobretudo, uma relação linguística, portanto, semiótica. Aprender alguma coisa é fazer uma leitura semiótica dessa coisa. Nossos alunos das séries posteriores do ensino fundamental e médio pecam novamente na compreensão do conteúdo colocado pelo educador porque não conseguem fazer uma leitura do mesmo. A fragilidade da leitura textual incide sobre a leitura do texto oral do mestre. Esse lhe parece estranho, pois, em seu encéfalo não há termos remetentes. O conteúdo ensinado se apresenta num primeiro momento para o educando como um sinal linguístico. Uma forma relacionada a alguma coisa. Quantas vezes a pergunta do mestre o educando responde: “Eu sei o que é, mas, não sei dizer”. Ele sente uma intuição como se estivesse diante de uma língua estrangeira, mas, não consegue enunciar sobre. O discurso do educador foi recebido como um sinal para o educando. Então, qual a causa desse segundo fenômeno?
Aprender a ler é um processo permanente, ininterrupto. Ler o mundo é um ato contínuo. A continuidade da leitura produz letramento, ou armazenamento de sentidos linguísticos no encéfalo (essas formas linguísticas não são sinais), sem isso não conseguimos relacionar os novos sentidos com os sentidos já existentes que lhe são afins. Portanto, a carência de letramento potencializa ainda mais a sinalização nas escolas e é a nosso ver um dos maiores problemas da educação superior do Brasil. Paz e Luz!
Referências das citações:
Freire, Paulo. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo, Editora Cortez, 1989.
Bakhtin, Mikhail. Filosofia da Linguagem. HUCITEC. 23oedição. 2006.
Dorne[iii] ,Vinícius Durval. DE SINAL A SIGNO: A “PALAVRA” (DISCURSO) EM BAKHTIN. http://www.fecilcam.br/nupem/anais_iv_epct/PDF/linguistica_letras_artes/06_DORNE.pdf.
[i] Roosevelt Vieira Leite é Graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Evangélico do Nordeste. Graduado em Pedagogia pela Universidade estadual Vale do Acaraú. Apresentou dois artigos sobre educação. O primeiro na UFBA-Ba, e o segundo na UFS-se.
[ii] Progresso, máxima de Allan Kardec em suas obras. O ser caminha rumo ao progresso, ou evolução.
[iii] dorne.vinicius@gmail.com

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

ANA NINGUÉM

Choveu muito esta semana.
Os pingos de chuva contaram uma história recente.
A que muita gente sente.
Sente o peso.
sente o preço.
A água ganhou vida na casa.
Ganhou forma de verbas perdidas.
Ela não falava coisas amigas.
Seu barulho acordou o menino.
Os velhos só puderam rezar.
Que azar!
O brasileiro limpa tudo.
No outro dia volta a sonhar.
Virá uma fada.
Safada.
Já devia ter vindo antes.
Demorada senhora envelhecida pelos séculos.
Até o cacique esperou por ela.
As penas se tornaram poeira.
Contei para os curumins a estória de Cinderela.
Mas na verdade seu nome era Ana.
O barranco desceu.
A gravidade não falhou.
A casa sumiu.
E Ana também.
Choveu muito estes dias.

O POVO ME QUER

“Há três espécies de cérebros: uns entendem por si próprios; os outros discernem o que os primeiros entendem; e os terceiros não entendem nem por si próprios nem pelos outros; os primeiros são excelentíssimos; os segundos excelentes; e os terceiros totalmente inúteis”. (Nicolau Maquiavel).




Leonardo sempre foi carismático. Desde menino que ele se deu bem no trato social e nas relações interpessoais. Leonardo era magrinho, branquinho, e bonitinho. As moças de sua idade diziam dele: “Leonardo só tem um defeito, a bunda um pouco batida, o resto a gente aproveita”. Leonardo estudou no Comendador Saturnino, aqui, na cidade de Pampas. Fez o fundamental, se formando com muito sucesso, depois foi fazer o ensino científico em Aracaju, pois, em Pampas, não havia escolas para isso naquela época. Leonardo fez o ensino científico, e depois fez vestibular para direito. Não passou na primeira vez, fez novamente o vestibular, não passando na segunda vez. Então, Leonardo decidiu voltar a sua terra para seguir a carreira de seus antepassados. Na verdade, sua família tinha muito prestígio por essas bandas. Seu tataravô conheceu o Barão de Jeremoabo, seu avô, foi político forte na época de Getúlio Vargas, e seu pai, o famoso Zé das Galinhas, prefeito da cidade por dois mandatos.


A câmara Municipal de Pampas muito se alegrou com a candidatura de Leonardo a Prefeito da cidade. Os vereadores mais antigos se emocionaram quando viram o rapaz entrar com o terno que pertenceu a seu finado pai.


– Leonardo tá com o terno de Zé. É meu filho, quem tem nome vai longe, e você o tem.

– Mas, eu num quero que o povo vote em mim por causa de meu pai. Eu o admiro muito, mas, eu sou eu!

– Assim é que se diz macho véio!


O pessoal do “Partido dos Vencedores” se reuniu para estudar a candidatura de Leonardo. O nome “vencedores” era um tanto estranho, mas, em Pampas tem até escola com esse nome. Aqui o povo só pensa em vencer; o povo de Pampas é muito trabalhador.


– Acho que Leonardo deve esperar um pouco mais. O pessoal do brejo num vai gostar.

– Rapaz, quem tem fidelidade com o grupo acompanha o grupo. Ele num quer ver o futuro da família dele, então, obedeça à direção do partido!

– Isso mesmo Cegonha! Interrompeu Toinho do tabaco, “o vereador que sempre leva você em paz”. Todo mundo tem que se unir e formar a base para Leonardo seguir seu destino que seus pais traçaram.

– Num é bem assim, Toinho. Eu quero representar meu povo e administrar essa cidade. Ademais, para não discordar de você totalmente; acho que a política está no meu sangue. Cegonha coçou o invólucro escrotal, levou o dedo indicador às narinas e fungou um pouquinho antes de continuar:


– Vejam que muitos interesses existem nos Pampas, mas, aqui, a decisão final sempre foi de gente honesta. E o Partido dos Vencedores é um partido de gente honesta. Leonardo deve ser apoiado por todos porque ele representa a geração futura que emerge de um passado glorioso. Todos os presentes se levantaram e aplaudiram o vereador Cegonha – Aquele que não te deixa na estrada.


A cidade de Pampas tinha 15 povoados e 10 vereadores. O prefeito anterior havia se envolvido com algumas coisas erradas e estava entregando o mandato sem força para uma reeleição. Ele já havia sido vereador por dois mandatos em épocas anteriores, seu finado pai também foi vereador. Sua família tinha um latifúndio que comportava 60% de todas as terras do município; ele ainda foi presidente da Câmara e do Rotary Clube, e dizem que o mesmo tinha uma rapariga em Olindina. Em Pampas, a moralidade é muito elevada, contudo, as contradições aparecem aqui e ali.


