terça-feira, 1 de novembro de 2016

VIDA BOA

Tenho feito tantas perguntas; tenho buscado saber o sentido dos homens, pois, eles nascem, crescem, correm e param, mas, não sabem de onde vieram. É sabido que nós seguimos a trilha que foi posta pelos mais velhos, sim, de um jeito ou de outro, fazemos todos nós as mesmas coisas.

Alguns dizem que o Eterno nos fez. Isto eu não questiono; na ausência de sentido, nada faz sentido, além do mais, vejo que a quimera ou a ilusão de ser, ou de um quem-dera é o canto dos mártires quando a tarde declina.

A aurora da manhã é minha amiga trapaceira; ela é a esperança do que não é, ou do que pode ser, ou, na pior das hipóteses, um dia triste debaixo do viaduto.
Ela é o marco inaugural de um novo cansado dia, ou de um dia, simplesmente, novo. É a feiticeira que engana a todos com seus oráculos iluminados pelos os primeiros raios de um sol tropical. Este é o sol que vacila na imensidão de um espaço que eu não conheço.

Saber ou não saber o que será é dor e alegria para um ébrio que foge do dia e ama a noite como eu. A noite em que os vampiros saem de sua tocas, e as serpentes de suas locas até que novamente o mesmo evento se repita aqui e ali. Por isso dizem que tudo se desfaz como as rochas se desmancham com o vento.

Ah, que vida boa de ser vivida!
Ah, que mundo tão explícito!
Ah, que razão tão racional!

Nosso animal, essa besta nossa e vossa, anda solto travestido de gente granfina, ou de gente plebe que pede o pão em toda e qualquer esquina de nossas cidades de novas e velhas idades e cruel rotina.

Os objetos e os homens executam a marcha marcial da existência. Todos dizem: “Eu existo”. Ontem, vi uma caixa de fósforos a conversar com uma senhora de palha na televisão. As coisas e as pessoas se tornaram a mesma coisa e ambos são sucatas de um ferro velho no final do mês. Elas tentam romper a resistência das horas, dos dias, dos anos, no entanto, no final de mais um dia, tudo se dilui no solvente do tempo.

Olhei a vitrine de uma loja que ficava na Rua José Olímpio; nela vi o rosto de um menino até que seus vidros frios e esmigalhados por uma pedra caduca desmanchassem meu delírio. Cada estilhaço espalhado na calçada de cimento e aço refletiu meus traços, minhas rugas, minha decrepitude.

Sou mais um na imensa multidão de ninguéns; sim, no mundo das massas, nisso que chamamos de comunidade, ou sociedade, nada é um; tudo é todos e ninguém.
Oh, que vida boa!
Oh, que orgasmo existencial!

Melhor é viver com as raparigas de que com a mulher escolhida, disse seu Erogildo.
Disso eu não sei. Na verdade, nada sei, pois, tudo que digo é uma canção já cantada no bar de dona Firmina . Não há originalidade em mim. Nem identidade em ti.



Contudo, a vida é tudo o que me interessa.
A vida, com pressa ou sem pressa, deve seguir seu destino.
A vida, mesmo sem acessórios, ou sem mimos, ou sem muita história narrada, deve seguir seu curso com ou sem um porto seguro.

A vida é um sonho que não entendo, todavia, insisto nele.
Seja sofrida devido à lida;
Seja a pura labuta, triste ventura do terceiro mundo;
Seja abundancia que enche a pança;
Seja a tristeza de uma noite sem nada pra fazer;
Seja o adeus de teu amigo ou de teu filho ou filha que deixastes no jazigo abrigo.
Seja como for, viver é o que conta!

Se tu me disseres o contrário, não te pagarei salário.
Se tu fizeres da vida uma despedida não serás meu amigo;
Serás apenas uma mordida de um cão raivoso.
E se tu decidires viver, mesmo de qualquer forma, então, juntos diremos: “Que vida boa”, não importa o minuto, ou o segundo, viver é preciso malgrado o mundo, ou a espada da morte…

