quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A TAÇA

Num armário da casa de meu pai havia uma taça.
Ela era de puro cristal; não sei de onde veio, na verdade, isso nunca me preocupou.
Em minha vidência do passado, a taça estava lá.
Sempre no mesmo canto, cansada, no mesmo lugar.

Ela era uma taça que andou por muitas mãos.
Deve ter sentido algum coração, sei lá, sei não!
As pessoas amigas da casa a tiveram beijando suas bocas muitas vezes.
Elas eram pessoas que pareciam fregueses.
Todos os lábios, e todos os dedos sentiram seu peso leve com um pouco de vinho ou champanhe.
Confesso que até minha humilde pessoa a tocou as escondidas quando criança.

O armário e o ser feminino mantiveram uma relação amorosa por décadas.
A casa foi ficando vazia, mas, ela estava lá, seu brilho, eu ainda vejo de cá.
Minhas irmãs saíram de casa; a taça ficou um tanto empoeirada.
Meu irmão mais velho foi morar sozinho, a taça nem rachou, mas, o armário não era o mesmo.

Depois meu pai, sim, meu velho me disse adeus na escadaria da frente.
Um dia me lembrei da taça, a mesma continuava imóvel.
Mudamo-nos, agora, minha pessoa, e minha amada genitora dividíamos o mesmo apartamento, contudo, quando o vidente fechava os olhos, a taça estava lá, no armário da sala, da sala da frente.

A taça, a sala, a casa, a escadaria, as pessoas.
Um silêncio que fala em algum lugar.
Um coração choroso.
O menino crescido.
Um homem envelhecido.
O vinho bebido.
Um cheiro de família.
Ah, família!
Saudades...

GELO


O homem é escravo de seus símbolos.
Serve-os prontamente de geração em geração.
Poucos foram os que perguntaram sobre isso:
Havia uma cidade gelada.
Suas praças eram geladas.
Suas estátuas eram geladas.
Seus monumentos eram também gelados.
Suas casas tinham telhados gelados.
Seus prédios eram tão gelados quanto às leis que regiam os moradores da cidade.
O sol nasceu forte certo dia.
O gelo da cidade derreteu.
O gelo levou consigo a cidade.
Em seu lugar ficou uma poça de água fria.