– Meus filhos, a igreja é santa e profana. Disse o pároco Norberto. O velho repetia isso em todos os seus sermões. Em sua mente, esse paradoxo era legítimo, e legitimador da conduta geral.

– O padre disse novamente aquilo, Solange!

– Foi? Nem percebi, meu celular tinha mensagem, me desconcentrei para lê-la. Mas, a gente se criou ouvindo nosso padre dizendo isso. O que é que ele estava falando mesmo?

– Mulher, ele estava se referindo ao que o povo faz depois da devoção quando é festa na cidade. Mas, num é verdade mesmo, o povo vem falar com Deus, e depois vai para os braços do capeta e tome cerveja!

– Se fosse só cerveja! Minha filha, Pampas tá perigoso! As duas mulheres conversavam dentro do santuário no final do culto. Quando Solange levanta o olhar, Leonardo estava saindo sendo acompanhado por uma senhora idosa.

– Mulher, aquela é Dona Francisca?

– É!

– Mas, espie comadre, como está velhinha! Meu Deus! Será que ela vai ver Leonardo ser eleito?

– Num vai o que rapaz! O homem tá eleito!


As forças políticas de direita do município praticamente não tinham oposição, no entanto, o partido da oposição ganhava certa credibilidade porque o povo reclamou muito do São João do atual prefeito.


– Rapaz, o cara trabalha que só uma besta, ganha mal, come mal, vive mal, e depois, o prefeito faz um São João desses! É um cabrunco esse cara, rapaz!

– Cabrunco é pouco Cosminho! Essa porra tinha era que tomar…

– Num é Damião? Ah, se eu tivesse uma escopeta!

– Tu é de nada fio da peste! Vamos tomar umas que é melhor!


Naquele tempo, em Pampas não tinha radio. O debate político era feito no centro social, e transmitido pelo carro de som. Vinha gente de todos os lugares para espiar, ouvir e dizer alguma coisa. Nunca teve morte por isso, o povo de Pampas é da paz. Embora o povo fosse dócil, o debate foi um pouco quente. Os candidatos, como é costume do lugar, se prenderam às denúncias e, às vezes, levantavam assuntos pessoais, e quando o pessoal aparecia, as pessoas Pampenses arregalavam os olhos e abriam bem os ouvidos.


– Posso ser um homem de família humilde, meu pai ter morrido por causa de uma hemorroida estrangulada, como alegou o candidato da mesmice, Leonardo, mas, sou honesto, nem empregarei parentes na prefeitura. Disse o candidato da oposição professor Adelson Nunes do sindicado, ou como o povo costumava chamar “Delsinho do sindicato”.

– Delsinho tá dizendo que nosso partido tem pessoas na máquina pública. Vejam que barbaridade! É como o povo diz, com uma calúnia dessas, só Deus para repetir a história triste do pai – Hemorroidas nele meu Pai! Quando o populacho ouviu o “Hemorroidas nele meu Pai”, o povo entrou em delírio, a gritaria foi grande, uns atiravam os chapéus para o alto, outros cuspiam e coçavam o saco repetidamente, outros davam cavalo de pau com suas bicicletas. A galera gritava uníssona “É de Leonardo!”


Leonardo ganhou e arrastou consigo os vereadores do prefeito anterior. Agora era esperar assumir e compor seu secretariado, o primeiro, o segundo, e o terceiro escalão, sobrando vagas, entram os acordados. São os cargos da raspa do tacho. Leonardo reuniu seu pessoal, agradeceu o apoio e passou para o que interessava.


– Olha gente tive que criar duas subsecretarias para caber todo mundo. O que prometi vou cumprir. Agora vamos mostrar trabalho! Sim, Cegonha, sua filha vai ter que esperar um pouquinho porque esse negócio aí depende do pessoal de Aracaju.

– Leonardo, palavra é palavra! Você prometeu que ela ia para a secretaria de agricultura em Aracaju. Rapaz, eu preciso muito dela nesse cargo!

– Companheiro! Tenha fé, a gente vai ajeitar! A reunião terminou; todos já sabiam como seria o governo. O transporte escolar seria divido com três vereadores da base. A prefeitura faria as licitações e essas empresas ganhariam o serviço de transporte dos alunos. Em cada secretaria estavam empregados sob o regime de confiança os parentes dos vereadores e dos secretários de governo. Algumas vezes, Leonardo teve que aumentar a folha devido a mais um inimigo que virou a casaca para o lado dele. O pobre ficou tão triste que desabafou com dona Francisca, sua tia e confidente.


– Tia, num sobra dinheiro não! Tenho que empregar os aliados todos, já pensou que tradição!

– Meu filho, hoje tá melhor. Pior foi no tempo de teu pai e de teu avô. Veja, não mudou muito, mas, naquele tempo era pior.

– Tia Francisca; vou precisar de um coisa de você!

– O que meu filho? Você parece muito com sua mãe. É tão gentil.

– Os vales dos caminhões pipas é você quem vai administrar como era no tempo de pai.

– Pode deixar meu filho. Faço com muito gosto!




A seca chegou. Em Pampas de Sergipe, às vezes, a estiagem dura sete meses e os políticos sendo sabedores disso não preparam a população para enfrentar racionalmente e com dignidade a falta do líquido precioso. A solução era pedir a Francisca um caminhão d’água, dessa forma, o povo estava sempre devendo favor. A água e a saúde eram as forças que formavam o curral de Pampas. Durante os períodos de estiagem, mais pessoas dos povoados se filiavam ao partido de dona Francisca. A mulher, de muita sabedoria, virou uma santa, e seu carisma maior do que o de seu sobrinho, os dois eram imbatíveis.


A seca continuou castigando o sertão de Pampas. Uma menina foi picada por uma cobra e faleceu no posto de saúde por falta de um carro para leva-la a Aracaju. A emissora de radio da cidade vizinha noticiou o fato e cobrou de Leonardo medidas para sanar a situação do hospital.


– A situação nos Pampas é de urgência. Os cofres públicos devido à estiagem não têm muitos recursos. Vocês sabem a seca castiga, o gado fica fraco, e os negócios também. Disse o prefeito.

– Mas, todo ano não há estiagem nessa região? Por que vocês não fazem um planejamento para tanta gente não sofrer assim, afinal, quem vive em total dependência da natureza são os animais, os seres humanos pensam, fazem. Leonardo não gostou do repórter da radio.