A FEIRA DE AREIA BRANCA

- Acorda Clodoaldo! Acorda macho! O caminhão chega já, homem! Dona Bispo havia preparado tudo para descer até Areia Branca onde a feira prometia ser a melhor do ano.
- Rapaz, esta feira eu não perco de jeito nenhum! Acorda! Acorda macho mole! Com a palavra mole, Clodoaldo deu um pulo da cama onde estava e entrou de vez na calça jeans pendurada no prego ao lado. Clodoaldo era um homem de meia idade que havia casado com dona Bispo e ido morar em Campo do Brito, Sergipe. Clodoaldo era funcionário público, “tinha o seu” como dizia para os amigos, mas, gostava de ajudar dona Bispo nas feiras de Areia Branca. O rapaz de 32 anos, estatura média, cor morena clara, olhos claros acastanhados, e cabelos pretos como a noite havia se afeiçoado pela dona de beleza singular. As mulheres de Campo do Brito possuem uma beleza sem igual. São altas, brancas, olhos azuis ou esverdeados, e corpos de estrelas de cinema. Dona Bispo era uma delas. Uma jovem campense, no começo da vida. “Eu num perco tempo não”. “De trabalho eu num corro, macho”. Os dois puseram as mercadorias no caminhão de seu José às três e vinte da madrugada e desceram a serra em direção à famosa feira de Areia Branca.
Areia Branca foi fundada em 11 de novembro de 1923. Com uma economia voltada para a agricultura, e uma localização geográfica privilegiada por está no agreste itabaianense, Areia Branca se elevou a categoria de cidade por seu crescimento e progresso. Mas, não foi só isso. Contam os mais velhos do lugar que a feira de Areia Branca chegou primeiro que a cidade. “Areia Branca sem a feira, num é nada”. E isso pode ser logo observado pelo visitante. Quando alguém pensa em visitar a terra das areias brancas como as nuvens, pergunta: “É dia de feira?” Em Aracaju, capital do estado, é fato, entre o povo que ir a Areia Branca só presta em dia de feira. Parece que por lá, a cidade tornou-se a feira e a feira em muitas outras coisas.

- Chegamos? Perguntou Clodoaldo passando a mão direita no rosto e cuspindo do banco de madeira no calçamento sujo da entrada da feira.
- E veio dormindo foi homem? Perguntou dona Bispo com o semblante sério.
- Que dormindo mulher! Sou homem de dormir na feira!
- E na feira de reis do ano passado quem derribou o saco de tomate na estrada? Foi eu Clodoaldo, foi?
- Calma Bispo! Relaxa gente boa! A feira só está começando! Vamos lá! O casal desceu as coisas e as arrumou na barraca que ficava bem no meio da feira.

Eram cinco horas da manhã quando seu Gilson liga o som. Gilson era um vendedor de CDs piratas. Diz o povo daqui que: “Sem piratas nós num vevi”. “Vender sucesso de hollywood por um real é o jeitxo”. Gilson liga os alto-falantes de seu carrinho de som adaptado a rodar nos becos estreitos da feira. O primeiro sucesso daquele sábado foi: “Chora não neném”. Então, foi ao som de “Chora não neném” que o casal bispo iniciou sua labuta de feirante.
- Quanto é o quilo de tomate?
- É 2,50, senhora?
- Dois e cinquenta! Eitxa, como tá caro! Num dá pra fazer mais barato, não! Geralmente, no inicio do dia ninguém dá desconto. Cada centavo para o feirante é uma questão de vida ou morte.
- Não senhora. Disse dona Bispo com ar de quem num pode não. A mulher continuou a barganha: “E o melão faz a um real?”
- Não senhora. O melão é dois e cinquenta, também. A mulher forte, de nariz de águia, cor branca avermelhada e cabelos loiros coçou o queixo e perguntou: “Nessa barraca tudo é dois e cinquenta, é?” Clodoaldo levantou o rosto do banco onde estava a ensacar quiabos e responde. “Não senhora”. “Nosso preço é o melhor da feira”. “Dê uma volta e confira”. A mulher olhou o moço como que não acreditasse em suas palavras e se despede sob o som de “Nossa Senhora” cantada por Roberto Carlos. Certamente, a Virgem Santa cuidaria da mulher. A feira de Areia Branca estava só começando.

