domingo, 28 de janeiro de 2018

POSSESSÃO


POSSESSÃO
Por Roosevelt Vieira Leite


- Eu nunca faria uma coisa dessas! Isso não faz o meu estilo. Entendeu?

- Você pode estar certo, mas, também pode estar errado. Você tem certeza do que diz?

- Meu caro doutor. Eu estava na Praça da Matriz próximo ao trem quando eu vi Lucia com Gerinaldo. Não suportei e fiz o que fiz...

“Eu fui trabalhar aquele dia normalmente. Fiz as minhas obrigações cotidianas até que tudo desabou com um telefonema estranho. “Sua mulher está na praça com Gerinaldo”. Eu saí do trabalho e fui até a praça. Andei uns quatro quarteirões. De longe eu os avistei encostados no trem. Os dois estavam conversando. Aproximei-me. Eles nem perceberam minha presença. Continuaram a conversar. Lucia contava para Gerinaldo que deseja minha morte e que se soubesse de alguém ela pagaria para me matar. Gerinaldo a aconselhava que não, que entregasse tudo nas mãos de Deus.

- Ah, se eu soubesse de alguém. Eu mandava matar o Anderson. Anderson é um cara muito egoísta. Eu não suporto mais esse cara mandando em mim.

- Lucia, tenha fé em Deus. Existem outros caminhos.

- Eu sei, mas, dói muito amigo!”

Lucia era uma moça muito tímida e inibida. A menina tinha muito medo e insegurança sobre a sinceridade das pessoas para com ela. Desde nova que ela era assim: “Menina!” Deixa de ser complexada!” Era assim que Etelvina, sua finada mãe, dizia baixinho, perto de seu ouvido. Lucia amava muito seus pais. Primeiro foi Etelvina, o diabetes não perdoou. Depois foi Henry Clay, seu pai. O homem fumava muito, a doença braba nos pulmões o levou alguns anos após a morte de sua mulher. Lucia casou com Anderson aos dezessete anos. O casal foi morar na Rua Santa Catarina quase esquina com a Rua Acre.

- Aqui é tão bom meu amor!

- Sim, a gente tem acesso a todas as comodidades que o Siqueira oferece. Só precisamos ir ao centro em casos muito urgentes, pois, aqui, temos tudo por perto.

Por um bom tempo, o casal viveu as bênçãos de Deus. Anderson parecia ser um marido muito honesto. Um homem íntegro, cumpridor de seu dever.

- Mãe! Tenho que agradecer muito a Deus por Anderson, minha mãe!

- Sim, minha filha! Viva Deus! Seu marido é um homem bom.

O povo comenta que nos dias atuais, um casamento feliz é muito raro. As varas de família atestam a veracidade dessa suposição. As famílias estão em crise, mas, segundo Frederico, o filósofo do Siqueira: “O casamento é uma tortura necessária. Ruim com ele, pior sem ele”. Frederico tinha o costume de tomar umas, todas as noites, em um barzinho na esquina da praça mais famosa do Siqueira.

- Sim, minha mãe, Anderson é um anjo de marido!

- Vá por mim! Trate bem o rapaz, pois, esse rapaz é de ouro!

O eco da voz de sua finada mãe a acompanhava nos momentos de crise. Uma noite, Anderson chegou tarde. O moço cheirava a álcool.

- Anderson, meu amor, o que aconteceu?

- Você não sabe? Os ônibus estão em greve. Tive que vir a pé do trabalho. Tudo bem, vir a pé explica o horário, mas, o cheiro de cerveja dizia que houve mais coisa. No entanto, a menina Lucia, agora com vinte e cinco, preferia por uma pedra sobre o assunto.

- Vá tomar banho querido! Tem comida quente. Quer que eu ponha para você?

A moça era prendada como são a maioria das fêmeas nordestinas – Lucia fora criada para o lar definitivamente. Quando ela terminou o curso de Assistente Social ela dedicou tempo integral ao lar. Embora sem filhos, Lúcia se comportava como se fosse uma mãe cheia de crianças ao redor.

- Anderson você gosta de cortina rosa com babados brancos? Eu achei que a gente podia ir preparando o quarto de Alice.

- Que Alice?

- A nossa Alice!

- Lúcia, nós não temos filhos. E eu não quero ter filhos ainda. Tenho tanta coisa para fazer primeiro. Todas as vezes que seu marido dizia: “Tanta coisa para fazer primeiro”. Lúcia entrava em crise de ansiedade e depressão. A coisa começava com uma dor nas têmperas que com o tempo subia para o chacra coronário. Quando no chacra, a dor se transformava em um peso forte, uma enxaqueca quase insuportável.

- Mãe, graças a Deus que você veio, eu estou tão deprimida. Discuti com Anderson. Mãe, por que os homens não querem ter filhos?

- Filha, os homens não gostam de compromissos domésticos. Eles preferem a liberdade. Eles não têm o instinto de maternidade.

Lúcia tinha as crises constantemente. A casa estava acostumada com o quadro da moça. À vezes, ela se trancava no quarto e passava o dia inteiro sem fazer nada. À noite, quando seu marido voltava, a discussão explodia. Lúcia chorava e ia se deitar. O casal tinha a vida sexual reprimida em virtude dos problemas de temperamento. O tempo passou. Os pais da menina bateram as botas. Lúcia agora estava sozinha no mundo. Anderson começou a chegar cada vez mais tarde. A situação em casa piorava:

- Meu amor, eu não sirvo para você não, é?

-Não é nada disso Lucia! Estou fazendo hora extra no serviço! As horas extras demoraram meses para terminarem. Lúcia estava muito estranha.

Certo dia, Lúcia arrumava as coisas em casa. A calça bege de Anderson estava caída, quase escondida atrás do guarda-roupas. Ela encontrou um bilhete no bolso esquerdo, o bilhete dizia assim: “Anderson, preciso falar com você em particular, pois, não suporto mais a situação”.

A leitura do pequeno texto foi como uma bomba atômica para Lúcia: “Meu marido está me traindo”. Esse passou a ser o pensamento dominante na mente da jovem Lúcia. Um pensamento triste, por vezes, de agonia e muita ansiedade. O quadro da moça piorou. Agora, quando seu marido saía para o trabalho, a moça do Siqueira ia ao cemitério da Leste, e lá passava boa parte da tarde. Era assim que a moça aliviava as tensões de seu coração ferido. Lúcia passou a gostar da morte. Viu muitos enterros; viu muitas famílias chorando a perca de seus entes. Um dia, ela encontrou um rapaz amigo de Anderson no sepultamento de um moço que morrera de dengue. Seu nome era Gerinaldo. Este estivera na casa de Lúcia muitos sábados para assistir os jogos do Campeonato Brasileiro. Gerinaldo gostava muito de Anderson, era um amigo leal e sempre presente. Anderson, por vezes, mencionou seu nome para sua esposa. “Amor, eu estava com Gerinaldo”. “Querida, vou passar na casa de Gerinaldo”.

- Gerinaldo! Que bom que te encontrei!

- Oi, Lúcia, que satisfação, embora no cemitério! Que fazes aqui?

- Vim para o sepultamento dos ossos de papai e mamãe.

- Ah, meus sentimentos!

- Você não foi trabalhar hoje não? Já viu Anderson?

- Ele está lá trabalhando. Quanto a mim, eu pedi para dar uma saidinha rápida.

- Sei. Vocês gostam muito de umas saidinhas rápidas não é? Gerinaldo riu e continuou a conversa com a amiga de seu melhor amigo.

- Hoje em dia, para se resolver as coisas, precisamos muito dessas saidinhas no horário de trabalho.

- Preciso de uma saidinha sua. Disse Lúcia com um tom de tristeza. O rapaz percebeu de imediato que havia problema. Anderson, por vezes, comentara com seu colega sobre a depressão de sua mulher.

- Sim amiga Lúcia conte sua história.

- É que preciso muito, muito mesmo conversar com alguém sobre Anderson. Gerinaldo preferiu não contar ao seu colega que estava se encontrando com Lúcia para falar dele. Os encontros se repetiram. Lúcia abriu o coração para Geri. Gerinaldo se tornara Geri – uma pessoa de casa.

- Sabe meu amor, em seu aniversário vou chamar seu melhor amigo.

- Quem?

- Gerinaldo, ora, será que você não sabe que ele é seu amigo de verdade?

- Amigo somente Deus. Tenho conhecidos apenas.

- E eu? Não sou sua amiga não?

- Claro, meu amor, você é muito mais que isso!

Lúcia e Gerinaldo se encontraram algumas vezes no centro da cidade. A Praça da Matriz sempre foi linda e um ótimo lugar para se conversar mais a vontade. Anderson soube de tudo por meio de um telefonema anônimo, mas, não contou nada a sua esposa. O rapaz, muito desconfiado decidiu vigiar a menina.

- Rapaz, bem que meu pai dizia: “Amigo é Deus!”

- Procure ajuda especializada, Anderson. Você sabe que você nunca superou a cena que você viu no passado. Anderson viu sua amada genitora fazendo amor com um homem de etnia africana, que respondia pelo nome Djamal. Ele nunca esquecera os gemidos de prazer de sua santa mãe nem a situação em que ela se encontrava no momento da visão. Isso foi um trauma muito forte.

- Sim, acho que preciso. Anderson sentia cala frios por todo o corpo. Suava muito e tinha dores nos ombros. De manhã ele acordava com os dentes serrados. Estava sob tensão. Não mais dialogava com Lúcia. E esta pensava que tudo era por que seu marido tinha outra mulher.

- Gerinaldo! Preciso falar com você.

- O que foi Lucia?

- É Anderson. Ele está mais estranho! Gerinaldo atende a voz nervosa de Lúcia e marca um encontro na Praça da Igreja Matriz.

Lúcia estava tensa o tempo inteiro. Ela confessou que sua revolta era grande. Implorou que seu amigo Gerinaldo lhe contasse sobre o caso de Anderson. Gerinaldo nada disse e nada sabia na verdade. Tudo não passava de um mal entendido.

- Eu vou perder a cabeça Gerinaldo! Primeiro foi a falta de sexo, depois, hora extra, agora, bilhetes nos bolsos. Tá tudo muito estranho! Gerinaldo procurava amenizar as coisas. Mas, não obtinha sucesso. Foi nesse instante que Anderson chega e escuta a conversa de sua amada esposa. Ela confessa para seu amigo que desejava matar seu esposo. Ela pedia forças e apoio. Gerinaldo a abraçou para confortá-la. Seu marido, com os olhos esbugalhados via e ouvia tudo. Anderson vai para casa e espera sua mulher chegar.

O relógio da cozinha bate nove horas da noite. Lúcia chega à sua casa. A moça usava uma calça jeans azul desbotado, uma tomara que caia preta e sandálias pretas de couro. Seu rosto estava sujo de areia preta, seus cabelos desarrumados. Havia em sua aparência um ar de desespero. Quando o casal se encontra na penumbra da cozinha, Anderson pergunta ironicamente:

- Como vai o seu namorado Gerinaldo? Eu ouvi alguém dizer que me mataria! A voz do homem sobe muito a ponto de chamar a atenção da vizinhança. Contudo ninguém aparece. Lúcia responde a seu marido; os dois discutem por alguns segundos. Anderson empurra sua mulher contra a parede. Bate a cabeça dela na parede algumas vezes. Lúcia desfalece nos braços de seu amor. “E agora?” “Será que morreu?” “Eu ... eu ... não queria fazer isso!” “Meu Deus!” Anderson deita sua mulher no piso da cozinha e se senta ao lado de seu “corpo”. Por alguns segundos, o homem realmente pensa que Lúcia está morta. Ela respira e tosse. Isso foi um alívio para seu marido. Lúcia recobra os sentidos e passa novamente a agredir com socos a seu esposo. “Eu vou matar você!” Anderson se lembra da cena dela com Gerinaldo e de suas palavras ameaçadoras: “Eu devia matá-lo, tenho vontade de mata-lo”. Os dois iniciam uma luta corporal onde não se sabia quem seria o vencedor. Ela segura o pescoço de seu amor com as duas mãos tentando enforcá-lo. O mesmo ele faz com ela. O silêncio da casa foi quebrado com pancadas na porta. Anderson continua apertando o pescoço de sua amada. Seu rosto estava tão transfigurado quanto o dela, no entanto, Lúcia rendeu os braços esticando-os ao lado de seu corpo. Anderson deixa Lúcia no chão da cozinha e vai até a porta da frente. O vizinho ouviu a briga e veio perguntar se tudo estava bem.

- Seu Anderson tudo bem?

- Oh, Florivaldo, satisfação, rapaz! Como tudo bem?

- Minha mulher escutou uns gritos aqui. E...

- Ah, é a televisão do quarto que estava alta. Florivaldo tomou a direção do sofá e se senta. O mesmo faz Anderson. A conversa de vizinhos dura uns quinze minutos. Quando Anderson retorna a cozinha para ver sua mulher ela estava pálida e com manchas de sangramento interno no pescoço. Anderson sufocara sua mulher sem sentir. Ele entra em pânico. Pensa em chamar os vizinhos. Mas via que não podia confiar em ninguém. “Foi só um acidente”. Pensava ele. Ao mesmo tempo ele via que nunca mais teria sua mulher com ele. Lágrimas de saudade, tristeza e arrependimento caíam de seus olhos. “E agora meu Deus!” “Vou ligar para Gerinaldo!” “Não!” Ele se senta ao lado do corpo toma sua mão e a beija. Ao lado do cadáver, Anderson se lembra dos momentos juntos, no tempo em que eles eram felizes. Ele decide fazer amor com o corpo de sua mulher. Anderson tira-lhe as roupas e se serve do corpo de sua esposa morta. Com o corpo suado, Anderson se deita ao lado dela como se ela estivesse viva. Anderson pega no sono.

O barulho dos carros acordou a Anderson quase oito horas da manhã. O sol estava um pouco quente. Anderson se levanta e decide o destino do corpo. Ele decidiu cortar sua mulher em pedaços e guardá-la no freezer. De noite ele levaria os pedaços para algum lugar. Ele retalhou o corpo em pedaços pequenos. Os pedaços foram colocados em sacos plásticos pretos. A cabeça foi colocada numa caixa de papelão e enterrada no quintal.

