quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

O SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO

Procurando entender melhor o sujeito, e, principalmente, o sujeito educando, ou “aquele que sofre a ação incisiva de discursos pedagógicos formadores de mentalidades e construtores do senso de realidade legitimado pelas ciências e pelas sociedades” que eu escrevo, meu caro Souza, estes rabiscos, desta feita, o foco está no ‘sujeito da enunciação’.

O sujeito da enunciação é o mesmo sujeito da recepção. Os papeis são alternados no transcorrer do dialogo ou na epifania de ambos. Contudo, o que os une é o mesmo código, e a mesma realidade material. Pois, para que o circuito se complete é necessário que os dois comunguem de uma mesma língua e que estejam inseridos no mesmo contexto material. Não podemos, meu caro Souza, abrir mão do fato de que as linguagens estão em constante relação com as condições históricas e materiais da sociedade. O pensamento do sujeito é, portanto, em grande parte, um constructo que reflete os modelos de produção e consumo legitimados por uma sociedade num determinado tempo e espaço.

O sintagma sujeito, no mundo da linguística foi usado pela primeira vez por Benveniste. Parece que para o pensador Francês, o sujeito não é apenas portador de um código, mas, é um enunciador, ou que o sujeito precisa dizer e o faz enunciando a partir das estruturas de um código que lhe foi internalizado durante o seu processo ontogênico.

Tanto o enunciador como o receptor sofrem a coesão desse código que delimita sua capacidade de expressão no mundo, e o instrumentaliza pela sua estrutura estruturante e semiótica. O uso do código, portanto, não está amarrado ao seu complexo lexical, mas, seu corpo semântico se transmuta pela necessidade enunciativa. Assim, o sujeito diz por necessidade, e isso transcende a vontade de dizer.

É importante, meu caro Souza, observarmos que a necessidade de dizer pode ser puramente instintual. O homem fala por hábito e quase sempre nem avalia o que disse. Esse aspecto do enunciado deve ser estudado pelo campo da psicologia, pois, nos ditos do sujeito devem estar os lampejos da atividade inconsciente individual e coletiva. O sujeito que aqui se apresenta como foco, é apenas, o sujeito educando que enuncia e recebe o enunciado.

O sujeito educando está sobre o efeito do discurso da educação oficial. Logo cedo, ele entra em crise, pois, os discursos que advém de sua casa não se harmonizam com aqueles que ele encontra na escola. A realidade material de seu primeiro lugar no mundo entra em conflito com a nova realidade apresentada. Nesse contexto, o sujeito educando cessa a enunciação e entra em silêncio, ou, cria admiração e vontade de enunciar, fazendo assim, o sujeito da enunciação se integra a gigantesca malha enunciativa que constitui o fluido sociolinguístico de nossa sociedade.

Mas, qual é a força que pode calar o sujeito? O sujeito jamais se cala ou para de receber a enunciação, meu caro Souza. O sujeito pulsa em palavras que podem surgir de dentro de si mesmo e se dirigirem a si ou emergirem do seu entorno rumo a um receptor, seja real ou não. Calar o sujeito, aqui, é fazê-lo um ser monológico, isso é o mesmo que dizer que o sujeito não diz para o outro, pois, o seu dizer já é o dizer do outro, uma vez que os discursos recebidos por ele se constituíram em meros sinais sem a representação de um novo sentido. Dizer, ou enunciar pode ser entendido como representar um novo sentido.

A escola e a casa enunciam de forma diferente. Isso é o mesmo que dizer que o aluno trará consigo os discursos de suas relações primarias. Assim, uma sociedade com déficit de capital intelectual precisa de uma educação que democratize o acesso a esse capital. No nosso caso, a educação do sertão, a família também precisa ir à escola. Caso contrário, haverá um distanciamento sempre maior entre escola e sociedade. Essa assimetria na capacidade de representar o mundo faz com que a sociedade não perceba sua escola e a escola não perceba a sociedade. Ambas nada dizem para o outro, ambas falam monólogos.