Na feira de Areia Branca se encontra de tudo. Verduras, frutas, cama, mesa, banho, cachaça, fumo de rolo, mobílias de madeira de lei, panelas, ferragens, garrafadas, passarinhos e aves em geral, e se a pessoa souber andar por ela, só Deus pode dizer o que o dinheiro pode comprar na maior feira do pé da grande serra de Itabaiana.
Às sete horas da manhã, após, o pontapé inicial, o feirante procura o que comer. É o café do feirante. As barracas de lanches e comidas caseiras ficam cheias de faces de todas as cores e matizes. Umas são pretas como carvão, outras pardas, outras brancas agalegadas. Uns tipos humanos parecem pigmeus, outros são tão altos como os europeus do velho mundo. Em Areia Branca, todas as cores celebram o Brasil. A barraca mais assediada da feira é a da preta Maria, ou como a mulher é conhecida pelos mais antigos: “Dona Pretinha”.
- Dona Pretinha, eu quero um copo de café preto com um prato de macaxeira com carne de boi e porco.
- Quer misturado, né?
- Carne de boi, porco, e sol!
- Certo meu fio, sai já! O barulho dos talheres e de vozes de pessoas diferentes enche as barracas da feira nessa hora. E esse é o momento em que a voz do povo é ouvida. É a fala do Brasil que ecoa dos rincões do agreste sergipano.
- Rapaz, a saca de batata está a 220! Isso é um absurdo! Como é que a gente vai fazer preço?
- É a peste mesmo Antoninho. Isso é a peste!
- A peste é o cabrunco! Se essa mulher continuar assim, o sertanejo vai morrer de fome!
- Morre não macho. O nosso couro é de cobra.
- Mas, cobra também come, homem!
- Está sabendo que as prefeituras só vão pagar dia 11 de janeiro?
- Não! O rapaz coçou os olhos com o gosto da pimenta de cheiro que estava na carne.
- Então, a feira hoje será um descalabro!
- E é mesmo, todo mundo esperava coisa melhor para a primeira feira do ano! Todo ano essa feira é um sucesso.
- Rapaz, os políticos estão acabando com o pobre, você num vê não na televisão?
- Num vejo o que rapaz! O mundo vai pegar é fogo. Em todos os cantos o comentário era que o mundo ia se acabar e os comunistas iam tomar conta da feira. Mas, a feira de Areia Branca era maior que todo o desânimo e descrença. A feira continuava e o povo chegava com vontade de comprar. Seu Gilson passeava com seu carro por entre as barracas e tocava o sucesso: “Eu levei foi gaia”. A música subia ao céu, e o povo das barracas, em coro, repetia o refrão do sucesso. Logo em seguida, o som religioso inundava a psicosfera do lugar, era Gilson mais uma vez abrilhantando a festa feirante com o som Gospel “Eu quero te adorar”. Gilson tocava de tudo, e isso o tornava muito procurado pelo povo da feira.
Bem defronte a barraca do casal Bispo estava a barraca da irmã Tereza. Tereza era uma mulher que fez o pedagógico e lecionou por quinze anos. Com o tempo a mulher usou o seguinte raciocínio: “Salário de professor é uma vergonha, eu vou é para Areia Branca vender na feira”, Com o tempo, a mulher fez uma puxada na casa, construiu mais um quarto e comprou um carrinho, um celta 2008. Tereza quando percebeu que dona Bispo estava a fazer feira acompanhada de seu marido ela passou a trazer o seu:
- Robertinho, em nome de Jesus, você vai fazer a feira comigo!
- Como mulher? Eu sou obreiro, preciso ler a palavra, preciso jejuar, como vou á feira contigo?
- Deixa de ser preguiçoso macho! O Senhor num quer isso não! Robertinho passou, então, como Clodoaldo, a fazer feira com sua mulher. Contudo, após, arrumar as mercadorias, Robertinho se deitava sobre as caixas e lonas e tirava um sono. Na feira, existe uma população de gente que vai só pra dormir, e Robertinho era um desses.
- Acorda homem! Vai pegar saco que aqui num tem mais não!
- Já vou mulher! Robertinho não gostava de ser acordado, exceto, quando um freguês bem vestido e cheiroso chegava para comprar farinha. Nesse momento, o homem da Serra das Minas estava com os olhos bem arregalados. Dona Tereza era uma mulher religiosa, todavia, a natureza havia lhe conferido uma aparência diferenciada. Tereza era linda. Não se pode dizer qual delas seria a rainha da feira de Areia Branca se era Tereza ou dona Bispo de Clodoaldo. Tereza era esbelta, branca, estatura média, cintura bem desenhada, olhos claros castanhos, e cabelos da mesma cor. Quando ela tirava os óculos para pesar farinha, feijão ou outra coisa, seu rosto bem afeiçoado se destacava. Poucas não foram as vezes que a pobre pedagoga fora assediada no exercício de suas funções. Mas, isso nem se compara