A noite chegou e Anderson não levou os sacos. Mais um dia foi embora, e os sacos continuavam guardados. Anderson não saia de casa. Alguns vizinhos bateram na porta e não sentiram, ou viram nada. Anderson continuou em casa com o corpo congelado da mulher.

Numa manhã de terça feira, dia de Nosso Senhor, Anderson joga os sacos de lixo no container da rua. Eram sacos pretos pequenos. Os cães latiam muito. Então, me aproximei do local após sua saída e vi um pedaço de língua humana, eu acho. Um gato cinza lambia o dedo pequeno de uma mulher. Senti uma dor no peito forte. Lembrei-me da vizinha. Ela não mais apareceu pela rua ou pela casa. A polícia fez investigações sobre o paradeiro dela. Nada encontrou que incriminasse o rapaz ou elucidasse o caso. Depois do acontecido, Gerinaldo foi embora para Belém: “Tá louco, jamais voltarei para perto daquele canibal”. Anderson foi para a academia para ver se emagrecia um pouco. Seu psiquiatra, Doutor Belenildo, tem tentado descobrir alguma coisa, mas, nada sai da cabeça de Anderson.

- Doutor Belenildo!

- Sim, investigador Freitas.

- Anderson é louco?

- Não! Na psiquiatria ele não é doido, mesmo, que as pessoas no senso comum digam que ele é.

- E ele é o que então?

- Ele é um homem possuído pelas suas próprias fantasias.

- Então ele é um possesso?

- Sim, muito provavelmente!

Anderson chegou à sua casa às oito horas da noite. Comeu um pedaço de coxinha, assistiu um pouco tevê e foi para o quarto. Limpou a boneca que agora lhe fazia companhia e se deitou abraçado com ela.

sábado, 27 de janeiro de 2018

AQUI O TEMPO NÃO PASSA

“ AQUI, O TEMPO NÃO PASSA ”
Por Roosevelt Vieira Leite

Max, ou Maximiliano nasceu em Campos, estudou em Campos, e depois, aos 40 anos se candidatou a vereador e foi eleito com 3.777 votos. Não foi grande coisa não, mas, uma grande façanha foi seu projeto para o desenvolvimento e saúde da juventude. Maximiliano e sua mulher Gorete perceberam que a cidade havia sido infectada com os vírus do narcótico, da indolência, da obesidade. Max era um modelo de servidor público. Frequentava, assiduamente, a Câmara; fiscalizava com idoneidade as contas do município; acompanhava a agenda pública, e quando tinha tempo, visitava seus eleitores para conhecer melhor suas necessidades. Ele era um perfeito cidadão em ação. O projeto 0777/96 de autoria do mestre Rosenthal, entendia que a melhor forma de envolver a mocidade na cidadania era a atividade esportiva e cultural, de preferência, as duas simultaneamente, e em um mesmo espaço. O jovem durante o ano de estudo estudaria a arte, escolheria uma, participaria de oficinas, e eventos artísticos. A culminância seria nos “Jogos Cívicos da Semana da Pátria, e no Festival de Arte de Campos, que ocorre na semana comemorativa de seu grande poeta “Anastácio”. Por três sessões na Câmara Municipal de Campos, Maximiliano, filho de Humberto Souza, nascido no povoado Água Fria, bradou com os pulmões em alta potência: “Campos precisa de Esporte e Arte para a juventude”. O Vereador Tico do papagaio refutou a tese do amigo desta forma: “Campos precisa de Jesus. A salvação é pela fé; é só se arrepender”. A vereadora Carla Nogueira, a Carlinha de Susete, manifestou sua opinião modesta: “Nossos bichinhos estão morrendo de sede e vossa excelência nos vem falar de teatro, cinema, música, pintura e muita bola, ah, tenha paciência! ” O vereador “Ventão” defendeu até certo ponto sua colega. No entanto, colocou assim sua mente sobre a matéria: “Esporte é bom, é; arte é bom, também, é, como é. Mas, as finanças estão curtas, e tem a lei de controle de gastos, entenderam? ” Cosminha do peixe, eleita pelas cotas partidárias, não concordou com ninguém, exceto, com o projeto de Maximiliano, mas, com uma emenda: “O pessoal do isopor e barracas deve ter seu lugar garantido. A cerveja em lata poderá ser vendida para de maiores”. Já, Padre Damião, poeta e vereador, adorou o projeto, todavia, segundo ele, o projeto peca em um quesito, Deus. Para Damião, os eventos deveriam iniciar com a oração do Pai Nosso, depois Ave Maria e Santa Maria concluindo com a oração do Santo Anjo. O famoso vereador do Povoado Lagoa do Sapo, Teles, um exímio tocador de acordeom, concordou e discordou desta forma: “Vossas excelências sabem que o esporte e a arte são muito bons; recordo-me dos tempos idos de meninice quando eu jogava bola na beira do rio. A religião, também é muito boa. E, os bichos, coitados, estão morrendo, mesmo, gente. A salvação é muito importe; o povo pobre precisa vender mais. Eu acho assim, a juventude precisa mesmo, porém, que as prioridades prevaleçam”. Os 22 vereadores deram suas opiniões. No final da sessão, o presidente da mesa, o servidor mais antigo da casa e do partido da situação, concluiu que não havia um sentido comum. A votação seria deixada para outra sessão. “Que nossa Senhora abençoe a todos”.
Maximiliano tentou todos os meios para levar seu projeto adiante. “Vou reunir as principais personalidades da cidade para fazer um documento”. O pastor não foi porque Max era comunista: “Isto é coisa de comunista; de hoje, que eles fazem de tudo pelo poder. Vão trabalhar, rapazes! ” O padre, também se recusou: “O partido deste rapaz só tem maconheiro, e gente preguiçosa”. Os professores estavam divididos. Uns temiam represálias, outros diziam consigo mesmo: “A gente ganha mal, e ainda tem de trabalhar mais”. Os diretores de escola alegaram que deveriam aguardar a manifestação do secretário. Os comerciantes disseram que se não atrapalhar os negócios estava tudo bem. No final do primeiro ano, o projeto de Max havia sido apresentado em mais 7 sessões. Nada tinha sido resolvido, se quer havia sido o projeto votado. Gorete, a companheira de Max foi consultar o Ifá sobre a questão. Mestre Flávio do Catú disse assim: “Tem macumba feita contra seu marido. É coisa de gente grande”. Max aceitou o convite de Gorete sua mulher e foi para o “Templo da Fé”. O vereador iluminado de Campos foi posto na ‘corrente dos sete homens de Deus’, em seguida, foi para o círculo dos profetas. Uma profecia foi dada ao político dizendo assim: “Sua macumba sairá ‘no corredor dos vinte e um’ onde há sal e arruda no chão”. Para participar o pobre homem teve que vender seu sítio perto do Gantoi. Max deu o dinheiro maldito aos homens benditos e foi em busca da vitória do povo. Nada feito, ninguém na Câmara queria saber de seu projeto. Por último, Max tentou a ‘corrente dos setenta’ em Açai; o vereador deu seu tudo. Limpou tudo que tinha e entregou ao sagrado. Para falar a verdade, seus colegas de partido ficaram zangados com ele. “Eu vou, novamente, a Açai, quem sabe o Governador me escute”. Max tentou agendar uma entrevista com vossa excelência; o rapaz havia esquecido que ele era da UDNTPC, mas, o Governo estadual era da coligação UDNTT, UDNTPP, UDNPCC, e UDNPVM. Max, nem viu vossa excelência. Por fim, o rapaz voltou para sua terra sem nada na mão. Gorete o consolou por quarenta dias em seus seios juvenis. No final dos mesmos, Max teve uma ideia, a última cartada de um político honesto do Brasil – a greve de fome. Rosenthal, o mestre do Jabiberibe, povoado de Olímpia, foi ter com seu pupilo. Rosenthal lembrou seu aluno de que a abstinência de líquido e comida faria mal ao seu aparelho biológico. Rosenthal, ainda, lembrou o vereador das causas primeiras da pobreza do sertão de Campos. “Meu filho quando o gado chegou à sesmaria de Belchior, a terra dos Kiriris ou Kariris foi enegrecida com a maldade do ocidente”. Max não ouviu seu mestre e foi adiante com a greve de fome. Na primeira semana, as rádios noticiavam que o vereador estava confinado em casa com fome por causa de suas ideias políticas. As rádios, também, informaram que a reforma do estádio de Futebol foi aprovada por unanimidade. Na segunda semana, as notícias eram que o vereador delirava devido a uma febre no encéfalo, ao mesmo tempo, as rádios comunicavam que a Polícia Militar estava dando aulas de ginástica na avenida Freitas de Gois. Na terceira semana, ninguém dizia nada. Na metade da mesma, o folego de Max estava muito fraco; o rapaz agonizava no leito de morte como Anastácio, o poeta de Campos. Gorete e suas amigas da igreja rezavam, fervorosamente, para Max mudar de ideia a tempo, e comer algo. “Meu amor coma, deixe essa guerra pra lá”. Max calado estava, calado ficou. Quando Max dava seu último suspiro lhe apareceu, em seu quarto de sofrimento, a figura de um negro alto com um tridente na mão direita. O homem tinha uma chave na forma de um gancho cruzado por uma linha pequena bem no meio de sua cabeça raspada. O moço da África dava gaitadas altas enquanto girava no sentido anti-horário. Max foi velado na Câmara Municipal com todas as honras. Haviam autoridades municipais e estaduais como o representante de vossa excelência o Governador do Estado. O mesmo disse assim: “Campos perdeu um homem de caráter”. O vice - presidente da Câmara se expressou desta maneira: “Campos está de luto com a morte de Max”. O prefeito, em lágrimas, colocou seus sentimentos como segue: “Um moço de futuro, morrer tão prematuramente, foi uma grande perda para a nossa terra”. Cada um disse o que estava em seu coração. Em seguida, o cortejo fúnebre sai da Câmara para a avenida principal. O caixão foi puxado por parentes e amigos. O padre da cidade, ao lado da família, acompanhava o enterro na frente da procissão. Atrás dos familiares, políticos e autoridades formavam o pelotão principal; por último, o povo que acompanhava o funeral com muita contrição e cânticos - Ave Maria, Ave Maria, Ave, Ave ...
Próximo a rótula, perto do restaurante mais chique da cidade, o caixão se estremece com força. A vibração foi tão forte que seus condutores vibraram com a madeira. O busto do grande poeta Anastácio vira-se para a esquerda. Mais uma vez o caixão mexe, e o poeta vira-se para a direita. O povo apavorado entra em pânico. Tomezinho, vendedor de coco, grita da última linha do cortejo: “Isto é Deus! ” O barulho foi intenso, e o tumulto grande. O carro de som que tocava as Ave Marias pede ao povo que se aquiete, pois, o calor faz estas coisas. O cortejo segue avenida abaixo na direção do cemitério Parque da Almas. Agora, o caixão passa defronte à Câmara de onde tinha saído. Um som como de uma explosão de ar comprimido ou como a de um pneu estourado foi ouvido. A comitiva política estava no chão. De seus ventres saíam carne moída e macarrão enroladinho. Moedas de ouro surgiram misteriosas nos olhos dos servidores do povo; suas línguas se tornaram notas promissórias penduradas de suas bocas. O macarrão fluía de seus interiores como a água da torneira, e com ele, molho de tomate com milho cozido. O povo atrás, mugia como touro, vaca, ou boi. Na verdade, tinham alguns que berravam como cabras e carneiros. Uma mocinha bonitinha havia se transformado numa galinha guiné; a pobrezinha ciscava no asfalto quente da avenida. O vapor, o mormaço do clima quente e úmido formaram nuvens na forma de tijolos de fezes humanas. Os milheiros de blocos de fezes úmidas encheram os céus de Campos. Dona Maria Gregório que vende água sanitária caseira percebeu tudo deste jeito: “Parece que em Campos vai chover merda; chega gente, corre que a coisa vai ficar feia”. Mas, o povo contrito mal olhava para cima. O caixão chega ao cemitério e o cortejo também. O povo, finalmente se recompôs. Nem todos puderam ver ao sepultamento. Uma multidão estava em frente do cemitério. O céu ficou mais escuro ainda, e as nuvens negras mais carregadas com as palavras finais do Bispo Antenor: “Gorete, dona Netinha, Seu Humberto, Deus o tenha num bom lugar, seu Migué, dona Firmina e seu Gerdal, todos que formam a família do nosso tão popular Max, e as autoridades, aqui, presentes ou representadas. Há pessoas que vem ao mundo com uma missão. A missão de morrer pelo pobre. Assim foi Max, e fique o seu legado de honestidade e amor pela causa pública ...”. O homem de Deus continuou sua fala com gosto. O povo do lado de fora queria dar seu último adeus a aquele que morreu por eles. A gritaria voltou, a coisa era grande, e feia. Assim foi o tumulto e o empurra - empurra. Seu Gervásio, e o rapaz Tonico, moradores de Alagoinhas, que estavam de passagem pelos sertões, incitam o povo a derribar a grade do cemitério: “Quando o papa foi para Salvador não deu outra; foi um pisa-pisa danado de se ver”. Com isto dito, o povo marchou contra o ferro da grade e o arrancou como se fosse de papel. O céu estalou com fúria; o povo se espalhou pelas sepulturas. Um pingo de água caiu, depois outro, e mais outro, e a chuva, finalmente, ficou forte. As pessoas se retiram do local banhadas pôr fezes de toda qualidade e cor. Quando Campos se aquietou, quando o povo foi para casa, quando as portas do comercio foram fechadas, um velho senta sobre uma sepultura de mármore negro defronte a de Max. Era um senhor branco, rosado, de cabelos alvos como a neve. O velho olha para a lápide da sepultura de Max e ler: “Aqui jaz um bom campense”. Depois, o velho sussurra suas sagradas palavras: “Aqui, o tempo não passa ...”, e em seguida, dá um suspiro profundo ...