– Moço, falar é fácil, difícil é fazer! E o amigo pensa que é o dono do mundo, é? Que tem o rei na barriga? Só porque tá falando aí? Leonardo tinha a Câmara toda nas mãos. A estiagem uniu os políticos, eles diziam que era “um pacto pela vida”. Quando a seca foi embora, um rapaz que sofria alucinações devido a uma pancada que levara na cabeça viu Pampas cheia de carros e gente comprando e gastando muito. Mas, é fato; o povo de Pampas, depois da seca, pareceu mais rico. Os comerciantes e políticos se queixavam sempre, mas, a prosperidade era grande. Na grande maioria foram pessoas da classe média para cima que ganharam com a seca: O dono do carro para transporte, o fazendeiro rico que cedeu pasto e ficou com o monopólio do gado; e aí e a coisa vai. Outra coisa que se podia ver era a quantidade de pessoas que venderam suas roças a preço de banana e vieram para Pampas, com isso a assistência social foi dobrada. Dona Francisca, também, tomava conta das cestas básicas.


– Solange, Graças a Deus que Leonardo convidou Francisca para trabalhar com ele, mulher! Ela atende a gente com tanto carinho! Dizem até que ela chorou com a morte da menina. Ela visitou a família e prometeu seis carros pipas para o povoado.

– É mulher, Francisca nasceu para servir ao pobre.


Um rapaz alto, de cabelos loiros e de olhos muito castanhos, que trajava um terno de linho marrom claro, que combinava com seu sinto e seu sapado de mesma cor, entrou no fórum da comarca de Pampas. O rapaz procurava o Promotor; em suas mãos havia documentos que seriam entregues ao Ministério Público.


– Boa tarde vossa Excelência, meu nome é Derneval, professor Derneval! Derneval nas horas vagas criava passarinhos, mas, a maior parte de seu tempo era dedicada à educação. O professor fez uma investigação e depois decidiu trazer o resultado ao Ministério Público.

– Boa tarde! Respondeu o Senhor Promotor de Justiça, Dr. Matias Fontes. Matias não era natural de Pampas. O homem veio de Aracaju fazer justiça no sertão. Ele era um homem íntegro, praticamente incorruptível. Sempre usava um terno verde abacate ou alternava com um velho terno cinza; ele gostava de cinto e sapato preto. O homem também gostava de sua arma próxima a seu peito esquerdo. Ele a guardava numa cartucheira de peito, tipo 007.

– Bem, acompanhei as ações políticas durante toda a estiagem e acompanhei o desenvolvimento econômico de algumas pessoas que estavam ligadas a máquina, e percebi que essas pessoas têm renda incompatível com o padrão de vida que ostentam. Derneval terminou sua fala e entregou os documentos ao agente da lei. O promotor ficou admirado com a denúncia respaldada e tratou de investigar.


Sete foram os meses de sigilo de justiça. Dr. Matias tinha provas para caçar o prefeito e 7 vereadores de sua bancada como também prender parentes e agregados de vossa excelência, contudo, nada escapa ao olhar de um bom político, o próprio povo o defende, ou o avisa. Todos querem ficar perto do poder.


– Leonardo, Clementina do fórum disse que tão investigando você? E parece que a coisa é séria!

– Calma Sisleide! Eu já sei o que é! Isso num dá em nada! Que ver? Espere!


Leonardo ligou para Brasília. O rapaz queria falar com um senhor muito amigo de seu finado pai. O homem era Senador. Depois ele ligou para seus amigos em Aracaju e externou sua preocupação com a base aliada que serviria para a reeleição do Governador. “Precisamos garantir a reeleição do homem porque nós não podemos ficar sem o apoio do Presidente”. Os políticos de Brasília e de Aracaju quando souberam ficaram preocupados e agradeceram a Leonardo e a dona Francisca por pensarem rápido. Pouco tempo depois a mídia noticia o desfalque em Pampas.


“Prefeito faz farra em Pampas”. Manchete do Jornal 9 horas. “Prefeito emprega até a rapariga do vereador”. Manchete do jornal Domingo Santo da Igreja Internacional do Bem de Cristo. A zoada durou uma semana, depois se acalmou. O promotor Matias foi transferido para outra Comarca deixando a bomba para um colega que nem tinha conhecimento do processo que foi misteriosamente para o fim da fila formada por centenas de processos. Leonardo foi reeleito a prefeito de Pampas. A seca continuou castigando o município, os carros pipas passeavam para lá e para cá. Dona Francisca sempre na calçada quando o sol esfriava. O povo que passava lhe agradecia as bênçãos. Matias nunca soube o motivo de sua remoção – tinha desconfianças, afinal, ele conhecia bem a história do Brasil.


– Sinhô! Sim Sinhô! Fale que nego escuta!

– Meu véio, e vai continuar assim? O velho ajeitou o cachimbo no canto da boca e disse soltando fumaça:

– Num libertaram os nego? Num foi? Tonce vão libertar vosmercês.

– Quando meu véio?

– Sinhôzinho pergunta muitxo. Mas, nego véio gosta de vosmercê. Tudo nesse mundo um dia muda. Nesse causo, a mudança é só quando a gente pobe entender o que lê e o que vê; aí o povo vai sabê quem é o dono dessa terra mermo. Se num é de quem trabaia nela! Num foi assim que Zambi deixô? …

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A CADEIRA

Há uma cadeira de madeira na sala vazia.
Há uma sala vazia em um prédio também vazio.
Tudo se foi.
Todos se foram.
Ficaram as salas.
Ficou o prédio.
E a cadeira sem função ainda está em uma sala vazia entre outras também vazias.
Ouço conversas nos corredores.
A administração pública é uma vergonha!
O gasto é um desperdício.
O desperdício é um grande gasto.
Quem está na cadeira?
O cargo será indicado.
Ouço um barulho que vem de fora.
Ouço o choro de quem se foi.
Tudo se desfaz com a força das horas, com a insistência do tempo.
Há uma sociedade de cadeiras esquecidas.
Há um povo sem passado.
O moço entrou e se sentou na cadeira da sala vazia.
O prédio tremeu como coração de mulher quando vê o filho viajante.
- Doutor Adalberto!
- Sim!
- Tem uns moços aí querendo saber como será...
- Favor mande-os entrar!
- Pronto!
A sala estava cheia de gente importante.
O Estado deve cumprir sua função social e normativa.
O Estado é regulador; é criador de regras.
O povo deve seguir o modelo para que haja ordem social.
Mas, a pobreza supera as expectativas e a capacidade de controle do Estado.
Não há democracia onde há pobreza!
Os vidros foram quebrados naquele momento, as janelas foram atingidas por rajadas de metralhadora.
Adalberto fugiu com Gustavo.
Um por um, cada um, cidadão ou não, evaporaram das salas.
Sobrou uma cadeira.
Em um prédio vazio.
Em um Estado vazio.
Em um país vazio.
Era só uma cadeira de madeira...