a tentação que mulher teve quando viu Clodoaldo. O fato foi num sábado do mês de outubro. Dona Bispo dera o ultimato a Clodoaldo: “Meu bem, a coisa é pesada pra mim, pode me ajudar na feira?” Clodoaldo, prontamente, foi ajudar sua mulher. O rapaz chegou a Areia Branca por volta das quatro da matina, desceu as caixas do carro sob a orientação de dona Bispo e seguiu para a barraca. Defronte a mesma estava dona Tereza a arrumar suas coisas. Tereza o viu e sentiu o que seu coração não sentia há muito tempo. O órgão cardíaco acelerou e seu rosto suou quente: “Quem é esse homem?” A mulher guardou isso dentro de si e só Deus sabe onde está. As duas barracas defronte da outra, isso é coisa de feira, isso é coisa do destino. Tereza na frente, e dona Bispo ao lado. Clodoaldo não fazia a menor ideia do que estava a acontecer no oculto da feira. Dizem os velhos barraqueiros que toda feira tem uma segunda feira. A segunda feira é aquela que poucos veem, e quase ninguém leva em conta, mas, que ela pode, até certo ponto, determinar a vida e a morte.
- Clodoaldo, vá pegar café; vá meu neguinho! Dona Bispo passa a mão na cabeça de seu marido ao externar sua necessidade. Seu marido, rapidamente, se põe sobre os pés e segue em busca da cafeína das dez horas. Às dez horas, Gilson aumenta o som; a feira, nesse horário está como um gigante formigueiro de gente. Agora, o fundo musical de Areia Branca é “Minha mãe deixa eu sentar”. As moças que passeiam pelos becos entre as barracas ficam faceiras com os sucessos de Gilson. Tem até algumas que ensaiam uma coreografia. A hora de quicar ou do “minha mãe deixa eu quicar” é acompanhada de assobios e gritos da plateia masculina. Clodoaldo pega o café de sua mulher, mas, passa pela barraca de Caldo de cana.
- Oh Zé! Um caldo de um e cinquenta!
- Só o caldo?
- Rapaz eu estou de dieta. Num posso comer pastel, coxinha, enroladinho e uma ruma de outras coisas.
- Ah, se é dieta, então, se cuida! Clodoaldo sai do caldo de cana tomando o seu a caminhar. Uma mão segurava o caldo, a outra o café, e então não sobrava mão para se defender das pessoas que passavam apressadas. O rapaz num viu, mas, dona Tereza estava a comprar peras na barraca ao lado do caldo de cana. O rapaz tombou na moça que derribou as peras e ele o café e o caldo.
- Desculpe dona Tereza! Mas, já pensou que coisa!
- Desculpe Clodoaldo! Perdeu o caldo e o café?
- O caldo eu já tinha tomado quase todo. O rapaz responde a pergunta da senhora a apanhar as peras da mesma. Clodoaldo viu as pernas da mulher, ou o que sobrava da saia que lhes cobriam até os joelhos. Aquelas pernas eram duas colunas de mármore branco cobertas com seda da china. O desenho da cintura era de uma sereia moça virgem que nunca havia conhecido um homem. Mas, a mulher era casada. E Clodoaldo também. O rapaz desvia os olhos, se recompõe, e se põe em pé. “Desculpe Clodoaldo”. A mulher repete novamente. O rapaz faz o mesmo e entrega as peras da mulher. Seus olhos se encontram e a mulher suspira sem perceber. Clodoaldo sente o calor da testosterona nas suas veias, no entanto, desvia o olhar das duas esferas brilhantes que estavam a mira-lo. De rosto baixo, o homem sertanejo continua.
- Estão todas aí, dona Tereza?
- Sim, acho que sim. O perfume dos dedos da senhora impregna os seus. O cheiro invade o nariz do homem e o leva ao passado, o passado chamado “Fontinha”. Fontinha fora sua primeira esposa, a mulher de sua mocidade. No entanto, fora Fontinha que havia feito o rapaz mudar de vida. Os anos passados com Fontinha foram anos mesclados de prazer e muito sofrimento. Nos primeiros anos Fontinha manifestou-se para o rapaz como uma leoa insaciável, mas, depois que ela passou a frequentar o salão de beleza de Carla do Amarantes, a moça mudou: “Fontinha, isso é hora de voltar pra casa?” “Antes de conhecer você, eu vivia assim, então, eu quero que seja sempre assim!” Por um momento, dona Tereza e Clodoaldo vivem a tentação de todos os mortais, mas, a feira tem de tudo. A cachorra baleia furta da barraca de seu Furtado um peito de frango. E o homem sai como doido correndo pelos becos atrás do animal meliante. Na perseguição, o casal é despertado pelos gritos do feirante que em alto e bom som amaldiçoa o ser canino com seu repertório. “Vocês viram a cabrunca preta da baleia?” “A desgraçada me levou um peito gordo, filha da peste!” “Não”. Os dois responderam uníssonos ao homem. Clodoaldo voltou para a sua mulher e Tereza para seu marido.