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

BELA CRIATURA DA TERRA

BELA CRIATURA DA TERRA
Por Roosevelt Vieira Leite

Não sei o que me deu na mente quando vi à margem de uma estrada empoeirada do sertão de Campos uma mulher à beira de um tangue a lavar roupas. Naquela manhã me saltou ao raciocínio a fraqueza do hábito ou o de fazermos a mesma coisa, do mesmo jeito, seja certo, errado, ou direito. Senti-me nauseado, ou sujo como aquelas roupas deitadas em montinhos sobre a quente pedra sedimentar. Senti-me, também, como o mesmo homem de ontem, parecia, até, que eu não tinha acordado aquele dia. Parece que a repetição é uma canção que cantamos sem conhecer a letra, ou uma viagem que se faz crendo que tudo que vemos é só uma paisagem em uma janela de vidro fosco. A mulher atenta ao que fazia, batia repetidas vezes o tecido amarronzado na rocha indiferente. A água barrenta, e o lodo úmido, fazia da roupa ainda mais escura. Certamente, a pobre criatura do semiárido, de semblante enrugado, via naquela forma o quadrado de seu legado – a herança de um modelo proibido de ser criticado.
Naquela manhã em que o céu azul cobria o mundo entendi que os homens e o gado dividem o mesmo cercado. O primeiro tenta dizer de si; e o segundo, calado, está quieto por todos os lados como se fizesse uma pose para uma foto de turista. Danado hábito! Danado costume! Maldito e abençoado modelo de tudo! Eu não sou filósofo ou jurista, mas, minhas tripas me dizem que a repetição, o hábito, o modelo e o seu zelo são os apelos que criaram a tua rua, a tua calçada, tua roupa, teu nu, teu rumo ou o teu destino, mas o tino, o novo olhar para as coisas são as benções das incertezas, do choro, do luto, ou simplesmente, uma batida de cabeça.
A fábrica de homens nunca cessa de produzi-los, e suas sepulturas ainda mais. As rupturas, as rachaduras, as frestas, ou as brechas só surgem quando a letra rasga o papel com consciência, ou o sangue escorre das veias grosso como mel. Mas, que coisa odiosa! A mesma coisa é viciada, viciosa, talentosa, mimosa; é cheia de prosa e insiste em falar. Enfeitiçados por seus versos, os homens encontram suas carteiras cheias de dinheiro, ou avisos de pagamentos; eles retiraram daí suas identidades, e com isso, pensaram ter findado o sofrimento. A foto, o nome, o número são tudo que há, além disso, só existe água, fogo, terra e vento.
A mulher da estrada, da beira do tanque, das roupas lavadas ainda está lá. Nem o tangue é o mesmo, mas, ela insiste em bater o pano no duro cascalho. É na força do seu costume que ela tem o seu lume, contudo, no silêncio da noite, depois do açoite da lida, ela para a sonhar – “Uma lavadeira, uma máquina de passar”. Mas no escuro do quarto noturno revela-se o ser estranho e uma nova vida – O nu, o calor dos amantes, as juras noturnas, o corpo suado, as promessas de ouvido, o zumbido do vento corrente, o ventre molhado, o cheiro no pescoço, o consolo, e uma bela criatura da terra.

O JOGO

O JOGO
Por Roosevelt Vieira Leite

O conhecer e o não conhecer estão na mesma cabeça. O primeiro é o sopro da dúvida, e o segundo a ilusão da certeza. A bela mulher seguia sua estrada; um fio de terra que parecia um rasgo branco no barro vermelho do sertão. Toda moça nova entende seu futuro ao lado de um porto seguro. Isto é racional, isto não é emoção. As pessoas acreditam em suas crenças e para elas se inclinam como um cacho de banana. A mulher andou sua milha, logo, logo, perdeu sua trilha; a moça viu que o homem não é papelão; a menina mulher entendeu que a aparência engana.
Um belo mancebo, filho de Campos, educado em uma boa escola que passou sem cola disse de seu estudo. O rapaz sabia de tudo; o homem de Campos como em todo sertão fala com fé e com razão do que ouviu dizer nos quatro cantos do mundo, mas, no final do dia quando chega a agonia só o mandacaru lhe interessa.
Eles e elas fazem pose nas janelas enquanto o carro passa na rodagem de terra. Somos retratos emoldurados em madeira e vidro. Somos o suspiro de um peito ali ou aqui, ou um grito apavorado num beco escuro; ou um sorriso arregalado que engole o mundo. Mesmo com isto, ou o aquilo que não vejo ou sinto, eu repito o que não entendo, e mato, ou morro pela ideia – Esta danada serpente que morde a vida ou a morte, ou alguma coisa entre as duas.
Eles e elas sem medo ou culpas se amam nas campinas belas. A vida celebra o pó e o vento; o fim do tormento de quem passa por aqui. Eles e elas deslizam no chão, suam as mãos e comem quiuí. Eles e elas se misturam no espaço como a água e o barro. Eles e elas se entregam como soldados rendidos pelo coração. Eles e elas se odeiam, se matam, se cobiçam, e conspiram. Ele e ela sumiram da tela, do cinema, da rua, da calçada, agora, calados, sem nervos apavorados, se beijam, então.
Então, que o rio siga seu leito. Que todos encontrem um amor perfeito, ou que se conformem com a novela da noite. Não há noite sem coito. Na pior das hipóteses, suco com biscoito no sofá da televisão, ou uma cama de papelão na calçada de uma loja de magazine.
A tímida donzela branquinha que nem cinderela andou sozinha na floresta cheia de lobos famintos. A manceba achava que seu príncipe lá estava. A certeza da moça, do tamanho de sua fé, não teve dó dos calos que a ela teve no pé. Por fim, a cândida ragazza caiu na trapaça daqueles que fazem a cena para a foto. O modelo, o quadro, o papel redigido, o texto ditado, a estrutura e seu cadeado, o gesso e o cimento britado todos se transformam em poeira, ou moldura de retrato amarelado, ou simplesmente, cascalho de rua.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

MORCEGOS

MORCEGOS

Por Roosevelt Vieira Leite

Caracangaia é uma próspera cidade deste país. Lá, as pessoas tem oportunidades muitas. Pelo menos era este o comentário frequente de um dos seus mais fanáticos admiradores – Zé da feira. Zé da feira, um comerciante de todos os tipos de frutas e verduras recebeu o legado de seus pais – Ser louco por sua terra – “Por Caracangaia, mato ou morro”. O comerciante de meia idade tinha sua propriedade residencial no bairro Colinas. Na ‘Colina’, como o povo comum comentava as pessoas sabem o que dizem: “É a sociedade rapaz, povo estudado!” Assim, Zé da feira se formou, assim o rapaz viveu, até, o dia em que tudo mudou. Certa feita, um cidadão desconhecido se apropriou de forma indevida da bolsa de trocados de Zé da Feira. O vendedor de frutas teve seu dia de trabalho subtraído. Zé da feira soube do paradeiro do moço e foi ter com ele; não pelos trocados, mas, para perguntar-lhe o porquê de sua ação tão abominável. Zé da feira só não sabia como o encontraria na vila que ficava no outro extremo do município – O “Buraco”. Os que viviam no bairro “Fazendinha” chamavam o lugar de “buraco”, uma vez, que era um buraco mesmo. Era uma antiga pedreira onde, por séculos, os escravos extraíram a matéria prima que construiu o município – as pedras de calçamento. Com o tempo, com extrema dificuldade, as pessoas foram cavando cada vez mais, até, que encontraram os veios de antigas, e velhas cavernas que constituíam, na verdade, o subsolo de Caracangaia. Os moradores das cavernas pagavam para isto. Era uma prestação pequena, mas, muito sofrida para ser paga, além disto, a luz fraca e trêmula, e a água que certinha chegava nas torneiras na forma de rodízio – dois dias na semana, levavam grande parte da renda. Zé da Feira, facilmente, encontrou a casa de seu compadre na parte superior do buraco. Este era o perímetro da pedreira que fora usado para a construção de um condomínio de casas populares. Lá, Zé perguntou a um amigo se ele conhecia um tal “Toninho”. O rapaz lhe respondeu “Não”; e depois disse: “Deixe quieto”. Zé da feira tinha na mente que não havia outra opção; o jeito era entrar fundo no buraco para encontrar o rapaz: “Eu só quero dizer ao moço que, aqui, tem para todos; é só fazer o que eu faço – trabalhar”. Na parte nordeste do buraco, o nível das calçadas vai se inclinando; sua pessoa perceberia logo, que se tratava de uma entrada para uma rede de cavernas todas sustentadas por rochas antigas feitas do mais puro granito. Ao longo dos corredores, haviam placas escritas em Iorubá. Uma delas dizia: “Pedra mãe”. Zé da feira parou um instante para ver as placas e observar ao redor. Era de fato, uma grande rocha no formato de uma vagina negra. A pedra, na sua parte frontal se inclinava para o chão como duas conchas unidas que se abriam para formar a entrada da caverna que recebia a todos os visitantes como a única passagem para os circuitos intermináveis de cavernas. Zé arregalou seus olhos castanhos, fez o sinal da cruz, e foi andando para frente, sempre para frente. O calor aumentava à proporção que Zé sentia o cheiro de carne assada na brasa. Era uma família de Caracangaia que estava a comemorar alguma coisa. “Oi”. Cumprimentou o comerciante. “Oi”. Responderam de volta. Ninguém se interessou pelo Zé. Parecia sua figura a de um estranho em sua cidade. Logo, logo, o cheiro de carne cedeu lugar ao de esgoto. Haviam vazamentos da cidade de cima. A água suja caía sobre as cabeças do povo do buraco. Zé pensou positivo e respondeu sua dúvida para si mesmo: “Em 15 dias isto estará resolvido”. O destemido Zé pensou em continuar sua marcha, mas, desta vez, foi interrompido pela voz fina de uma senhora estranha: “Num vá mais não meu filho!” A mulher estranha era de fato uma anomalia da natureza. Seu cabelo loiro tinha fios lisos e crespos como o do povo de África; seu olho direito era verde e o esquerdo um botão negro numa bandeja vermelha. Sua boca era mui esquisita, pois, o lábio inferior era furado com um graveto atravessado, e suas orelhas tinham brincos de ouro e coquinhos de dendê. A mulher falava alto, mas, Zé da feira pouco pode ouvir: “Ninguém sai do buraco” Esta foi a segunda sentença inteligível que chegou aos ouvidos do comerciante. No entanto, Zé da feira estava determinado a dar o seu conselho, afinal, segundo ele, ele não poderia negar a este estranho a chance de ouvir o seu segredo. O calor aumentou ainda mais. Zé estava chegando às bifurcações; o lugar onde se ouve e se ver em tempo real o que ocorre, lá, em cima, na colina. As pedras das paredes ecoavam os sons de cima e suas imagens eram reproduzidas na mica e quartzo dos granitos. Eram festas no clube da cidade, reuniões nos porões das lojas, e luxúria com os membros ilustres da cidade de cima. Zé viu que o povo do buraco estava a par destas coisas, e mesmo assim dava risadas e dançava ao som de qualquer batuque. O povo do buraco, era na verdade, um povo alegre. Zé se indignou com o que viu e ouviu, mas, não desistiu de sua crença – “Uma palavra pode muito, quem sabe o rapaz entenda que regras são regras”. Zé continuou sua busca pelo tal Toninho. O buraco ficava cada vez mais complexo, agora, Zé tinha de escolher para onde olhar, pois, ele estava em uma encruzilhada de cavernas. “Que lado eu tomo, qual a minha direção?” “Eu vou por aqui”. Enquanto o mundo de fora era exibido nas paredes internas do circuito de cavernas, Zé prossegue sua marcha incansável por Toninho. O comerciante de Caracangaia não sabia dos morcegos que eram muitos. Ao vê-los, os animais se assustaram e partiram fugindo do invasor, porém, um deles ficou. Era o um morcegão grande, forte e determinado a enfrentar o cidadão real de Caracangaia. “Que queres, aqui, na minha caverna?” “Não sabes tu que cada um tem o seu buraco?” Zé urinou-se ao ouvir a voz do mamífero voador. “Mas, que que é isto?” O morcego, rei do grupo, fala mais uma vez ao visitante de cima: “Rapaz, se você não se explicar direito a coisa vai ficar difícil pra você, eu conheço muito bem a minha morcegada”. As rochas gemeram mais uma vez, era a hora da educação e informação vindas do alto. Ao som do barulho das paredes de granito, a morcegada volta correndo e se aninha de cabeça para baixo para assistir “Amor, amor, sempre amor”, o maior sucesso das cavernas. Durante o episódio, os morcegos, ora entravam em euforia, ou, ora em depressão. No final de cada capítulo, uns se sentiam culpados sem saber o porquê, e outros, possuídos de grande ânimo, saiam para fazer a diferença. Enquanto isso, Zé retoma sua busca por Toninho. O rapaz procurou o quanto pode até que desistiu, e se lembrou, finalmente, que não sabia o caminho de volta. “E agora?” Zé andou por mais cavernas, em cada uma viu um cena diferente. Em uma delas ele viu o nascimento de uma burrega. Em outra, ele viu a conquista de Marte. E, ainda, em mais outra, ele viu um atalho para cima. Era uma propaganda que passou só uma vez na parede do quarto das corujas. “Aonde você encontrar um curva na forma de cotovelo dobre e entre no buraco a esquerda e suba sempre”. Quando Zé encontrou este caminho o povo do buraco o deu como perdido. Sete dias depois, Zé vê uma claridade vindo de uma pequena abertura protegida por pedras finas e pequenas. Zé sobe na direção da pequena luz, até que enxerga um terreno liso e pegajoso. A abertura era muito estreita para ele. Além disso, um cheiro de carne podre soprava de algum lugar de fora e de outro desconhecido de dentro. O cheiro era repugnante. O rapaz examina a abertura, e nota ser a mesma flexível. Com as duas mãos, ele fez uma força como que rasgasse a boca de um bicho grande, e foi se espremendo como um filhote a sair do ventre de sua mãe. Para tirar os pés do buraco, Zé teve de virar cambalhota. Ao se erguer, ele se deparou com o cadáver de um negra que estava na calçada de um supermercado. A mulher era ossos e carne necrosada. Estava ainda claro, mas, a tarde já se despedia, lentamente. As moscas não paravam de zumbir ao redor do corpo e de lhe penetrar os orifícios. Zé viu que a pobre mulher tinha sido acorrentada à duas toras pesadas de madeira, e sido posta ali para vender nós moscada, e que haviam se esquecido da coitada. Ela era, certamente, uma “escrava de ganho”, coisa muito comum no passado. Todavia, para o pobre Zé da feira aquela mulher era a que o havia feito nascer de novo. Zé pegou uma nós do tabuleiro inerte, limpou sua camisa bege de linho, e sua calça jeans, fez o sinal da cruz, e foi para sua casa sem perguntar mais nada, o rapaz se calou. Diz o povo de Caracangaia...