A CIDADE VAZIA

Rodolfo pegou o ônibus na Rodoviária velha de Tobias Barreto no estado de Sergipe. O engenheiro civil que fiscalizava as obras do Governo Federal estava indo para Olindina no estado da Bahia. Naquele município baiano, o Governo Federal tinha muito dinheiro investido no projeto de construção de casas populares. Rodolfo, um rapaz de 43 anos, era um dos engenheiros responsável pelo bom andar da carruagem. O ônibus estava nem muito cheio, nem muito vazio, na verdade, como diz o povo dos Campos, estava ‘meiado’. As pessoas conversavam as trivialidades do dia a dia. A prosa seguia junto com o ônibus rumo a Olindina.
Rodolfo pensava em Mônica, sua filha mais velha; a moça se envolvera com álcool, e desde então sua vida desandou. Isso fazia o jovem engenheiro perder o foco de seu trabalho, pois, a preocupação com a jovem moça, muitas vezes, falava mais alto. “Meu Deus, o que será dela se ela não parar?” “Por que isso veio sobre nós?” Essas eram as perguntas que o engenheiro fazia quando o foco de seu trabalho cedia lugar ao rosto meigo e branco de sua amada filha.
O ônibus segue seu curso atravessando mansamente o Povoado “Lagoa Redonda”. Rodolfo olha de sua janela e vê as pessoas nas ruas; todos seguiam suas vidas; todos estavam ocupados, todos faziam alguma coisa. As barracas de carne do sol, cheias de gente, estavam dispostas nas calçadas como de costume; os vendedores ambulantes gritavam muito entusiasmados: “Olha o picolé” ou “Compre taiucaroba - o melhor remédio para a espinhela caída”. A Lagoa Redonda é o começo da viagem para Olindina, uma estrada que tem muitas estórias para contar. Próximo à curva do “S”, Rodolfo abre seu caderno de apontamentos e revisa seus planos para Olindina. Ele era um homem muito metódico; Rodolfo gostava de cada coisa em seu lugar e no tempo certo. O carro desce a ladeira da curva com os freios gritando, uma senhora magra e alta que segurava uma criança com uma das mãos e com a outra um cesto de verduras tenta se equilibrar. Por pouco a pobre mulher não saía pela janela da condução. No pé da ladeira o carro para, a dita senhora desce, junto com ela outras duas mulheres. Uma senhora de seus quarenta anos cuja barriga era imensa o que dificultava seu transito pelo veículo grita do fundo da condução: “Pera aí, vou descer também!” A mulher se espreme para conseguir chegar até a porta. “Isso é ridículo, esses carros são muito estreitos”. Resmungou a mulher durante o seu percurso horrendo. O ônibus ao chegar a Itapicuru estava quase vazio. O motorista esperou mais de meia hora na tentativa de conseguir mais passageiros, o que irritou a Rodolfo: “Moço, eu tenho horário para cumprir, paciência!” O motorista desceu a ladeira da Matriz da cidade do Barão de Jeremoabo e toma a direção da estrada que vai para Olindina. O veículo vazio irritava o motorista. Quando este avistava alguém no caminho buzinava para chamar a atenção, todavia, ninguém mais subiu no estranho carro. Em pouco tempo restou apenas Rodolfo e seus pensamentos que se alternavam entre o trabalho e a face de sua amada filha Mônica. “Ah, minha filha se você, pelo menos, me deixasse te internar!” Rodolfo não percebeu quando o carro parou. O sono o pegou no meio da estrada. O veículo estava vazio, o motorista, certamente, havia saído para falar com alguém. Foi o que pensou o engenheiro.
Rodolfo desceu do carro e procurou uma condução para o centro da cidade. Não havia ninguém na Rodoviária. As lojas estavam abertas, mas, as pessoas haviam sumido. “Estranho” disse Rodolfo. O moço tomou a direção do centro comercial da pequena cidade baiana. Desceu a pé. Não percebeu, mas, durante o caminho até o centro comercial não havia uma alma no mundo. A cidade estava como se fosse todo dia: Lojas, farmácias, mercadinhos, carros de som, bancos, tudo estava funcionando, mas, não havia uma só criatura naquele lugar. “Muito estranho!” “Pera aí, o que é isso?” Pensou Rodolfo – “A cidade está vazia!” Rodolfo foi ao banco principal do lugar. A agência estava vazia, o ar condicionado fazia uma zoada irritante, os computadores estavam funcionando, contudo, seus operadores haviam sumido. Rodolfo liga para sua casa. O telefone não atende. “Mas, que coisa é essa?” Perguntou novamente o engenheiro.
O calor lá fora era forte, Rodolfo decide ficar um pouco na agência para ver se alguém aparece. Tomou café, fez xixi, e depois voltou para a poltrona mais próxima do ar condicionado, embora barulhento. As horas passam, e com ela se foi a paciência do rapaz. “Isso é um absurdo, como deixam uma agencia bancária sem ninguém?” Rodolfo retorna para sua poltrona perto do ar condicionado e espera mais um pouco. Os minutos se transformam em horas, e nada. Definitivamente, o lugar estava abandonado. “E o cofre?” Se alguém roubar o dinheiro? Essas foram às indagações do rapaz, no entanto, nenhuma delas foi respondida.
O engenheiro civil andou por toda a cidade, não viu uma alma viva. A prefeitura estava aberta, todas as secretarias estavam abertas, mas, nada de um ser vivo. Apenas pombos nas calçadas; até os cachorros e gatos haviam sumido. “Mas, mas, o que é isso?” Agora, a agonia do engenheiro se torna crônica. Ele teve a certeza que não queria ter – estava só naquele lugar. Rodolfo entrou numa lanchonete, abriu o freezer, pegou uma cerveja, e a bebeu comendo uma coxinha – “Pelo menos tem uma vantagem, não preciso pagar a conta”. “Sim, o motorista, o motorista do ônibus deve estar em algum lugar!” Rodolfo caminhou a cidade gritando bem alto: “Motorista”.
Próximo ao cemitério, Rodolfo encontra o motorista, ou o que restou dele. O homem era somente ossos dentro de uma poça fétida de sangue coalhado. Alguns ratos passeavam tranquilamente pela a avenida principal do lugar santo. Era um guabiru muito arrogante cujo bigode podia ser visto de longe. “Será que os ratos comeram a todos?” Tão logo a pergunta é feita um grupo de ratazanas escondem os restos do motorista dentro do cemitério onde havia uma cova aberta a espera do finado. “Mas, mas, como?”
- Sim, moço. O que você vê é o que você vê. Disse um ratinho pequeno que subira o cruzeiro da calunga pequena.
- Desculpe-me, devo estar delirando. Devo voltar ao banco quem sabe alguém esteja lá agora.
- Não perca seu tempo Rodolfo! Falou forte o ratinho do cruzeiro.
- Como sabe o meu nome?
- Ora doutor, quem não te conhece aqui em Olindina! Até os ratos sabem o que fazes por essas terras. Será verdade o comentário do povo da praça, digo, os finados que se reuniam lá?
- O que? Como? Não entendi!
- Sua pessoa se deixou vender no projeto da caixa d’água?
- Que caixa d’água? Alias, nem sei o porquê de minha pessoa está falando com um rato.
- Quando os donos saem, os ratos tomam de conta, não é esse o ditado idiota de vocês?
- Deve haver alguma explicação coerente. Devo estar sonhando, é isso, quando acordar, tudo estará como sempre foi, ou melhor, como deve ser. O rato calunga deu uma cambalhota, desceu do cruzeiro e parou sobre um túmulo.
- Aqui está enterrada a finada Cipriana. Mulher imbecil, odiosa toda. Quando ela morreu, os ratos fizeram uma festa no esgoto que cai no rio aqui próximo. Você nem pode imaginar a alegria de sabermos que esse monte de carne está apodrecendo aqui embaixo. Não mais ratoeiras, amigo. São muito engraçados vocês humanos. Vocês comem o melhor e nós as sobras. Para nós sobra o lixo, o esgoto. As vacas gordas são para vocês. Os ossos ficam para os ratos roerem. Tudo isso porque somos roedores; é isso, amigo doutor?
- Não eu não acredito em nada disso! Deve ser uma alucinação! Eu, definitivamente, não estou falando com ratos, isso não é possível!
- Sim, amigo você está sim! Não duvide! Os ratos estão no controle agora. Quando o calunga disse isso surgiu dentre as covas uma multidão de roedores de diferentes espécies. Era rato que não se podia contar. Eles estavam enfurecidos. Um rato grande e forte de cor negra se aproxima do engenheiro. Range os dentes exibindo sua dentição perfeita, seus pelos pareciam espinhos.
- Quer dizer que o coroa ainda não sabe quem manda aqui? Somos nós! Bradou o rato com todas as forças de seu pulmão. Os demais ratos começaram a dançar funk. A ratarada caiu em delírio. Uma ratinha até simpática piscou um dos seus pequenos olhos para o engenheiro. A turma dançava sem parar, o engenheiro aproveitou o momento para tentar uma fuga do lugar. Quando Rodolfo se aproxima do portão principal do cemitério este estava tomado de ratos que gritavam eufóricos: “Comida!” Rodolfo para e diz consigo: “Quando eu vou acordar?” Mal parou seu pensamento e sentiu uma pancada forte na cabeça. Rodolfo cai ao lado de uma cova aberta. Quando ele acordou estava coberto de ratos.