A feira não pode parar. Seja dia de chuva ou sol, o feirante ganha a vida lá; e esse é o sentido em todas as feiras do mundo. Em Areia Branca, não é diferente. Gilson, novamente, passa com seu carrinho de som. Desta feita é “Borboletas de Vitor e Léo”. O povo canta enquanto vende e compra e a feira vai seguindo até às 11 horas do dia.
- Meu amor ainda tem muita coisa aqui. O povo tá sem querer comprar.
- Vou baixar o preço da batata. Agora eu faço a 2,00 reais.
- E o mamão meu amor é de quanto agora?
- Faço a 1,50.
- 1,50? Está de graça!
- Fazer o que se num baixar, ninguém compra! Clodoaldo ganha coragem e anuncia a nova tabela de preços: “É a 1,50! Eu digo e ninguém acredita! Mamão da carne vermelha a 1,50!” “Um saco de limão, dez limões por 1,00 real, eu digo é 1,00 reaaaaaal!” “A cebola tá a 3,00, é a três reaaaaal a cebola!” Logo, logo, todos do beco fazem o mesmo, e a sinfonia de preços toma conta de Areia Branca.

Na barraca de seu Antônio, a alegria nunca cessa. O povo quando quer tomar uma boa serrana ou qualquer outra pinga é só pedir ao homem, pois, o mesmo tem de tudo. O pessoal que gosta de pinga às cinco horas aguarda o comerciante chegar. Seu Antônio viveu toda a sua juventude na feira, por isso, seu lugar é conhecido de todos. “Seu Antônio, bota uma aí”. Esta frase é ouvida a manhã toda e em pouco tempo a feira está cheia de gente alegre. Tem alguns que ficam engraçados como Tadeu de Amargosa. O homem praticamente mora na feira. Diz o povo que sua mulher o trocou por um motorista de firma, desde então, Seu Amargosa, amargou de vez, e foi dormir na marquise do “Talho de Carne”. O senhor Amargosa tornou-se cliente assíduo de seu Antônio. Aos sábados entre às cinco e onze horas, era sagrado fazer ponto por aquela barraca e junto com ele outros com histórias semelhantes faziam o mesmo.
- Eu, hoje, se morrer, morro bem!
- Vira essa boca para lá homem! Retrucou dona Matilde.
- Quem foi que te perguntou alguma coisa caixa de osso?
- Caixa de osso é sua bunda, seu filho da peste! Sou uma beba, mas, bebo com meu dinheiro.
- E vai beber com o dinheiro dos outros, é?
- Com meu dinheiro não, sua peste! Disse Marcílio, um crente desviado do evangelho.
- Cala a boca que ninguém tá te perguntou nada!
- Amargosa! Amargosa!
- Sim!
- Rapaz, me empresta aí um real!
- Peça aí a Antônio para botar uma para você! Seu Antônio atendeu o moço Marcílio que foi prosear com Amargosa nas tábuas que ficavam atrás da barraca de seu Antônio. Ali, os bêbados criaram uma confraria que aos sábados se reúne fielmente. Mas, nem sempre a festa é boa com esse povo. Às vezes a cachaça pega de verdade e o povo faz muita besteira.
- Rapaz, Zé tá doidxo!
- O que foi? Perguntou Amargosa com a voz pesada.
- Pois, Zé num tá mijando no meio da feira, lá no pé do poste de luz! Uma mulher já reclamou e o povo vai reclamar do fedor quando o sol esquentar a urina.
- Eitxa que Zé doidxo! Amargosa exclamou sua indignação com um copo de serrana na mão direita que o ajudou a fechar a boca com um gole da mesma. A coisa desceu doce, depois, amargou, e Seu Tadeu de Amargosa seguiu com uma tropa de bêbados para fazer sua caridade do dia – Salvar um bêbado do linchamento popular. Era Amargosa na frente e os outros atrás. No percurso, o povo sem entendimento, não perdoava a história do moço: “Eu levei foi gaia”. Era o que o povo cantarolava ao ver o homem da marquise do talho de carne. Ao ouvir o refrão do sucesso brega, Amargosa perde o controle e resolve discursar no meio da feira de Areia Branca:

“Meus caros, eu sou corno, mas, sou um homem de bem. A cornidão num é o fim de tudo, pode ser até o começo de uma nova era. Achar que o corno é menor que os outros é coisa de gente besta, pois, afinal, quem de vós, aí, pode me dizer com exatidão que não é corno?” O silêncio caiu sobre o povo. Algumas senhoras começaram a falar baixinho com as amigas. Os senhores e os rapazes começaram a rir aquele riso amarelado. O rapaz mijão saiu de fininho tombando nas mesas. O silêncio fez a voz de Seu Agostinho, de Vazea Alegre, Ceará, ser ouvida: “Essa pomada é feita de ervas xamânicas dos antigos habitantes do Araripe”. “Se você foi enganado, traído, seja homem, seja mulher, senhor ou senhora, trinta segundos depois de aplicada aparecem os chifres”. Os bêbados sentados nas tábuas que ficam atrás da barraca de seu Antônio entraram em crise de riso. Chico magrinho coçou o saco repetidamente enquanto a gaitada fluía. Zé Negão cuspia pelos cantos o ranço da pinga. As meninas sabidas do jogo do bicho deram uma gargalhada que lá na “BR” o povo ouviu. As mulheres se viraram na direção do cearense. Os homens fizeram o mesmo. Amargosa continua seu discurso:

“O ser corno é uma benção para a evolução da humanidade masculina. Se a mulher não tiver sua liberdade para fazer o que os homens sempre fizerem, o equilíbrio não existirá na terra. As mulheres devem acordar para esse causo...” Com essas palavras concluiu Amargosa seu pensamento. Os cães gordos das barracas de carne latiram alto para o discurso do homem triste da marquise. Todavia, Amargosa não tinha audiência, o povo foi ter com o cearense de Vazea Alegre. Trinta segundos depois, a população feirense entrou em pranto, e, ora em riso, ora em histeria. Muitos chifres nasceram nas cabeças dos homens e das mulheres. Em algumas mulheres nasceram verrugas nas ventas, e em outras, os dois, ou apenas chifres. Segundo a Prefeitura, a quantidade de chifres contados superou a de verrugas. Esse episódio causou comoção no povo e esse foi o sábado em que a feira parou, ou quase parou. Ninguém ousava olhar para o lado e os espelhos eram evitados. Cada um arrumou suas caixas e foi para casa. Bispo e Clodoaldo seguem para Campo do Brito. O casal não se olhava como as demais pessoas. Durante o percurso no caminhão o casal teve um dedo de prosa, mas, cada um olhava numa direção diferente.
- Rapaz, o que foi aquilo, hein?
- Sei não. Parece que Jesus vai voltar.
- Será mesmo?
- Eu vou é voltar para a Igreja.
- E você já foi para lá?
- Passei uma semana.
- Ah, isso é brincadeira.
- Brincadeira não! É sério amor!
- Como você me chamou?
- Como assim?
- Você disse uma coisa aí!
- O que?
- Deixa pra lá!
- E a feira parou?
- Parou o que Clodoaldo! A feira de Areia Branca num para nunca.
- E por que o povo foi embora?
- Rapaz, tu estás te enganando? O povo foi embora porque era meio dia. O povo já havia comprado suas coisas e as pessoas ou pouco ou muito já haviam vendido.
- Rapaz, foi isso mesmo. O caminhão seguiu estrada rumo ao Brito onde ficará até a próxima feira...

FIM