domingo, 21 de janeiro de 2018

BAJICA

BAJICA

Uma velha frequentava aquela cadeira que ficava na eira de dona Chiquinha. Os anos passavam e o menino que a via crescia como cresciam os cajueiros do sítio. A saliva da estranha idosa escorria dengosa, livremente, sem nenhuma restrição rumo a palma da mão infante, que sem nojo, ou repugnância amava falar com senhora velha de nome Bajica. Bajica nada dizia, sem palavras nos ensinava, e, o moleque sapeca das areais da Aldeota entendia por intuição o silêncio da alma que se aproxima do sagrado chão. Dizer na velhice é muito mais dizer com os olhos; é dizer com as rugas, com as cãs, ou com os sonhos, tenham sidos eles felizes ou não.
A criança corria, e Bajica não; a criança cantava, e Bajica não. A velha do sítio, mesmo em silêncio e entrevada na madeira não perdia uma brincadeira. Era Chiquinha Neta, eram os sobrinhos da dona da propriedade, enfim; eram todas crianças de todas as idades e uma velha calada, sempre babada a encantar toda a “negrada”.
“Sem Bajica nada feito”. Esta era a combinação de Paulinho, de Carlos, de Francisco, de Marcos e do resto da molecada, até, as meninas saiam dos quartos com as bonecas na mão; era a Bajica que estava na eira perto do tangue de lavar roupas. Era a velha calada, de semblante riscado como as linhas da mão. Era a moça que também foi criança como tu e eu, ou, como seu João do ‘jogo do bicho’ que pensava que não iria secar como a carne seca do sertão.
Enquanto os fogos estalavam em uma tarde de São João ou de São Pedro, a meninada eufórica gritava de alegria; Bajica sentada nem a cabeça movia. Mas, seus olhos tudo me contavam. Mas, o olhar da velha era uma janela aberta em uma noite meiga de luar. Aqueles olhos eram flechas soltas, lançadas no tempo que haviam se perdido por aqui, e por ali. Eram setas afiadas, e outras tão cegas que a ninguém poderiam ferir.
Ah, se eu tivesse sido assim; ah, se eu tivesse feito aquilo, ah, se eu não tivesse vindo pra cá, ah, se eu não tivesse ido pra lá.
A turma, a molecada, a meninada com nada se atrapalhava, pois, não tinham tantas perguntas no mundo. E o sítio de Chiquinha cada vez mais ficava menor. Um foi para o Sul, o outro para o Maranhão. Dia a dia cada um sumia como as flores do sertão quando chega a seca.
A velha Bajica sentada em sua cadeira também viajou. E eu, o mais novo de todos, o caçula de casa, o “neném” da tropa, numa tarde de chuva fui ter com ela. O lençol branco que cobria a figura inerte não me respondia. Nenhum som de fôlego me apareceu. Nada! Era uma figura deitada numa cama, coberta de linho branco. Bajica se foi, e um pedaço de mim, também!
No sítio de Chiquinha, na Aldeota, que fica em Fortaleza, se foi um pedaço de mim que ainda procuro pelo mundo. Ele deve estar em algum lugar tenho toda certeza. O chamo até hoje quando a tarde declina, ou, quando o sol perde sua beleza.
E agora que aprendi a laçar meu boi, vejo Bajica, em todos os pastos que passo! Seja nas cidades ou nas estradas empoeiradas por onde o viajante encara suas encruzilhadas, ela está, lá; tão linda que não disfarça, pois, sem ela, o mundo perde todo o sentido, toda a sua graça.
Nascer, envelhecer, e morrer; o estar sentado, ou a correr são faces de um dado jogado em uma mesa sem mimo, sem delicadeza. Contudo, depois de um pouquinho de agonia; o suspiro do dia renasce no rosto daquele que viu a velha do sítio de Chiquinha. Os olhos da menina, da moça, da velha, agora, espalhados por todos os lados; sejam jovens, ou, adultos, velhos ou crianças, todos têm o mesmo brilho, o brilho do de Bajica. Este é o brilho de vida numa cara ferida, bem riscada, mas, com muitas risadas dizia Chiquinha da pobre velhinha da cadeira de madeira que estava na eira perto do tangue do sítio na Francisco Holanda...






quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

O AGENTE DE SAÚDE

O AGENTE DE SAÚDE
Houve uma época em que Campos estava com epidemia de dengue. As autoridades a esconderam para evitar o caos. A população teve poucas baixas, e o grande responsável por isso foi o agente de saúde. Muitas pessoas os enxotaram da frente de suas casas, mas, como soldados destemidos eles cumpriram seu dever como puderam, e para isso, muitos deles trabalharam além de suas forças e se perderam por aí. Noronha era um deles, um rapaz branco, de estatura alta e traços europeus. Noronha, fielmente, visitava todas as casas listadas para ele uma a uma não importava onde nem a que horas. A casa número 43 foi uma delas. Noronha conheceu dezenas de casas em Campos, portanto, o rapaz sabia com certa intuição onde seu pé pisava. Ele sabia que o mosquito da dengue era traiçoeiro, vil e perigoso, sempre pensou o jovem agente de saúde desta forma.
A casa 43 da Rua G do Conjunto dos Operários era uma casa deserta. Seus moradores faleceram e seus descendentes foram morar na Capital. A família alugava a casa quando tinha procura. A casa 43 da Rua G estava naquela época disponível, ou seja, vazia. Noronha não tinha a chave, nem teve contato com seus responsáveis. O rapaz planejou pular o muro da frente que não era alto, e jogar o veneno de dengue pelo quintal, pois em Campos muitas casas tinham suas caixas sobre o banheiro dos fundos. “Eu pulo; vou até lá, e jogo o remédio com minha colher”. Foi assim que fez o agente de saúde. A facilidade do trabalho e a rapidez do mesmo deixou o moço no quintal ocioso, e isto o fez bisbilhotar a propriedade. Noronha olhou para dentro pelo vidro da janela dos fundos. De lá podia-se ver parte da cozinha, do corredor, e da sala de recepção na frente da casa.
Noronha era um rapaz que cria na objetividade das coisas, e na certeza do que ver e toca. O rapaz era como todas as pessoas comuns – “a crença comum na estrutura do mundo”. Sua prima Jiló, quando tinha uma oportunidade dava uma cutucada no parente. O Rapaz recorda, com razoável frequência, das ceias em sua casa, na rua G, número 48, quando ele era um infante. Desta vez, o moço estava perto de casa. “Noronha nem os olhos, nem os pensamentos merecem confiança” – Alfinetava Jiló seu primo que se achava confiante das coisas. O rapaz olhava para dentro pela janela quando ouve atrás de si um som abafado seguido por um arranhão de unha na mesa da cozinha. O arranhão foi tão forte que fez o moço perder o equilíbrio e pender um pouco para trás. “O que foi?” Noronha entendeu ser um acidente. Ajeitou-se, e pôs - se em pé. A porta da cozinha estava aberta para sua surpresa, na verdade, o rapaz não tinha tanta certeza nem de uma coisa, nem de outra. A porta misteriosa dançava como solta pela força de um vento calmo. “Se eu continuar posso ter problemas”. Este foi o tirocínio do agente de Campos.
Enquanto isto se passava, Vozes são ouvidas vindas do portão. “Será que é alguém querendo alugar a casa?” Pulou o coração do rapaz com a carreira que ele dera para dentro da casa para se esconder no quarto do casal debaixo da cama cujos lençóis tocavam o piso. Noronha ouviu o portão de ferro pintado de cinza abrir, e os passos que logo acompanharam o gemido fino do mesmo. O passos eram para dentro de casa. “É mais de uma pessoa”. A imaginação de Noronha não dava para abarcar a cena do todo, o rapaz ficou quieto, aguardando uma chance de entender o que se passava, uma vez que, ele era apenas o “agente”.
Os passos dos estranhos se tornaram difusos; as direções várias fizeram Noronha ajeitar-se melhor debaixo da cama, e puxar o par de sapatos para perto de si. Vozes são ouvidas. Elas eram como o borbulho de águas distantes; o barulho delas nenhum sentido despertava, e isto fez Noronha sentir-se ainda mais em apuros “Será que não vão embora; vão ficar?”. Noronha percebe que aquelas pessoas estavam relacionadas a casa. Podiam ser os donos. Novamente, o silencio é rompido com sons ininteligíveis como alguém rezando um terço baixinho. “Mas, que diabo é isto? Vou ficar preso aqui? E meu chefe, meu ponto? Vou sair e resolver tudo! Mas, e se pensarem mal? Como perguntar o que faço aqui?” Noronha aquietou-se debaixo da cama, e aguardou o andar da carruagem. As vozes se tornaram fortes e altas bruscamente, como se alguém tivesse aumentado o volume de um rádio. Com isso, Noronha se arrasta mais para o fundo da cama e encontra uma caixa vermelha pequena de madeira de pinho.
O sol entrava pelas venezianas do quarto o que permitiu Noronha mexer na caixa enquanto as vozes conversavam nos outros cômodos da propriedade da rua G 43. “O que que é isto?” Na caixa havia uma foto antiga da casa. Noronha percebeu que todas tinham o mesmo muro, tinham a mesma altura e cor. Mas, para seu desespero, o número da casa era 48. “Meu Deus, será que confundi o oito com o três, será que estou na casa errada?” Os passos e as vozes se misturam numa sincronia perfeita; as pessoas nos outros cômodos estavam, de fato, interagindo sobre algum problema; algum assunto muito importante poderia se inferir daquelas vozes, pois, ora a voz da mulher cresce, ora a do homem também, ora, a de uma outra pessoa, coma voz mais suave que as demais se destacava na totalidade dos sons percebidos: “Você precisa saber que, aqui, em Campos, mulher nesta situação tá perdida; eu não vou tolerar tamanha humilhação!” “Marize, minha mulher, quantas famílias passam por isto, em Campos, e conseguem se estabilizar”. Noronha continua a bisbilhotar a caixa vermelha enquanto o casal, audivelmente, discutia o adultério do marido baseado na tese comum de que: “Se todos fazem assim, então, tem de ser assim”. A voz doce e frágil ergue-se mais alto que outra, e implora o silêncio do casal. Em seguida, a criança de 11 anos, do sexo feminino chora dando um dos celebres gritos do cinema de terror: “Parem!”
Enquanto isto, Noronha passa mais uma olhada na foto da casa para ter certeza do que via: “O número era 48; a casa da lista é 43, então, estou na casa errada!” “Pera aí, esta é minha casa!” “Mas, como?” “Eu tenho a chave de minha casa!” De fato, a chave de sua casa estava no bolso de suas calças suadas de tensão. “Eu pulei o muro porquê não conheci a casa; todas são iguais – é a repetição, a mesma coisa, eu confundi, pronto!”. Contudo, Noronha não sabia explicar quem eram as pessoas a falar, se a casa era, na verdade, sua mesmo. Noronha criou coragem repetindo para si a seguinte sentença: “Esta é minha casa, então, tenho certeza que estou no meu direito”. Noronha, finalmente, sai de sua toca como o filósofo sai de sua caverna, e segue para sala de recepção.
A sala de recepção estava tão solitária quanto Noronha. E da mesma forma os demais cômodos. Nenhuma evidência de vida pensante foi encontrada. Somente os móveis, e as coisas de uma casa em geral compunham o cenário da casa naquele momento do dia 15 de agosto de 1997. “Pera aí, pera aí, pera! Eu tenho certeza que eu ouvi passos e vozes de pessoas!” Em seguida, Noronha baixou a voz. “Mas, eu não confundi o três com o oito?” O medo de ser pego e o pavor de ser assassinado haviam sumido. Agora, no coração do agente de saúde havia, apenas, pura curiosidade. A casa estranha que era, também sua, ou, supostamente sua, foi investigada pelo moço metro a metro. Nada seu foi encontrado na ocasião. “Então, está é a 43; deve ter algo errado, de fato, estou na casa certa”. Noronha foi ao quintal onde estava sua bolsa de trabalho, ele intentava ir embora. Lá, ele se deparou com algo muito estranho que, definitivamente, impactou seus sentidos. Duas bonecas estavam, uma de frente para outra, e conversavam, tranquilamente, sobre quando o papai voltaria. A criança dizia para sua mãe: “Quando o papai voltar, nós poderemos sair daqui; e, finalmente, vamos ser felizes. Mamãe, não chore mais, papai prometeu que desta vez vai ser bonzinho”. A criança repetia a mesma sentença, e a mulher boneca somente a escutava e fixava seus olhos de vidro azul em Noronha como se ele tivesse algo a dizer. O coração do rapaz saltou, novamente, com a carreira que ele deu de volta para dentro da casa. A casa estava vazia, como antes, mas sua coisas estavam lá desta vez. Sobre a mesa da cozinha um revolver 38 com três balas deflagradas irradiava a frieza de seu ferro. Um bilhete contava de seu amor por Dora e pela filha. Noronha tentou pular o muro de volta para fora, mas, para seu infortúnio, o rapaz, nunca mais tornou a ver a cidade além daqueles muros...

MOÇA

Ela estava sentada numa cadeira defronte a minha.
Suas pernas morenas descansavam um pouco até sua hora chegar.
Ela estava ali.
Levantei os olhos e vi suas lindas coxas cor de índia do Brasil.
Olhei seus olhos eram verdes acastanhados;
Seus cabelos pretos caíam suavemente sobre os ombros.