As dores agudas no corpo eram intensas, eram como mordidas finas que ora ficavam fortes, ora se atenuavam. O engenheiro, de vez em quando, ouvia o calunga dizer: “Calma pessoal, vão com calma, esse é filé”. Lentamente, Rodolfo estava sendo consumido pelos ratos, contudo, sua cabeça havia sido poupada. A dor, o calor do sol em seu rosto o fez desmaiar. A mente de Rodolfo se volta para Aracaju onde estava Mônica sua filha. Sua pequena como ele dizia. Ele via a moça sã, sem nenhum sintoma de embriaguez, ela falava sem delírios, e dizia ao seu pai o quanto o amava.
- Pai, esse ano vou fazer o vestibular.
- Minha filha como me alegro em te ver assim.
- Pai, mainha me disse que o senhor vai trabalhar em Aracaju, somente em Aracaju, é verdade?
- Sim, minha filha. Agora não mais viagens. Estarei sempre por perto. Continue assim filha, papai te ama.
- Pai, tudo passou, agora sei o que quero de minha vida.
- Que bom querida! Finalmente, você encontrou o rumo. E o álcool, não sente mais a compulsão?
- Não pai. Hoje acordei e vi o quanto é bom estar sóbria. Quero lutar e ser como senhor.
Os ratos continuavam a devorar o engenheiro, um rato cinza, do tipo ratazana mordeu desavisadamente uma veia de Rodolfo. O sangue esguichou rapidamente. O calunga repreendeu o colega dizendo-lhe que gente de primeira classe deve morrer com respeito. Rodolfo desacordado nada mais sentia; nem dor, nem medo. Apenas a imagem de sua filha estava em sua mente. Ela corria num campo verde cheio de rosas e flores variadas. Ele podia até sentir o cheiro da natureza viva. Sua filha representava muito para ele.
- Pai, o bilhete que mamãe achou, fui eu quem escondeu. O senhor não devia ter feito aquilo.
- Aquilo o que?
- Ora, pai, eu tenho vergonha do senhor, não vou dizer.
- Diga filha! É bom que entre nós não haja mais mistérios.
- Eu sei que a filha de dona Cipriana que frequentava aqui é sua filha. Eu sei que o senhor teve um caso com ela. Rodolfo ficou muito nervoso, mas, preferiu confessar seu segredo de uma vez por todas: “Mônica, quando somos adultos escondemos dos filhos as coisas para lhes poupar os nervos; esperamos que eles cresçam para que sendo capazes de entender a vida possam saber a verdade dos adultos. Sim, minha filha, eu amei Cipriana. Mas isso foi antes de conhecer sua mãe. Na verdade, hoje eu amo tua mãe, mas, no início as coisas foram muitos difíceis. Eu casei com sua mãe por causa do curso de engenharia, sem a ajuda dela jamais eu teria me formado. Logo depois Cipriana engravidou, eu a pedi para esconder as coisas até tudo clarear. Sua mãe com o tempo terminou sabendo de tudo. Esse foi o nosso problema e o nosso segredo por anos. Deixei Cipriana e nunca mais a vi, isso eu prometo e juro perante Deus que é verdade! Tua mãe nunca me perdoou; essa é a causa da falência de nossa relação. Quero te dizer que te amo e amo também sua mãe, mas, a convivência entre nós se tornou muito difícil, contudo, estamos tentando ser felizes”. Após o pai abrir o coração, Mônica sai cantando no belo jardim da vidência do engenheiro. A menina desaparece de seus olhos entre girassóis e margaridas.
- Doutor!
- Hum!
- Chegamos.
- Tá. Rodolfo desceu do ônibus na Rodoviária de Olindina. O sol estava perto do meio dia. O povo passava para todos os lados. Era dia de feira, havia gente de todo lugar. No centro da cidade, perto da agencia bancária, Rodolfo encontra um telefone público e liga para casa.
- Alô!
- Meu amor como está Mônica?
- Rodolfo, ela ainda não chegou. Saiu ontem com o namorado e até agora nada. Acho que ela bebeu novamente.
- Tá bom. Vamos entregar nas mãos de Deus.
- E você? Como foi a viagem? Rodolfo procura palavras para dizer, passa um lenço na testa e cospe no chão. Um ratinho calunga safado passa correndo bem diante de seus olhos, e se esconde no bueiro da praça.
- Meu amor, hoje no Brasil, as coisas estão entregues aos ratos.
- É mesmo, meu bem, sabia que tem mais um escândalo em Brasília?
- É isso, esse país tá de cabeça para baixo.
- É mesmo querido! Os dois conversaram por alguns minutos. Depois o doutor Rodolfo seguiu caminho até a prefeitura...