Um dia senti coisa parecida.
Nem um pouco diferente.
O coração não conseguia se aquietar.
Foi há tempos atrás, na beira do rio.
Uma paixão sem escombros.
Nem caminhos embaraçados.
Só beleza, só natureza.

A morena se mexe o tempo inteiro.
Fico faceiro;
Ouso um olhar.
Nas retinas nos encontramos no mundo.
Ela sorri, há um tom de luar.
E o homem se renova a cada evidência de afeto.

Será?
A linda jovem abre a boca e sussurra algo.
Finjo escutar e não entender.
Ela repete.
Bebo cada gota desse líquido precioso.
Repondo suas perguntas com coração moleque.
Fico à sua sombra até ser abraçado por seu carinho.

Meu despertador toca.
É hora de trabalhar.
E eu fui.
Mas a levei comigo.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

A CALÇADA DE PEDAÇOS DE OUTRAS CALÇADAS

A CALÇADA DE PEDAÇOS DE OUTRAS CALÇADAS


Ele acreditava em seu mundo; seu mundo, também esperava por ele.
Ele sempre creu que as coisas funcionam;
“Elas são como são”; mas, seus sonhos diziam outra coisa.
Ele andava acordado em seu mundo durante o dia.
À noite, uma surpresa esperada: “As pessoas são assim”.
Os homens tiram suas máscaras no escuro, pois a verdade não tem seguro.
Uma chaminé que alivia o incêndio de dentro.
Uma caverna que acorrenta crianças e dragões.
Um pedra quente de noite, e fria de dia.
Em teu seio se forma a próxima geração.
Em teu sonho os outros terão os seus.
São signos e sentidos do lado de fora.
Mas, cá dentro alguém mora?
Esta é uma eterna questão.

O logos não merece nenhum respeito.
Ele sempre disse errado do torto sem jeito.
O mundo é modelo, matéria e repetição.
Mas, minha dentadura velha, também diz: “O novo já foi velho, e o velho pode tornar-se novo novamente”. Pois, o movimento é permanente enquanto durem os sonhos. Enquanto isso, nas rachaduras destas estruturas vemos as mãos de gente; sim, a verdade é diferente; a diferença desmente esta crença de Zeus; e os homens se tornam sapos, ou ebós arriados na encruzilhada.

O homem foi criança. O sonho está com ele sem canseira desde a pisada primeira, até o por do sol, na pisada derradeira: Sonhar é criar mundos, é encher o céu de estrelas. E o velho inquilino da casa solitária resmunga sem cessar. Ele é o soldado, à porta, que segura o fuzil sem os olhos piscar. Ele está no espaço como madeira, carne, plástico, e aço. Este espaço é revelação, e o tempo, ah, tempo, uma velha caduca falando sozinha. O tempo não é dono de nada, é apenas uma piada dos padres depois da missa.

Tu murcharás como as flores do campo!
Tu passarás como os dias passam!
E os nossos sonhos cessarão no óbito até que tu aprendas a contar os teus ossos!

Os homens renascem a cada dia nas calçadas de seus vizinhos.
Seus caminhos, seus trilhos se misturam a uma fala incessante em torno da terra!
Eu e você somos a calçada de pedaços de outras calçadas. E não reclame quando passarem por cima de ti; é assim que caminha cada mundo feito pelos filhos da savana. Este é o maldito e amado outro.
Odeio-te de dia, entretanto, de noite, sem espanto estamos em núpcias.
Somos dependentes declarados; inimigos amaldiçoados, e amantes apaixonados.
Somos escravos sem correntes de ferro ou bolas de aço.
Teu olhar me redime ou me condena.
Tua sentença me é dada durante a madrugada.
Eles andaram juntos e se misturaram a multidão...

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

MONÓLOGO PRIMEIRO - DO ÓBITO

Monólogo primeiro – óbito.

- Meu amigo, tu estás aqui como eu.
- Certamente, todos nós estamos aqui, até, que morramos e viremos pó.
- Isto é certo que o pó é o estado primeiro de todas as coisas, e o último infortúnio de nossa existência.
- Todavia, eu não aceito a partida da vida, nem tão pouco esta desprezível despedida.
- Dizem que há honra na morte. Que os homens morrem com honra.
- Meu amigo, eu mesmo sei que nela nada existe; só existe nesta desgraça necrose e ossos secos abandonados pelos seus, e que despois de tudo, nada fica, exceto, uma lápide esquecida num cemitério velho.
- Será a morte uma desventura necessária? Há sentido em morrer?
- Meu peito está cheio de escarnio contra ti meu amigo por ter feito tão demente pergunta. A morte não tem sentido algum. Está nela a fuga de todos os sentidos, eles evaporam como a água da carne exposta ao sol.
- Mas, a morte é lucro, é ganho para muitos que ficam, e nada para os que se foram. A morte é mídia, é comercio, é chantagem para as almas, é controle do estado, do estado que caminha sobre esqueletos lânguidos e podres.
- E porque o suicida deseja tanto esta moça esquisita?
- Desejar morrer é seguir o dito das coisas. Somos educados a morrer todos os dias. Fomos ensinados que a morte é a glória dos homens; é a coroação nos céus.
- Meu coração sente náuseas de ti pobre homem que pensas em viver eternamente. Tua mente é uma minhoca a cavar uma cova.
- Tu não me respondestes a pergunta. Há sentido no suicida?
- Não, porém, se levares a sério o tormento do mundo quando os sentidos estão pelos ditos e falas perturbados e velozes como uma bala perdida, morrer tem o sentido da hora; uma cobra que pica escondida num chumaço de algodão.
- Ah, sim. Dizes tu mesmo que tua morte faz sentido em algum sentido da mente obscura.
- Com certeza. Entretanto, a vida foge da mesma, pois toda vida não pensa na morte.
- Mas, porque a morte é tão temida e evitada se somos todos vida que fale, que a falência do corpo é uma previsão certa.
- Certamente, você ainda não me entendeu.
- Como assim? Com quem falo eu se não vejo mais ninguém aqui.
- A palavra aqui fala do óbito, do espaço e não do tempo. O óbito está permanentemente aqui, mas, é a vida que o denúncia.
- Nada entendi, parece que viverei toda uma vida para entender a morte.
- Com certeza que muitas vidas serão necessárias para que entendas que morrer não é necessário. É a vida que dá sentido a todos os óbitos.
- Sua pessoa fala sozinho como uma alma penada neste mundo sem tempo.
- Quem é você?
- O lugar, o sentido, e a vida são as condições da morte, e além disso nada há.
- Assim, dizes tu para ti mesmo como um louco solitário a cogitar sobre o nada.
- Sim, senhor. Faz sentido...



A CASA DE BARRO

A CASA DE BARRO
Por Roosevelt Vieira Leite

A casa de barro de minha cunhada é visitada nos finais de semana. Ela construiu as paredes de barro batido e varas de taipas retiradas das árvores da roça de seu pai. Lá, não há tijolos cozidos, lá, não há alvenaria forte que lhe dê suporte contra os intemperes da natureza.
A casa de minha cunhada é uma beleza, pois sua firmeza é seu sonho; sua aventura mental no quintal de seus país me seduzem como os olhos de uma moça cheia de esperanças a olhar para estrada que passa logo perto.
A casa de barro que fica próximo da serra de Itabaiana, nas proximidades da estrada da barragem tem igualmente de barro seu piso, e quando chove vira ele argila molhada, terra ensopada como as almas que caminham pelo mundo.
Não sei, mas, o barro é como gente; ora duro, ora mole, ora arte ou coisa repugnante, tanto um como o outro se completam como o traçado das ripas que sustentam seu telhado.
Vai mocinha, leva a cabacinha de mel, acende a vela e deixa teu pedido no pé da parede!
Assim, sonham as moças do agreste. Sua pele e suas vestes são salpicadas por gotinhas de alegria e dores. Seja um ou o outro todo mundo termina sempre no barro velho, que fica ali bem pertinho de ti. Este é o lugar onde sucumbem todos os favores.
A casa de barro que fica no Brito, na propriedade de seu pais é silêncio e grito. É calmaria e tempestade, e isto nada tem a ver com o tempo, o relógio ou a idade. É a força do chão que não tem paixão por ninguém, só formigas, húmus ou o resto de quem passou por aqui.
A casa de barro é tua amiga na cidade; naquele apartamento por vezes cruel cheio de sombras e vozes que ecoam nas estruturas frias tão bem calculadas por mentes inteligentes.
A casa de barro é campo, é cidade, é uma metáfora necessária, ou uma conta atrasada de condomínio.
A casa de barro onde acordam os homens tem aço. Mas a da serra não dá, eu não disfarço de sua vontade, mas, aço não! Nesta casa de barro o aço vira carne e o plástico nervo esticado que sente a presença dos vermes que há na terra. Nesta casa tão bem firmada e erguida não há espaço, exceto, para os que acordam bem cedo para olharem o sol que mima a lua na sua despedida. Sonhar é preciso, acordar também.
Deixa menina tua espada aqui e vai até a casa de barro que fica na roça de seu Zé!
Todo ferro foi jogado fora, e embora foram os pesadelos das cobras que descansam escondidas em suas locas espalhadas por todo canto. Onde há barro, não deve ter ferro, e onde tem ferro tem também berro, o berro dos que descem a ladeira rumo ao asfalto desalmado que eu e você pôs por aí.
Em todo parte tem casa de barro. Em toda parte tem chão de barro, mas, não como a casa de minha amiga que mora na pequena cidadezinha no interior de Sergipe. Este barro é vermelho; ele é um espelho de todos que que passam por aqui...

O MACUMBEIRO

O MACUMBEIRO

Soraia saiu do trabalho na “Avenida dos Boxes” seguiu direto para casa. Sentia cólica, a moça filha de Agenor, “O louco”, aquele que nas segundas feiras ia para o meio do povo dizer que se arrependesse de seus pecados. A feira de Tobias era grande. Um mar de gente. Muitos sonhos, poucas certezas. O povo vinha de todos os lugares do município, e até de outras cidades e estados. A fé de Agenor era maior que a feira de Tobias. Por isso o homem pregava a Salvação.

Contudo Soraia, sua Filha do meio, pois, ela era a segunda filha do casal, a que nascera quando seu pai se convertera, ou enlouquecera, estava namorando um rapaz que era macumbeiro. Isso a dava muita dores de cabeça. Seu pai não aceitava o romance.

- Menina, você não sabe que os feiticeiros não herdarão o Reino de Deus! Disse Agenor com ar de quem sabe o que diz.
- Eu sei meu pai, mas, eu gosto de Venceslau. Não consigo tirá-lo da cabeça! Disse a menina com os olhos marejados.
- Então, se você já conhece a verdade, ela vai te libertar dessa paixão do diabo. Concluiu teologicamente seu Agenor.

Enquanto os dois conversavam, um rato de grande porte entra em um buraco cavado na parede de blocos da casa velha de Agenor. Os ratos aproveitavam quando as pessoas estavam na calçada para fazerem a festa com o que sobrava da refeição da família. Acho que toda casa deve ter ratos. Eles estão a onde os homens vivem.

- Pai, e se ele se convertesse? Se de repente ele visse o erro, e deixasse a macumba, e se tornasse um de nós?
- Seria uma benção minha filha! Mas, este caso é muito raro. Os feiticeiros tem parte com o demônio. E este não os deixa livres. Quando eu prego na feira, vejo quantos estão perdidos, sem rumo, sem direção. Só a nossa fé tem a verdade de Jesus. Os evangélicos são a verdadeira Igreja de Cristo porque obedecemos as Escrituras. Um rato miúdo, do tipo calunguinha foi até perto dos dois e deu uma olhada rápida. O rato, logo correu de volta para o seu buraco. Parecia apavorado.

Era uma sexta feira, o dia em que pai e filha estavam sós em casa e conversaram na calçada como é o costume da terra. Todavia a conversa com Agenor não convenceu a jovem Soraia de deixar o rapaz esotérico. Naquela mesma noite quando seu Agenor se recolhia com sua esposa, Soraia foi até a Praça do Cruzeiro ver o seu amor.
- Venceslau, por que você não deixa a macumba e vem comigo para a igreja?
- Meu bem, eu te amo, mas, não posso deixar meu Pai de Santo na mão. Eu tenho compromissos no terreiro e não posso abandoná-los.
- Que compromissos são esses, Venceslau! Isso é tudo macumba! É feitiçaria! Gritou a menina desconsolada. Aquela noite os dois não se beijaram, nem trocaram afetos. A noite foi sem graça, apenas a tristeza e a expectativa de uma separação.

No sábado pela manhã Venceslau tinha um amaci para aprontar com seu Pai de Santo. Seu Domingos era um negro que viera de Feira de Santana tentar a vida em Tobias. Os negócios fracassaram e restando-lhe somente a fé nos Orixás para sobreviver. Era um homem de caridade. Sua idade avançada não dificultava o seu trabalho, no entanto, isso não lhe desobrigava da necessidade de ter alguém de sua confiança para passar os conhecimentos de sua religião. O homem não tinha filhos. Sua mulher era idosa e cega. Passava o tempo inteiro rezando pelas almas aflitas.

- Meu véio! Dona Maria Conga tem uma palavra.
- E é minha véia?

Venceslau chegou cedo ao terreiro, fez as obrigações e foi ter com seu Domingos.

- Seu Domingos: Estou triste com uma situação.
- Qual meu filho? Perguntou seu Domingos com sua voz doce. A voz de seu Domingos parecia com a voz de um preto velho vivo, encarnado. O povo da redondeza dizia que o velho era “um preto velho vivo”.
- Minha namorada é evangélica e quer que eu deixe o terreiro para ficar com ela. Estou triste, pois, considero a religião dela legítima. Então, por que a minha não é? Dizem que servimos ao diabo.
- Meu fio: A forma como as pessoas julgam as coisa e as outras pessoas nem sempre vê com clareza. Passa muitos sentidos que lhes são obscuros. Deus é um só. Ele é a fonte suprema de onde emanam todas as virtudes e bondades possíveis. Ele é o arquiteto do Universo.
- Eu sei meu pai. Desde criança que sua pessoa me conta das lendas dos orixás. De Deus emanam sete raios. E estes raios são as manifestações de Deus para os homens e toda a natureza.
- Então, meu fio.

Venceslau saiu mais em paz. Não podemos dizer o mesmo da pequena Soraia. Seu pai a aguardava para saber qual foi a decisão do rapaz.

- Minha filha, o rapaz decidiu aceitar Jesus?
- Não meu pai. Ele nada prometeu.

Soraia foi para seu quarto. A menina queria ficar a sós. Em seu quarto ela orou a Deus e decidiu deixar Venceslau.

“Meu Senhor, muito obrigado pela força que o Senhor me dar nesse momento para esquecer Venceslau. Eu o entrego em suas mãos. Se ele for para ser meu, converte-o para ti”. Soraia se deitou para descansar e pegou no sono.

Enquanto isso seu pai sai para o mercado comprar algumas coisas. Sua mulher dona Anita o pediu para comprar algumas verduras. Anita era a segunda mulher de Agenor. A primeira morrera do vento. Dizem que o vento passa e a pessoa morre. Seu Agenor aproveitou o ensejo para abrir a Bíblia defronte às barracas da “Feira da Verdura” às dez da manhã. Seu Agenor alertava o povo sobre a Volta de Cristo quando um homem forte e alto tombou nele no meio da rua caindo sobre seu frágil corpo. Seu Agenor fez muita força para sair de debaixo do homem. Acho que esse esforço agravou as condições do profeta de Tobias, Agenor dos Anjos. Agenor dizia aleluia, aleluia, e aí, aí, aí. A dor era grande. O povo teve piedade e levou o homem para o Hospital de Caridade.
“A situação do homem é grave; atingiu a cabeça. Foi traumatismo craniano. Estamos aguardando para leva-lo para Aracaju”.
Foi isso que Dona Anita, Sorai, Francisca, e Antenor ouviram dos médicos quando chegaram para ver o pobre Agenor. Venceslau soube do ocorrido e foi ao hospital consolar sua amada.

- Meu bem, como está seu Agenor?
- Vão levá-lo para Aracaju.
- Não sei, a coisa parece grave.
- Não tema Oxalá não nos desampara.
- Como? Venceslau, como foi que você disse?
- Eu disse que Jesus vai nos abençoar e seu pai vai ficar bom. Dona Anita ouvia a conversa e se meteu no meio com a intenção de constranger o rapaz. “Eu não te disse minha filha? Namorar macumbeiro é coisa séria. Olha seu pai! Como foi isso? Ele fica invocando os demônios dele, sei lá?” Venceslau ficou tão envergonhado que saiu do hospital sem ser percebido. Isso o feriu muito. Naquele dia Venceslau viu que aquele amor era impossível. O jovem retornou ao terreiro e pediu a sua mãe de cabeça Oxum para tirar a jovem Soraia de seu coração.

- Por que está chorando Venceslau? Perguntou o velho Babalorixá.
- É Soraia, seu Domingos. A coisa ficou preta. A família dela não me aceita.
- Meu filho nada é impossível quando os Orixás tem um plano.
- O senhor acha que Zambi quer esse amor?
- Zambi quer todo amor do mundo. Todo amor é bem-vindo aos olhos de Zambi. Ele é todo amor. Espere e veja o que Oxum fará.
- Seu Domingos está tendo uma vidência?
- Digamos que tenho uma intuição. Concluiu seu Domingos.

Toda a família desceu com Agenor para Aracaju. O estado dele se agravara durante a viagem. Os médicos acharam por bem colocá-lo nos aparelhos em uma UTI.

- Soraia o diabo é astuto. Seu pai, um pregador do Evangelho nessa situação que ocorreu do nada. Agora vou perder meu marido. Disse Anita com os olhos cheios de lágrimas.
- Você está me culpando?
- Não Soraia. Apenas, estou pensando como as coisas são.
- Não! Você quis dizer que foi por causa do meu romance com o macumbeiro que isso ocorreu.
- Não foi bem assim...

As duas foram interrompidas pelo o médico que se aproximava: “Lamento, mas, o paciente não está reagindo à medicação. Ele tem plano de saúde?” Soraia e seus irmãos entraram em pranto.
- Não fiquem assim! Disse o médico tentando amenizar as coisas.
- Como doutor? Nós somos pobres!
- Lamento, mas, ele terá que ir para um hospital público. No domingo, levaram seu Domingos para o Hospital João Alves. Não havia leitos disponíveis; o homem teve que esperar no corredor. A situação de seu Agenor seu agravou com a espera. Quando foram cuidar do homem , ele já estava sem sentir as pernas e a boca havia entortado. O pregador de Cristo agora não mais poderia falar desse nome.

Os meses passaram. Seu Agenor não se conformava com sua nova vida. Sua mulher Anita nunca parara de fazer sua fé no jogo do bicho. Havia uma barraca de jogo no final da Avenida Luiz Alves. Era lá que ela tinha um compromisso todos os dias: “Paz do Senhor irmã!”

- Deixe de brincadeira Otávio! Você num sabe que isso é coisa séria. Cuidado Deus pode te castigar!
- Se ele me castigar, castigará a você também sua danada! Vai fazer uma fé em que hoje?
- Na cobra! Disse sorrindo dona Anita.
- As sete? Combinado?
- Certo!

Anita e Otávio estavam tendo um caso desde o dia que seu Agenor recebera o chamado de Cristo para pregar. O homem tinha que se santificar para sua missão e evitava a mulher constantemente. O celibato era quase uma rotina em sua vida. Com isso, sua mulher, uma baixinha dos cabelos lisos e feições europeias, não resistiu a seca, e se envolveu com o vendedor de bilhetes do jogo do bicho – O Otávio. Este nada fazia na terra, exceto, vender jogo e beber com mulheres de família. O homem era de porte e chamava a atenção das mulheres mal servidas.

Seu Agenor padecia sem aceitar a sua nova condição. Não podia andar e mal abria a boca para falar. Falava com muita dificuldade o pobre homem de Deus. Ele dizia: “Assim como Deus provou a Jó, está me provando também”. Venceslau e Soraia nunca mais se viram. O rapaz continuou freqüentando o terreiro de seu Domingos. “O moço aprende rápido!”Dizia seu Domingos. Quanto a moça Soraia a doença do pai tirou Venceslau um pouco de sua cabeça. Anita saia quase toda noite, e Soraia era única que ficava em casa. Ela tinha terminado o ensino médio e trabalhava pela manhã como caixa de supermercado. Aquela noite os ratos estavam agitados. Começaram a andar pela casa cedo. Qualquer fragmento de alimento era motivo de festa para a ratarada. A casa de Agenor tinha muitos ratos. Todas as casas devem ter ratos.
- Será meu véio?
- Deve ser minha véia, deve ser.

Aquela noite Soraia sonhou que entrava na casa de Pai Domingos. Ela chegou a pé ao centro. Abriu o portão de madeira e entrou um pouco tímida. Ela ouvia à proporção que ia vendo as plantas e as árvores do jardim da casa uma canção que lhe despertava lembranças de algo que não tinha consciência que vivera: “cheira cravo, cheira rosa, cheira flor de laranjeira... oh, abre a porta deixa as almas trabalhar...” Do lado de fora do barracão ela avista Venceslau dançando com uma espada na mão. A dança era muito bonita; era uma dança marcial. O rapaz em transe se vira e olha para Soraia. Seus olhos como que distantes não encontram o foco do olhar da moça. Apenas diz aquele que estava nele: “Deus é maior que o mundo!” Soraia ainda em seu sonho encontra uma cega sentada em um banco defronte a entrada da casa do casal. A velha fumava um cachimbo de madeira e chamou a moça para uma prosa.

- Minha fia que faz aqui?
- Num sei.
- Qual é o tamanho de Deus?
- Que pergunta besta senhora! Desculpe-me a franqueza.
- A sua pessoa acha que Deus só tem um tamanho. Será que Deus é igual na cabeça das pessoas? Num será que Deus é diferente em cada cabeça, contudo, ele é o mesmo Deus?
- Deve ser. Mas as Escrituras nos ensinam a verdade.
- Assim como as nossas consciências. Deus é um só em cabeças diferentes. Você verá que ele é maior que o mundo e não cabe dentro de uma casa só. Soraia acordou do sonho e Anita estava em pé do seu lado junto com seus irmãos. Ela não percebera, mas, durante o sono ela falava e sua língua como disseram estava “atrapalhada”. De manhã a menina saiu para comprar umas verduras e algo muito estranho aconteceu.

- Você viu seu Guilherme? Viu o vento?
- Claro que vi! Formou-se um redemoinho bem no meio da encruzilhada!
- Você ouviu a gargalhada alta?
- Não! Teve gargalhadas?
- Teve! eu ouvi! Como você não ouviu?
- Eu não ouvi gargalhada, não? Concluiu seu Guilherme com um tom de surpresa. Soraia saiu da barraca sob o olhar desconfiado das pessoas que passavam e das pessoas próximas que estavam escutando a prosa dos dois. Em Tobias é assim: “O particular logo se torna público”. Soraia caminha na direção da Avenida Luiz Alves, de longe a moça avista Anita dando risadas conversando com Otavio. Os dois estavam tão à vontade que nem perceberam a chegada da filha de Agenor.

- Anita o que você tem com Otavio? Eu estava vendo vocês de longe, e senti que havia algo. Vou dizer para meu pai!
- Deixe de ser histérica moça! Eu ia passando e Otavio, esse cretino, me chamou para apostar no bicho, e aí, você chegou. Soraia tentou falar novamente e caiu numa crise de risadas, sua fala estava toda atrapalhada. Levaram-na para a casa. Lá, seu Agenor e os irmãos da igreja oraram por ela: “Satanás! Sai desta vida em nome de Jesus! Seu Agenor queria gritar Aleluia, mas, sua voz não saia. Os outros crentes entoavam cânticos desafiando o demônio que estava no corpo da menina: “Sai, Sai, Sai, todo poder das trevas! Sai! “Mas, a minha fé você não leva...” A menina recobrou os sentidos. Uma irmã profetiza disse que ela estava com Exu.

- Tá vendo minha filha? Ainda vai andar com macumbeiro?
- Faz é tempo que não vejo Venceslau. A pergunta da crente profeta abriu uma ferida no peito de Soraia. Fazia tanto tempo. Os meses passaram sem piedade. Mesmo com a dor do pai, a menina nunca esqueceu seu amor. “Onde ele está? Será que pensa em mim?” Os ratos se multiplicaram na casa de Agenor. Agora eles andavam até de dia pela casa. Um rato calunga e sua namorada desfilavam pelas ripas da casa. Uma ratazana gorda amamentava os filhotes debaixo da peça que apoiava a televisão. As pessoas estavam tão preocupadas com o diabo que nem perceberam a festa dos ratos.

- Minha véia, as pessoas não entendem que o mundo tem tudo.
- Sim, sinhô, os ratos devem viver no seu lugar.
- Minha véia, por que os ratos gostam de morar na casa dos encarnados?
- Lá tem muita comida! Deve ser, num é?

No mês de Junho Tobias à noite vira uma geladeira. Todos foram dormir cedo. Anita voltou do culto as nove e foi direto para o quarto. As dez, a casa estava toda quieta. Somente o ronco de Agenor com as estripulias dos ratos quebravam o silêncio do lugar. Uma ratinha cinzenta muito danada foi brincar no quarto de Agenor. O pé do mesmo estava fora do cobertor. A ratinha pensando ser comida estragada por causa do cheiro deu uma mordidinha no dedão de Agenor. O homem parou o ronco assustando o animal. Os passarinhos cantaram cedo aquela manhã. O inchaço no pé de Agenor foi percebido logo: “Deve ter sido a posição de dormir”. Disse Anita. De tarde a febre tomou conta do pregador. O levaram para o hospital. Os médicos suspeitaram da mordida e disseram que era doença de rato. A cidade ficou alarmada: “Agenor meu Deus, tão bom; mordido pelo rato, e agora? Vai morrer”. O hospital de caridade estava cheio de curiosos para verem o coitado “louco” padecer do mal do rato. Venceslau soube do fato e foi até o hospital.

- Como vai Soraia? A menina Soraia quando viu seu amor correu para os seus braços. Sua alma se derreteu como manteiga apoiada em seu ombro.
- Não chore! Deus é maior que tudo. Soraia lembrou-se do sonho e pediu a Venceslau para levá-la a casa de seu Domingos. Eles mal conversaram no caminho devido à ansiedade da moça. Venceslau nada entendia, mas, acompanhava seu amor. Ele estava sem acreditar no que estava acontecendo. “Soraia, na casa de Pai Domingos?” A casa estava deserta. À porta estava uma cega sentada em um banco de madeira. Era a esposa de Domingos. Ela nunca saia de casa, mas, naquele dia ela estava do lado de fora como que esperando alguém.

- Você veio minha fia? Ontem muito padeci por tua causa.
- Como assim, senhora?
- Seu pai minha fia miorou?
- Não.
- Mas, vai miorá.
- Deus é grande. Ele é maior que nossas imaginações. O povo diz tudo dele. Uns de bem, outros de mal. No entanto, ela nada diz. Deus é maior que os nossos ditos, num é minha fia? Venceslau traz uma vela e faz um mingau para o Vovô comer! Dona Maria Conga rezou as orações dos pretos velhos, arriou a oferenda, e entrou em casa.

Seu Agenor se recuperou da doença do rato. Mas, não foi só isso. Ele voltou a andar e a falar. Em pouco tempo o velho estava pregando na feira. As pessoas que vinham de diversas localidades procuravam um lugar no meio dos outros para ouvir o “Louco de Tobias”. A igreja fez um culto de ações de graças pelo “Milagre de Deus” na vida de Agenor. Comentava-se na igreja que no próximo ano ele seria consagrado a obreiro. Os crentes falavam com muita alegria sobre a cura do homem, outros apenas falavam: “Está vendo mulher como a oração é forte?” “Também, tanta gente orando por ele, Deus só podia fazer um milagre!” “Que nada tudo isso é invenção!” As opiniões eram muitas. Contudo a opinião de seu Agenor não mudava sobre o jovem Venceslau.