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

NÃO

Não...

Dentro de mim as entranhas se revolvem,
O coração calado sente o silêncio d'alma que insisti em dizer não.
O não que ergue o cadáver inerte daquele que antes crera na menina de Campos.
O não que sepulta a labuta dos apaixonados sem paixão.
O não que nega o amor sincero, um dito vero, uma história verdadeira.
Um não simplesmente afirmativo da vida.

Ah, se eu pudesse tornaria o tempo em imagem congelada e com um pincel faria nele a forma que quisesse!
Ah, como é bom ser Deus!
Como é confortável!

Perdoar, certa feita foi impossível!
Ela disse "não" milhares de vezes.
Ela disse que sem mim a vida bastaria.
E eu virei um quadro solitário na casa abandonada sem ninguém.
A casa das sombras, dos pesadelos, das imagens noturnas e dos sussurros na madrugada.

As dores nos ossos e juntas, as frias noitinhas logo depois das bucólicas tardinhas e a voz que me dizia: "Está me evitando?" me surge na vista como um precipício no fim da pista.
- Todo mundo se queixa do outro!
- Todo mundo é o outro e o outro é todo mundo!
Mas, o não é só meu.

O não que me trouxe para serra onde as águas correm calmas.
O não que me diz sim a vida novamente.
É preciso dizer não, diz o poeta.
É preciso dizer o não a tudo que na essência já era não.
O não era do amor que se diluiu no tempo.
Ah, coitado dos desatentos!
Amaram e se esqueceram da rotina das horas.

- Minha pombinha foi embora!
- Meu gato se foi!
- Como é dura a vida de quem perdeu a batalha do coração!

Eu chorei por ti trezentas noites.
As lágrimas me eram açoites, e a esperança de te ver uma peça fria de necrotério.
Ao sair levaste a chave da casa e fiquei preso nela.
Tentei pular a janela dizendo-te: “O novo é possível”.
Mas, minha voz se tornou uma velha resmungona.
E nossa vida um domingo na escola dominical.
E, tua voz aos meus ouvidos, na quietude da noite ou na pia de pratos era uma sanfona mal tocada como fundo musical.

- Não! É isto e pronto!
- Eu digo não!

Disseste não a vida toda.
Fizeste o não ladeira abaixo.
Subiste o morro com o não nas costas.
O não foi sempre um maldito não!

Não me perguntes mais o porquê do não.
Não tenho respostas, exceto, a vontade de viver.
Sim, é um não para um sim a vida.
Então, não...









sábado, 19 de novembro de 2016

A SANTA E A POMBA GIRA

Dizem que o sertão nos ensina a pensar. Seu Godofredo Cruz, um dia, disse para mim: “Meu filho, o sertão é uma escola cujo currículo é a vida”. Lembro-me muito bem desse dia, pois ao ouvir as palavras do homem fiquei um tempão pensando nelas. Devo confessar que não entendi bem as palavras de Godofredo, mas, as guardo até os dias atuais porque eu pude ver com os meus olhos que elas eram verdadeiras.

Godofredo depois do acidente de Chiquinho caiu em depressão. A figura robusta de um homem rosado e forte se transformara num esqueleto vivo que andava com muita dificuldade. Quando o via, mesmo sendo ainda um jovem púbere, minha alma chorava, pois, o velho Godofredo, embora severo em seus julgamentos, era um homem bom, não merecia aquilo.

O Riacho do Junco havia enchido muito por causa das trovoadas de Santana. Era costume do velho Godofredo pescar nessa época do ano. “A pescaria alegra meu homem” dizia dona Maria das Dores sua amada esposa.

Lembro-me de tê-lo visto descer para as bandas do Riacho do Junco. O velho levava sua tristeza e sua vara de pescar, e as iscas em um saco plástico. Ele passou defronte a janela de meu quarto, por isso pude vê-lo com muita nitidez. Seu rosto dizia para mim que Godofredo precisava de um milagre. Ora, minha jovem pessoa num entendia muito de religião. O padre Oliveira nos dera a catequese e a eucaristia, o resto, eu nada entendia, na verdade, eu não sabia nada de religião mesmo, no entanto, Godofredo fora coroinha quando menino, e quando homem feito, foi diácono da igreja. Talvez tenha sido essa a causa de sua depressão, pois ter servido a Deus com tanta fidelidade e perder o filho de forma tão fútil: “Meus pêsames Godofredo!” Disse com um tom de sensibilidade o pároco da igreja. Na missa, ele fez referência a Godofredo com as seguintes palavras, eu tentei sorrir, mas, minha mãe beliscou-me na barriga: “Psiu!” Amuado fiquei ao lado dela enquanto o vigário dizia: “Deus sabe de tudo e tudo que nos ocorre é vontade dele”. Eu tentei dar uma risada, mas, minha mãe acertou-me o topo da cabeça com um cascudo que até hoje me recordo.

Godofredo, após a passagem de seu filho, tornou-se como eu - um desconfiado de Deus. Desde criança que eu não entendia o fato das pessoas não puderem ver a Deus como vemos as pessoas; eu dizia com frequência: “Deus se ausentou e pôs a culpa no mundo”. Mas naquele bendito dia, nossas vidas, a as pessoas de nossa comunidade teria uma experiência que mudaria para sempre o rumo do povoado; e se alguém não entendeu foi porque não viu a santa.

O Riacho do Junco naqueles dias era de água tão cristalina que se via o fundo. Godofredo pescou sete grandes tilápias. Após a pescaria Godofredo se prepara para voltar para o povoado. Alguns macaquinhos comiam seriguelas num pé do dito fruto que ficava na margem do riacho quase beijando as águas. Os pequenos primatas comiam o fruto e jogavam os caroços dentro do riacho. Godofredo observava a festa dos macaquinhos, e ao se aproximar deles, eles gritaram e jogaram os caroços em Godofredo que tentou se proteger o que o faz perder o equilíbrio e cair nas águas frias do Riacho do Junco. A profundidade das águas do riacho era de dois metros; as águas do riacho puseram Godofredo cara a cara com a santa misteriosa. Ela tinha um manto azul que cobria seu corpo na cabeça e nas costas, na frente um vestido de santidade branco. Godofredo a recolhe com cuidado e nada de volta para a margem. Os macacos no alto do pé de seriguela fazem uma festa com o estranho visitante Godofredo. A macacada balançava os galhos do pé de seriguela fazendo as maduras cair, e elas caíam no chão, algumas, porém, na cabeça de Godofredo.