- Tá vendo minha véia como Deus é bom?
- É.
- Dona Maria, e Venceslau com a moça? O que deu?

Venceslau e Soraia foram morar em Feira de Santana. Ela passou a receber uma Preta Velha que responde pelo nome de Maria Conga. Os dois abriram uma casa de axé. Venceslau se tornou Pai Jorge, e Soraia, dona Maria. Anita nunca deixou de ver o jogador de bicho. Agenor continuou pregando na feira. A cega, mulher de seu Domingos, morreu de dengue. Depois da partida de sua amada, seu Domingos perdeu a graça. Foi recolhido com os santos em Aruanda.

- Pois é meu véio, Deus é maior que o mundo.
- Num é...

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

CHAGAS – UM SUPER CIDADÃO


Por Roosevelt Vieira Leite


Chagas acreditava que as regras do mundo eram justas. Chagas teve uma educação pública, aqui, mesmo, em Campos. Do fundamental à faculdade Chagas se destacou, e seus mestres diziam que o moço de Campos seria um cidadão perfeito. O moço de Campos, filho da macambira e da jurema foi trabalhar em Aracaju, capital do estado. Lá, ele iniciou sua iniciação no jogo da vida na capital mais linda do Brasil. Chagas só não sabia que nem tudo é uma benção, na verdade, como dizia Joaquim, um velho campense que aprendeu desde cedo entre os de sua raça, raça negra como café, que o mundo é um grande balaio de gato com um guabiru solto dentro.
Eram dez horas da manhã a entrevista de emprego. Aquele seria o primeiro emprego do jovem filho do sertão. Seu futuro patrão iniciou a conversa com um bom dia seguido por uma dissertação perfeita sobre a crise brasileira. A conversa foi encerrada com uma mistura de olhos marejados e um aperto de mão com um sorrido espremido entre os lábios: “Ficam, então, combinados os R$ 4,24 a hora trabalhada?” Chagas trabalhou duro por 7 meses; no final dos mesmos, o jovem trabalhador do Brasil refletiu como pode sobre tudo. Sua conclusão foi: “Isto não é um emprego, isto é, na verdade, uma maracutaia para explorar a minha pessoa; tenho certeza que este é um caso isolado”. O segundo emprego de Chagas foi a farmácia “Compre tudo e pague quase nada”. Seu salário inicial eram os tais 4,24 do primeiro, mas, com uma diferença, ele recebia comissão por venda. Chagas labutou por mais sete meses de sua triste vida, e depois saiu do emprego alegando que ele trabalhava somente para pagar o transporte uma vez que o rapaz pegava duas conduções por dia, e tinha que comer fora. Seu gorduroso almoço lhe custava, diariamente R$ 12,00 mais um suco doce e ralo de R$ 3,00. O jovem, cheio de esperança que as regras de fato fossem justas como ensinavam seus mestres enfrentou mais este carma. No final dos setes meses sua conclusão foi. “O professor Martinho me ensinou que o Brasil é um país pacífico de gente honesta e trabalhadora. Não posso generalizar estes recentes casos meus”. Chagas fez, sem cursinho, sete concursos na esperança de passar em algum. Ele dizia: “Todos dizem que o ensino público não é eficiente, mas, aprendi com a diretora Alves que é o aluno quem faz a diferença, e eu fiz, a minha menor nota foi sete”. Chagas não passou em nenhum dos concursos e foi pleitear uma vaga de vendedor de passagens de ônibus na antiga rodoviária da cidade. O Gerente da mesma solicitou que ele apresentasse diversos documentos. No meio da papelada haviam comprovantes de idoneidade moral, certificados de escolaridade, exames médicos, e laudos de perícia médica, além da ficha criminal, caso, fosse o rapaz ex presidiário. Além de tudo isso, sua experiência completa de trabalho com autenticação no cartório caso fossem entregues cópias. Chagas foi instruído a esperar uma resposta dentro de quinze dias, pois, haviam duas mil pastas de pretendentes para serem examinadas. Chagas precisou pegar dinheiro de um agiota cognominado de Bigodinho do Aribé. Foram R$ 2.000,00 parcelados para 24 meses com juros de 17 por cento ao mês. Chagas percebeu a abusividade do contrato, todavia, cedeu às regras do jogo porque os bancos bateram as portas na sua pálida e suada cara. Três meses depois, a gerencia da rodoviária o chamou. Chagas passou a ganhar novamente 4,24 a hora sem comissão. No primeiro mês, o pobre Chagas comeu no albergue “Santo Antônio”, pois, seus proventos só davam para pagar a condução, a parcela do empréstimo e as dívidas amontoadas. “Fazer outras não”. Decidiu o filho ilustre de Campos do Rio Real. Sete meses depois, Chagas entendeu que ali não era o seu lugar; o rapaz cogitava sobre o fato de que o seu dinheiro só dava para pagar o agiota, o transporte e a venda, assim, ele era insuficiente para cobrir suas outras pequenas mínimas e poucas despesas. Chagas decidiu não sair de casa, não comer feijoada ou churrasco, ou tomar cerveja no finais de semana na casa de seus amigos. O moço se trancou no seu quarto quitinete por 210 dias. No final de sua reclusão sua conclusão foi a mesma: “Achei mais um picareta”. Chagas não sabia que a rodoviária era uma instituição estadual gerida por contrato terceirizado; isso era considerado excelência e eficiência. Chagas gastou o seguro desemprego por três meses, depois foi tentar a vida de novo, desta feita era um contrato na prefeitura de uma cidade satélite da capital sergipana. “Aqui você só ganha até novembro, em novembro, sua pessoa sai de férias, retorna em fevereiro, e volta a receber em março. O rapaz pensou sobre isso quieto com minúsculas gotas de água em seus olhos: “Ah, se eu pudesse pôr um negócio”.
Certa feita, assistindo TV, Chagas viu um anuncio: “O governo ajuda os pequenos empreendedores”. Chagas correu para a secretaria de ação social e inclusão: Traga os seguintes documentos – Cópia da certidão de nascimento ou casamento, caso fosse casado, identidade, CPF, certificado de conclusão dos estudos, folha corrida, nada consta, experiência profissional, e o projeto do empreendimento. As copias deveriam ser autenticadas e assinadas por ele no rodapé das páginas de todos os documentos. Chagas voltou ao agiota para pedir mais uma porçãozinha mágica: “Mas, você ainda me deve”. Alegou o contraventor criminoso, porém, muito necessário para quase todo mundo da casa grande, exceto, para os que conhecem as senzalas do Brasil. “Eu vou pôr o meu próprio negócio, finalmente”. Bigodinho do Aribé arregalou seus olhos redondos e verdes, o verde dos olhos franceses que invadiram a barra dos Coqueiros nos tempos da colonização. “Seremos parceiros”. Chagas voltou para sua quitinete no Siqueira Campos com mais R$ 2.000,00 emprestados nas mesmas condições do outro emprestimo. Chagas pôs o seu comercio de vendas de água de coco, pastel, e refrigerantes diversos. Seu estabelecimento não passava de um toldo, uma mesinha, um freezer velho de segunda, outras pequenas ferramentas de trabalho. Nos primeiros dias, a coisa, até, que rendia, mas, depois, segundo a explicação de Clementes, um sábio vendedor de cocos na feira, a crise pegou. Chagas não entendia bem a crise, ou se, de fato, existia alguma: “Quer dizer que a crise é a culpada? E porque os gestores não previram e se prepararam?” Chagas tinha sua desculpa, mas, Bigodinho não aceitou: “Que crise!” Esbravejou o homem que só queria seu dinheiro.
Chagas foi vender coco na rótula próximo ao cemitério da linha de ferro. As vendas eram mínimas. Um coco, aqui, outro ali. Com o tempo o homem se perdeu entre os flanelinhas e todo tipo de peixe morto que povoava o lugar. Certo dia, Chagas foi encontrado morto na lixeira do CEASA que ficava próximo. Enfiado em sua boca ensanguentada estava o bilhete: “Deveu, não pagou, morreu”.

EDITORIAL DE JANEIRO

No Brasil, o Estado convence a sociedade usando o discurso da crise; da conspiração geopolítica, e outros. Tem, até, alguns gestores que utilizam a desculpa do pecado como causa do sofrimento do povo. A classe média sempre entre os dois lados é a menininha que pensa ditar o ritmo das transformações. O povão nas mãos de uma mídia cúmplice do Estado e bem perdoada tributariamente, acredita em tudo que ver e se espelha nos personagens das novelinhas tidas como "The best coisa", e premiadas pelos estrangeiros como sendo "alguma coisa grande". Dizem as más línguas que o nosso atual gestor, um exemplar vivo de articulação propinatária, desculpem - me o neologismo, está, gentilmente, entregando as nossas empresas sadias a preço de nada comparado com o valor real delas. Os amigos desta corte comemoram seus lucros bancados pelos impostos do povo em restaurantes chiques da Europa alegando estarem a serviço da nação. Os militares calados assistem passivos o opróbrio, e o escarnio da nação diante do mundo inteiro. Vez ou outra eles dizem: "Estamos atentos" como se dessem um aliviada na culpa das armas passivas e quem sabe bem remuneradas. As eleições brasileiras de 2018 está assustando Wall Street e Brasília. Parece que dizem assim: “Se correr o bicho pega se ficar o bicho come”. Minha pessoa foi um dos tais que postou na internet contra um suposto golpe comunista em andamento no Brasil. Admito isso e digo: “Mas, como eu fui otário”, pois, na verdade, cinderela e seus amiguinhos estavam era me usando e a outros idiotas como eu para o golpe que obrigou o brasileiro a trabalhar mais, ganhar menos, se aposentar mais velho, e engolir a entrega das poucas coisas que ainda nos davam um pouco de orgulho de sermos brasileiros. Quero dizer ao meu leitor que amanhã haverá mais um aumento da gasolina sem aumento de salário. Fim de papo, vou abastecer meu carro velho comprado parcelado para 36 prestações com IPVA de 600 reais ao ano que anda em estradas cheias de crateras, mal sinalizadas e iluminadas, cheias de ladrões de cargas, e marginais que podem estarem fardados ou a paisana. Disse eu, plim, plim!

A VIDENTE

“Eu não posso contar tudo que vi e tudo que senti. Só posso dizer que eu vi; e o que eu vi, mudou tudo...”

Para Agatha, desde doze anos, a menina morena, de cabelos pretos e pele branca européia caminhava para a pequena Igreja no centro da cidade. Ela era cristã protestante; congregava na Igreja do Evangelho Santo. A moça esperava a volta de Cristo a qualquer momento. Suas orações nunca cessavam, fosse pelos seus familiares, ou pelos seus amigos, ou inimigos. Talita era uma moça evangélica que tinha certeza de sua salvação; a palavra de Deus, em suas mãos, era descortinada diante de olhos escolados ou não. Diz o povo que um dia a moça portadora de uma grande e misteriosa sabedoria explanou o evangelho para um doutor da universidade. Seus pais enchiam o peito de orgulho por sua filha pequena. Eles davam glória a Deus por tudo todos os dias.

- Sabe Geraldo! Acho que Talita tem o chamado do Senhor.
- Eu também acho mulher. Mas deixa a coisa aflorar! Geraldo e sua mulher Zefinha eram pessoas de classe simples. Tinham o bastante, nada de riqueza. O casal também servia ao Deus vivo com todo o coração.

Tobias Barreto, nessa época, crescia muito rapidamente. O comercio crescia como as novas Igrejas. Em cada rua do município havia uma. O comercio de Tobias se expandia como a fé de seu povo. O Pastor Elenildo, um dia, disse: “A fé é tão necessária como o dinheiro. Com ela se abre as portas do Céu, e com ele, as portas da terra”.

Talita entrou na igreja naquele domingo como era de costume. Cumprimentou a todos, deu a Paz do Senhor a todos, e se dirigiu ao seu lugar nos bancos da mocidade. O culto logo iniciou com a oração do prelúdio. O pastor levantou a voz em prece pela congregação e por todos os tobienses. Em seguida um grupo de jovens toma a direção e conduz o louvor. Talita acompanhava tudo com reverência e temor ao Senhor. Para a moça aquele seria mais um culto a Deus em sua vida. O pastor Elenildo, um homem de bem, considerado por toda a comunidade, pega a palavra da pregação. O homem brilhava naquele púlpito. Sua testa branca suada refletia o suor de uma alma servindo a seu Deus.
“Meus caros, Em face do momento em que vivemos, urge fazermos um enfrentamento da realidade seguindo coordenadas evangélicas. O apostolo não falou, por acaso, que nos dias finais as pessoas zombariam da Palavra e escarneceriam do próprio Senhor. Vivemos esta hora, amados! Vivemos o tempo da apostasia...”

A pequena Talita de olhos fechados e contrita tem uma visão: A pequena via uma forma azul no céu da igreja. Como se do teto saísse uma pessoa cuja luz era azul da cor do céu. O ser divino descia em espiral até o meio do povo. Este sem nada saber dava glória a Deus repetida vezes e intercalavam a louvação com aleluias vigorosas que fizeram as paredes do santuário tremer; Talita se assusta ao abrir os olhos. Fecha novamente os olhos e nada mais ver. Seu coração ardia como uma tocha de fogo. Mas, nada disse para ninguém. Todos foram embora, e ela também. Em casa a menina pergunta ao Espírito Santo sobre aquela visão: “Meu Senhor o que eu vi veio de ti? Se foi, o que foi que eu vi? Pois não entendo!” Zefinha havia preparado um cuscuz. A família, unida e feliz, comi antes de ir para a cama. Na cama, a menina repassa sua visão: “Um ser parecendo do sexo feminino desce do céu com um sabre na mão. Ela fazia movimentos espirais. Sua cor era azul celeste. Sua presença no santuário fez o povo, mesmo sem nada ver, louvar a Deus”.

A Igreja do Evangelho Santo de Talita, embora, renovada tinha muitas restrições às manifestações do Espírito Santo. O Diácono Celestino quem o diga. Muitos pastores perderam seus pastorados na Igreja do Evangelho Santo. Todos que vieram com suas revelações do Espírito Santo foram perseguidos. Celestino presidia os diáconos há quase vinte anos. Ele nunca perdoou um místico de Deus. O homem cria na visão racional das escrituras e que a razão é o motor para a compreensão das verdades divinas.

Talita com muita cautela procura dona Vera, a presidente do grupo de oração da igreja. O povo dizia que Vera falava em línguas estranhas. Diz o povo que ela entrava em transe e falava com o Espírito Santo nas línguas dadas por Ele. A igreja estava nitidamente dividida nessa questão, a xenolália. Os que se diziam bereanos “os que conferem as escrituras”, e os pentecostais - os que acreditavam nos dons do Espírito Santo. No entanto, a igreja como um todo era considerada fundamentalista. O movimento renovado não criara raízes na Igreja do Evangelho Santo.

- Dona Vera eu gostaria de te contar uma coisa. Faz uma semana que tive uma experiência e estou sem entender. Disse Talita.
- Minha filha você é uma moça nova, ainda menina, o que foi que houve?
- Dona Vera, apesar de ter apenas doze anos, eu sei o que vejo e o que escuto.
- O que houve minha filha? O pastor brigou contigo? Foi algum irmão ou irmã da igreja? Conte!
- Eu estava no culto neste último sábado e vi algo; algo sobrenatural. Acho que foi o Espírito Santo.
- O Espírito Santo?
- Sim!
- Por que Ele falaria com você? Tão novinha! Acho que o Espírito Santo fala com o Pastor, não?
- Dona Vera eu vi descendo do teto do santuário a figura de uma mulher. Ela era toda azul celeste; tinha um sabre na mão. Quando a vi, o povo deu glória a Deus. Depois olhei; vi vários pastores sentados, uns a direita, outros a esquerda de nosso pastor. Uns subiam de suas cadeiras e depois desciam. Outros ficavam da mesma altura. Acho que o Espírito Santo está dizendo que nossa igreja precisa de humildade.
- Minha filha! Nossa cabeça imagina tanta coisa estranha. Você está gostando de algum garotinho de sua idade? Talita viu que a presidente do grupo de oração nada lhe acrescentaria. A mulher não conseguia ver ou sentir nada sobre o mundo do Espírito. A menina decidiu ir para a Igreja e orar a Deus para Ele aliviar sua alma, ou se fosse o caso, perdoar seu orgulho e vaidade.

“Senhor, Meu Deus, Quem é tua pequena serva para ter uma Palavra do Espírito Santo para tua Igreja? Perdoa-me meu Deus!” Nesse ponto Talita chorava pela sua experiência que ela não entendia. Nesse estado de profunda oração, a moça, com os olhos fechados, ver por toda a Igreja sapos, cobras, e outros animais. Os animais estavam espalhados pelos os cômodos da igreja. Defronte ao púlpito havia um macaquinho preto de cabeça branca. “Esse é aquele responsável pela estripulia do pastor. Ele deve, e seu débito não será pago. Isso será sua queda. Medite sobre os outros animais e saberás o que há”.
- Quem fala comigo? Quem fala comigo? Gritou Talita sem sucesso de respostas. A moça saiu do templo com o coração ardendo. O sol subia no céu. Era quase meio dia. Talita vai para o missionário refletir sobre o ocorrido. Nessa época o missionário que era um pequeno zoológico de Tobias recebia pessoas todos os dias. Talita estava só. A moça sentava debaixo de um pé de eucalipto, ao lado da jaula dos macacos.

“Meu Deus, O pastor vai cair e eu posso ajudá-lo, mas, quem vai acreditar em mim?” Um macaquinho danado deu uma risada forte. Parecia que ela dizia alguma coisa para a pequena.

O vento soprava forte no eucalipto. Saia um zumbido intenso e agudo. Era como se o tempo chorasse. Dizem que quando tempo tem as mãos cruzadas, ele chora. Às vezes alguém escuta o choro do tempo. Talita disse para si mesma: “Eu vou avisar o pastor”.

- Pastor Elenildo!
- Sim!
- Deus pode falar com uma criança de doze anos?
- Sim, pode!
- Então, Ele me disse que sua pessoa vai cair se não pagar sua dívida!
- Calma! Calma! Menininha! Eu devo, mas, o dinheiro será levantado! No momento já tenho a metade. O restante o diácono Celestino garantiu que me conseguiria. Então fique tranquila que seu pastor não vai escandalizar o nome da Igreja. Talita voltou para sua casa de cabeça baixa e não mais quis saber de suas visões. Dois anos passaram o pastor Elenildo foi chamado a depor na delegacia sobre três cheques sem fundo. O nome da Igreja foi parar nos jornais. O escândalo foi grande. Naquela época não havia políticos prontos para abafar as coisas. Talita sabia que suas visões faziam sentido, no entanto, decidiu esquecê-las.

A Igreja passou pouco tempo sem pastor. Fernando veio de Alagoas fazer a diferença no Senhor. Era um jovem solteiro cheio de vida e de vontade de trabalhar. “Irmãos, quando senti o chamado do Senhor para essa obra; eu orei muito; e o senhor me respondeu em sonho. Eu estava, aqui, em Tobias, e na minha frente estava essa Igreja. As pessoas entravam aos montes. Muitas almas serão salvas”. A Igreja quase que entrava em delírio de tanta alegria com o novo pastor.

- Mas, o homem é solteiro! A bíblia nos diz que devemos fugir de toda a aparência do mal. Como ele vai vencer a tentação da saia? Questionou o diácono Celestino aos outros diáconos. O tempo passou. A jovem Talita tinha somente quatorze anos agora. A menina foi ao culto da mocidade em um sábado de verão quente. A igreja estava cheia de jovens de várias religiões. Fernando era um bom pastor e fazia um excelente trabalho com a mocidade da Igreja. Novos instrumentos foram comprados e organizada foi uma banda de Jovens. Era chamada de “Banda Esperança”. O culto começou às sete e meia em ponto. O templo estava cheio. Fernando faz a oração inicial e passa a palavra para o dirigente dos louvores – a jovem Marilucia. O culto foi muito fervoroso. Em determinados momentos alguns jovens entravam em quase transe. Diziam eles que sentiam o Espírito Santo muito perto. A jovem Talita naquela noite de sábado viu uma cobra gigante rodando o oitão da igreja. A menina tomou um susto e gritou, isso fez o culto parar.
- O que houve Talita?
- Não sei. Disse Talita com muito medo.

O grupo de mocidade pediu a igreja para orar por Talita. Toda a igreja se ergueu em oração pela jovem. Durante a oração Talita via Fernando enrolado pela cobra. E esta mordia sua cabeça causando-lhe a morte. Talita entende que Fernando seria ferido por um sentimento profundo, isso seria sua ruína. “O que posso fazer?”

- Vera eu vi Fernando sendo engolido por uma cobra enorme.
- Menina! Deixe dessas coisas! Somos renovados, mas, não acreditamos em qualquer visão. Não será que você estar apaixonada pelo novo pastor e não sabe? Parece que as moças todas estão loucas por ele. Jovem, inteligente, bonito!
- Não é isso Vera! O que eu vi eu vi! Mas, uma vez Talita não era acreditada. A moça estava se acostumando com as coisas. Ela orou a Deus e pediu uma orientação. “Deus, se eu devo avisar teu servo, então, me fala pela Palavra”. Na manhã do outro dia, Talita abriu a bíblia e não encontrou resposta alguma. Leu alguns versículos, mas, nada que a remetesse a visão. “Deus me diz, então, que desta vez foi minha imaginação”. Talita agradeceu a Deus pela Sua resposta. Sete meses se passaram da data da visão ao dia do escândalo do novo pastor. Uma moça jovem apareceu grávida. A menina resistiu um tempo, depois contou tudo à direção da Igreja. Celestino aproveitou o ensejo para afinar seu discurso: “Pastor solteiro não pode dar certo”.

O novo pastor era um homem velho casado com uma mulher de etnia africana. O casal tinha dois filhos. Ambos eram formados e viviam no Rio de janeiro. O casal de idoso gozava da sabedoria e da graça divina. Soboto soube da jovem vidente da Igreja.

- Minha filha, você vê com os olhos abertos ou fechados?
- Não faz diferença. Eu vejo de todo jeito.
- Desde quando isso acontece?
- Desde criança.
- Você fala em línguas?
- Não. Mas, tudo que vejo acontece.
- Quando você vê algo depois você sabe o que viu?
- Às vezes eu sei, às vezes não.
- Entendo. A conversa com Soboto muito ajudou a jovem Talita. Ela entendeu que ela era dotada de faculdades dadas por Deus desde o seu nascimento, e que o que ela chamava de sobrenatural era a manifestação natural da natureza. Talita tinha na época dezoito anos. Nunca mais ela tivera visões. Isso durou muito tempo. Talita passou no concurso do estado, foi trabalhar como servente de uma escola estadual. Seu marido, um rapaz iluminado, era ajudante de pedreiro. O moço, embora, muito trabalhador, nunca gostou das letras. Mas, era um crente fiel.

- Talita! Talita!
- Sim!
- Celestino vai levantar a mão contra o pastor. Ele deseja ser pastor em seu lugar.
- Como? Quem fala? A voz falou-lhe três vezes. A menina estava lavando o banheiro da escola. Com a força do transe ela caiu inconsciente acordando em casa. Seus familiares nada sabiam. O médico do posto disse que o ocorrido foi por causa da gravidez. Todo mundo se aquietou, menos Talita. “E agora?” “O que vou fazer?” Essa se tornou sua preocupação. As visões da moça eram agora acompanhadas de vozes. A tudo ela atribuía à força do Divino Espírito Santo. “Eu sei que Ele está em mim”.

Celestino venceu o pastor e o expulsou da igreja. Convenceu a Associação a colocá-lo como pastor. O diácono velho e tarimbado, finalmente, chegara ao cargo que tanto cobiçara. “A igreja do Evangelho Santo terá o maior ministério de sua história”. Os diáconos estavam do seu lado. Coisa que não acontecera com os outros pastores. Sempre eles foram oposição a qualquer um que subisse ao púlpito. Seu Sandoval perguntou a Celestino na primeira reunião de obreiros: “O que você fará com os místicos e renovados da Igreja?” “Eles sentirão o peso de minha mão”. Essa foi a resposta do diácono pastor.

Três meses passaram. A barriga de Talita chamava a atenção de todos.

- Minha filha louvado seja Deus por ti.
- É minha mãe. O Senhor tem nos abençoado muito. Deus abençoe Celestino nessa nova missão.

No culto de quarta feira. A igreja estava reunida para ouvir a pregação do presidente regional da Associação. O pastor Honorato. Este discorreu sobre a importância dos dízimos e das ofertas anuais de missões. “Meus irmãos, O Brasil é o celeiro do mundo, a pátria do evangelho!” Enquanto o homem pregava, Talita sentiu a presença de Deus, como ela dizia. Ela via Celestino visitando Honorato no Hospital. O pobre pregador de missões estava muito ferido. Ele estava na UTI. Depois Celestino anunciava a Igreja a morte do homem. Ele seria seu sucessor. Talita num ímpeto se levanta e diz a Honorato que não viajasse aquela noite para Salvador. A mensagem parou, a igreja ensurdeceu, e todo muito olhava para cara do outro.

- O sangue de Jesus tem poder! Gritou Celestino.
- Foi o Senhor mesmo quem me falou! Respondeu Talita.
- Você deve estar possessa, minha filha! Isso não se diz!
- Eu devo dizer a palavra do Senhor! Continuou Talita.
- Deve estar possessa mesmo! Alguns diáconos foram até Talita e chamaram os fiéis para uma oração de intercessão pela vidente. O povo gritava, alguns falavam em línguas. E toda a congregação entrou em estado de loucura coletiva. Com a emoção Talita passou mal sendo levada ao hospital. A eclampse foi fulminante. A criança morta teve de ser retirada as pressas; a mãe ficou sob observação no hospital. Era noite quando um velho negro entra na enfermaria onde Talita estava.

- Minha filha Deus vê pelos olhos do homem?
- Então o homem vê pelos olhos de Deus? Respondeu Talita inconsciente.
- Sim, é certo. Mas, nem tudo que Deus mostra; o homem quer ver.
- Sim, eu sei; eu vi.
- Põe teu barraco e ora com o povo, e pelo povo. A oração muito pode. Teus olhos verão a bondade de Zambi.

Talita voltou à consciência. A lembrança daquele rosto negro e sereno não saía de sua cabeça. Ela decidiu não mais perguntar nada a dona Vera, a chefe do grupo de oração. Separou um horário em sua humilde casa e começou um grupo de oração. No início era ela e o marido. Depois o povo foi chegando. Uns vinham doentes, outros sem orientação, outros viciados, e muitos com a vida atrapalhada. A oração e a vidência de Talita atenderam a todos. A cidade de Campos sabia da oração da casa de Talita. “Leve um quilo de alimento senão ela não te atende. É para os pobres, mulher!”
- Menina, eu tive lá para saber se Cledson me amava. Pois, a mulher não disse que ele estava com outra, mas, que ele gostava de mim.
- E foi mulher?
- Foi.
- Eu soube da mãe do finado Flávio, a pobre nunca se conformava com a partida do filho, pois a vidente num recebeu o espírito do finado! Diz o povo que ele esteve em uma colônia que fica aqui perto da terra.
- E foi comadre?
- Foi.
- Será mesmo?

Talita se tornou mulher de oração. Uma vidente desse mundo de Deus. Sempre um velho negro rondava sua casa. Muitas vezes ela sonhava com ele, sentado em um toco, fumando seu cachimbo. O cheiro de alfazema enche seus pensamentos. Deus veio na forma de um bicho – uma pomba para João Batista. Para Talita, Deus apareceu na forma de um escravo, um Preto Velho...



Tobias Barreto, 27 de janeiro de 2012. Roosevelt Vieira Leite