Godofredo traz a santa para casa. Sua mulher põe a imagem no seu altar doméstico. A santa sem nome estava, agora, ao lado de Santo Antônio, São Francisco, Nossa Senhora das Candeias e São Cosme e São Damião. Godofredo recobrou o ânimo e voltou a frequentar a paroquia. O povoado ficou maravilhado com o milagre que acontecera.
- Mulher, pois o homem num se levantou depois de ter achado a santa!
- E foi?
- Oh, você num sabe não?
- Não.
- Godofredo achou uma santa e agora ele anda com os ombros pra cima, e seu semblante voltou a ser feliz. Isso é um milagre! O povoado comemorou a vitória de Godofredo, no entanto, havia a cobra chamada curiosidade. O povo queria conhecer e ver a santa. As pessoas, no início, queriam só dar uma olhada, mas, depois, os doentes e miseráveis começaram a chegar, e com eles a paz da família foi embora.
- Padre Oliveira. Eu acho que num dá mais para a santa ficar lá em casa.
- Meu filho qual é o nome da santa?
- Num sei.
- Então como é que vou trazer para a igreja uma santa sem nome?
- Sua santidade não pode dar um nome para ela não?
- Bem, vamos até sua casa e vendo a imagem pode ser que eu a conheça. Padre Oliveira tinha um problema sério de saúde. O vigário reclamava para seus colegas que ficava até sete dias sem defecar. Muitas vezes o homem santo chorava no altar pedindo a Deus para evacuar com liberdade. Oliveira ao ver a imagem não teve referência sobre seu nome, todavia, dona das dores disse: “A sua santidade num vai benzer a imagem não?” O padre pegou na santa e fez o sinal cruz e jogou água benta nela. Ao devolvê-la para as mãos de das Dores, o reverendo sentiu cólicas abdominais e saiu em disparada para o banheiro que ficava fora de casa. O homem arriou todas as fezes que durante anos o perturbava. Godofredo, finalmente, se convence que a santa era milagrosa. O padre retorna aliviado e diz: “Meu filho é nas horas difíceis que Deus aparece; essa santa veio na hora certa; seu nome ainda eu não sei, mas cá entre nós, eu gostaria de chama-la de Santa do Rio”. A mulher de Godofredo interrompe o vigário dizendo de forma irritada: “Minha santinha merece um nome melhor!” “Nunca vi essa tal de Santa do Rio, não, Oxente!”
- Bem, por enquanto, levemos para a igreja e lá Deus vai nos dizer o nome certo dela. Com as palavras do vigário, o casal descansou.

A comunidade do povoado do Riacho do Junco passou a fazer devoção a Santa do Rio. Os milagres começaram a acontecer no seio da Paróquia de São Sebastião. O povo era curado, outros deixavam os vícios, outros nada recebiam, mas, por causa dos outros eles eram devotos da Santa misteriosa. A devoção a Santa durou do mesmo jeito por sete meses, depois, algo muito estranho aconteceu.

Minha pessoa, embora adolescente viu os milagres da Santa do Rio. Na verdade, a princípio estranhei depois vi a coisa com naturalidade, todavia, para algumas pessoas a santa passou a ser um fardo abominável.



Recordo-me como se tivesse acontecido hoje. Eu e Lopes brincávamos no oitão da igreja por volta das sete horas da noite. Minha bola, por acidente caiu no interior da igreja. Nos fundos ela tinha uma área de serviço que dava acesso à sacristia e da sacristia para o santuário. Não sei qual a razão, mas, a porta dos fundos estava aberta. Ao pegar a bola, tive a curiosidade de dar uma olhada na santa. Quando a vi, tive uma forte vontade de me aproximar. A santa foi mudando de cor. Seu vestido branco tornou-se preto e vermelho, e em vez da posição de beatitude, a santa fazia poses sensuais e dava gargalhadas. Fiquei sem entender. Depois ouvi o povo falar que algumas mulheres estavam visitando a santa durante a noite. Elas diziam “Padre, nós gostaríamos de velar pela santa essa noite”. Algumas filhas de Riacho Fundo tiveram seus casamentos recuperados, outras, saíram de casa. A confusão estava feita no povoado:

- A culpa dessa falta de respeito é de Godofredo! Acusou seu Bonfim.
- Não, num concordo não! Ele pensava que era uma santa. Disse dona Flores.
- E como é que Godofredo podia adivinhar que a santa ia ser duas coisas?
- Bem, a solução é jogar a santa fora. Ela está corrompendo a moral do povoado. O povo estava dividido: As mulheres que se chocaram com a santa de preto e vermelho queriam sua retirada, as que tiveram a conquista de alguém ou a salvação do casamento queriam que ela ficasse. A confusão foi tão grande que tiveram que chamar monsenhor Xavier que morava na sede do Município. Ao saber do fenômeno, o homem santo questionou a si mesmo: “Como o mesmo santo pode encarnar Deus e o diabo?”

A santa foi examinada por um grupo de teólogos vindo de Aracaju. Os mesmos constataram que o objeto era uma santa de barro, e que tinha uma idade avançada, mas, era apenas uma santa. Em momento algum a santa virou a mulher de preto e vermelho. Os religiosos retornaram para a capital sergipana certos de que se tratava apenas de crendices do povo.

Foi no mês de novembro do ano seguinte que a coisa ficou mais séria. Alguns maridos se queixaram de suas mulheres: “Essas mulheres quanto mais rezam mais ficam quente. Eu num tenho mais idade para isso não!” Muitos milagres foram realizados. Seu Antônio que não podia andar sem a ajuda de sua bengala foi curado na missa de domingo. Com os milagres e as contradições, a santa tornou-se um objeto de todos os tipos de devoção. As pessoas do culto afro queriam fazer uma devoção a santa à meia noite, pois, para eles a santa era, na verdade uma Pomba Gira. O vigário recusou o pedido. Os devotos do exu Pomba Gira foram reclamar a Federação na capital do estado:

- Estamos aqui para fazer uma acusação grave de preconceito e constrangimento religioso.
- Calma! Pai Jorge, Calma! Qual é o problema? Perguntou a Ialorixá “Mãe Cislene de Oxum”.
- Nós queremos fazer reuniões na igreja. Estamos apenas pedindo o nosso direito. O exu Pomba Gira é uma santa pela metade, ou seja, ela, pela noite, deixa de ser santa e vira uma Pomba Gira.
- Mas que é isso meu irmão! Isso é um absurdo! Onde já se viu um exu na casa de Deus!
- Cislene você conhece o oráculo de Pai Miguel que ele deu antes de bater as botas?
- Não.
- Então, ele disse que chegaria um dia que Exu ia morar no altar com os santos, e quando esse dia chegasse as pessoas seriam mais sinceras.
- Deixa de conversa rapaz! Exu num vai pra casa de Deus não! Jorge se irritou com a Ialorixá e virou a mulher em Pomba Gira, a mesma deu uma gargalhada e disse: “Não existe coisa melhor do que um exu na igreja!” A gargalhada da mulher acordou o povo do povoado que imediatamente trancaram as portas.

- Que foi mulher?
- Num ouviu não?
- Não!
- Deixa pra lá.

A federação entrou com medidas jurídicas contra a paróquia. A paróquia exigiu seu direito ao culto a santa porque quem a encontrou era católico. A justiça considerou o argumento da igreja mais justo. O povo do Axé ficou triste: “É, nós estamos impedidos de cultuar nossa santa na casa de Deus”.

A pequena paróquia do pequeno povoado do Riacho do Junco crescia. O povo da sede do povoado passou a frequentar a igreja de Riacho do Junco. A igreja ficava lotada. E com isso, o povo do povoado começou a reclamar e a dizer: “Vão para igreja de vocês!” A confusão estava feita. O povoado contra a sede, e a sede contra o povoado. Um grupo de afrodescendentes, finalmente, sequestrou a santa. Isso ocorreu no dia vinte e três de novembro numa noite de lua minguante. Arrombaram a porta do fundo da igreja e levaram a santa Pomba Gira.

- Miguelina, mulher, nossa santinha! Nunca a vi de Pomba Gira.
- Isso é invenção do povo!
- Num é o que mulher! Levaram a santa para fazer macumba na bichinha!
- Isso é uma abominação a Deus!
- Num é o que mulher!

O povo sente a falta da santa. Os casamentos começaram a desmoronar, as pessoas passaram a sentir ansiedade e ter depressão. A santa do Rio fazia falta ao povo do Riacho do Junco. “Mulher, eu quando rezava pra santa sentia um fogo por meu marido, ave, era uma coisa forte mesmo, mas, agora, estou fria que nem mármore!” Todo mundo tinha uma coisa a dizer para justificar a volta da santa. Padre Oliveira recebeu um aviso que a santa estava no barracão de Pai Jorge. Segundo a denúncia ofertaram sete galinhas dispostas em sete pratos de barro. Na missa das cinco horas da tarde o vigário desabafa sua indignação:

“Meus irmãos do Riacho do Junco. Saibam que há pecado para morte, e este foi um deles. É uma blasfêmia contra Deus o uso de uma santa católica no culto de terreiro. Como pode Deus e o diabo estarem unidos, cúmplices! É um agrave forte. As pessoas que fizeram isso pagarão caro!” Na noite do mesmo dia, o barracão de Pai Jorge comemorava a volta de Pomba Gira para seu terreiro. Os tambores aturdiam o povoado, os foguetes estralavam no céu. Era noite de Maria Padilha, a rainha do Candomblé. No centro do altar do gongá estava a santa transformada em Exu. Em momentos alternados Pai Jorge fazia menção a santa e dava um banho de cerveja nela. As mulheres do terreiro e alguns homens viravam exu Pomba Gira. A festa estava bonita até a polícia chegar. O delegado Rodriguinho fora designado para investigar o caso. O terreiro calou seus tambores ao ver a viatura policial. Pai Jorge vira homem novamente para receber as autoridades.

- Recebemos informações que a Santa do Rio que havia sido subtraída da igreja do povoado está aqui.
- Não, acho que aqui num tem nenhuma santa não.
- Mas, mesmo assim, nós iremos dar uma olhada A policia procurou pela santa e nada. O povo do terreiro comemorava o livramento de dona Maria quando o relógio da igreja bate meia noite. Ouve-se, então, umas gargalhadas vindo de entre os santos no altar de exu. Era a Santa do Rio que havia virado Pomba Gira. A santa dançava e rodava a cintura feito uma cobra. Era de fato uma santa pomba gira. O povo do terreiro gritava de alegria e soltava foguetes. O povo da igreja estava triste, mesmo assim, o vigário garantia que banhando a imagem na água benta ela ficaria santa novamente, então, começa o tumulto para pegar a santa. Alguns irmãos católicos permaneceram em oração, enquanto isso o soldado Henrique que também era católico mais o soldado Juracy que era evangélico partiram em direção o altar, Pai Jorge se põe no caminho gritando: “Só sobre o meu cadáver, minha Mãe não vai sair da aqui!” os dois PMs ignoram as palavras do sacerdote e pegaram a santa do altar, esta dá uma risada nas mãos de Henrique que de imediato vira uma bicha cheia de palavreado esquisito. Coisas como: “Parem essa safadeza de vocês, quem não sabe que dentro de vocês existem uma santa e um exu, vocês não tem olhos para ver não?” Nessa altura, as coisas estavam sob máxima tensão. Aproveitando que Henrique estava espiritado, pai Jorge pega a santa das mãos dele. O soldado Juracy corre e pega a santa da cintura para baixo e Jorge da cintura para cima. No puxa-puxa, os dois partem a santa ao meio. O silêncio foi absoluto. Só se ouvia o coaxar dos sapos e os grilos cantando. Por alguns minutos ninguém disse nada. O silêncio no pé de serra do sertão falava muito alto.

Minha pessoa, embora menino pré-adolescente, um púbere observava o desfecho do problema. Jorge segurava um pedaço de sua pomba gira e Juracy o outro. “Agora não havia mais nada”. Pensei eu ansioso para entender o mundo dos grandes. Nas mãos de Juracy a santa se move, se contorce como que estive com dores de parto. Ouve-se o sofrimento de mulher no meio do tempo. Uns diziam que a voz vinha do mato, outros diziam que era imaginação. A metade nas mãos de Jorge faz a mesma coisa. O enfermeiro Valdomiro – aquele que aplica a melhor injeção em Campos pede aos dois as partes separadas alegando que o que estava para acontecer era um parto. O povo caiu na gargalhada sendo interrompida quando Valdomiro diz a santa: “Força, respire forte, isso!” O trabalho de parto durou alguns minutos que pareceram horas. O povo sem perceber intercedia pela santa ou pela pomba gira. Pela primeira vez as duas religiões choraram juntas por seus santos. A comunidade vendo a cena fraternal se juntou ao grupo que rezava para que a imagem da santa tivesse um parto bom. E eu, um menino ainda me perguntava: “Mas, o que vai sair daí?”

A santa deu a luz a duas crianças. O primeiro a sair foi um homem. Na sua cabeça havia dois toquinhos, parecia uns chifrezinhos, e a outra um Nossa Senhora toda de branco. Infelizmente a imagem da santa do Rio estava quebrada depois do difícil parto. O padre enterrou sua parte no cemitério ao lado da paróquia, a outra parte foi jogada no rio.

O povoado do Riacho do Junco desde então não fala mais de religião. Todos se respeitam e sabem que Deus tem muitas histórias para contar. Eu cresci e fui depois morar na beira da praia. Um dia caminhando na areia ouvi uma voz que me dizia: “Menino tens visto a Santa do Rio?” Na minha mente eu respondi que não. A voz de mulher continuou dizendo: “Então, veja!” Sim, meu amigo leitor, hoje sou velho, e digo de coração o homem imagina sem limites, então, cada um viva seu sonho em paz!