A recepção do discurso educativo da escola é precária porque o educando, na fonte, foi vitimizado por uma sociedade ignorante e iletrada. Concluímos, então, que o sujeito educando terá a educação que sua sociedade entende ou deseja. O dito, dessa forma permanece mito, um mito sem decifração. A escola fortalece os mitos sociais, ou seus ditos, e os mesmos integram o psiquismo da escola. As duas não crescem, pelo contrário, se engessam no mundo mítico do dizer sem saber, do representar o vácuo e do monólogo do discurso inoculado por uma classe que avidamente locupleta vantagens dessa realidade inerte.

Sua pessoa deve dizer que isso é algo que já foi dito e que não carece mais de discursão. Mas, minha pessoa insiste em dizer novamente sobre a escola que é a materialidade das ideologias de uma dada sociedade, sejam ideologias positivas ou negativas, desculpe-me a classificação. Se uma determinada sociedade reproduz um modelo de exclusão social no qual ela foi forjada historicamente, inevitavelmente, a escola terá ressonâncias dessas ideologias e quase que organicamente reproduzirá o mesmo modelo, pois, as ideologias ou enunciados que possuem força social formam e sedimentam mentalidades, e as mentalidades se transformam em materialidades, ou comportamento e estrutura social.

Vendo a escola a partir da enunciação, podemos concluir que o professor é o primeiro ator que deforma o processo de epifanização do sujeito; sua ação se limita a sujeitar o sujeito à ordem consagrada pela força dos enunciados historicamente legitimados. O professor assim como o educando são vítimas de uma mentalidade que se reproduz de forma quase natural pelos mecanismos de convencimento social, e um deles é a escola.

Então, será que devemos acabar com a escola?

Certamente que não! Precisamos, pois, entendê-la melhor. O educador possui o discurso que pode transformar realidades. Veja que a grade curricular possui informações que podem fazer qualquer encéfalo enxergar melhor sua realidade e tonar-se um enunciador mais consciente de seu mundo. Isso lhe oferece, não apenas, ferramentas epistemológicas para desvelar o real e ou exercer funções sociais melhores remuneradas elevando seu status social, mas, também, a capacidade de produzir novos enunciados que transformem as mentalidades. Uma geração pode ser sucedida por outra diferente, basta que os atores do processo vejam e desejem que ela surja. Esse é o grande milagre do poder dizer diferente!

O sujeito da enunciação é o sujeito da representação do real. O real é invenção do sujeito. Tudo fora da representação é natureza, é água, fogo, ar e terra. O representar o real, portanto, o criar realidades é a epifania do sujeito. O sujeito não criou o planeta, mas, tenha certeza que foram os homens que criaram o mundo. Enunciar pode ser visto como representar ou dar sentido ou entender o sentido ou perceber o sentido de outrem. Fabricamos realidades e somos engolidos por elas. São os nossos enunciados que dizem qual é a nossa escola!

A escola do sertão é a materialidade da mentalidade formada pelos enunciados históricos de nossa colonização e como representamos historicamente nossa realidade de produção e consumo. Isso é o mesmo que dizer que o gado estará atrás da cerca e ninguém perceberá que gado é dinheiro, é poder político, é formação de opinião. O educando do sertão não dialoga com a paisagem ao seu redor, pois, sua capacidade de perceber as representações constituídas não lhe permite ir além das cercas. Assim o homem e o gado formam a mesma paisagem.

O sujeito da enunciação somente se epifaniza quando sua voz, embora, cheia de ecos de outros se constitui seu enunciado, seu momento único de dizer e representar seu mundo, seu sertão. Assim, meu caro Souza, a escola do sertão não diz o novo – é uma velha caduca, uma caixa de ecos daqueles que enunciaram no passado. Nossas crianças estão caladas, falam por instinto, e dizem o dizer do outro.

Então, como acabar o monólogo e iniciarmos um diálogo no sertão?

Em tempo idos já expusemos ao nosso ilustre sociólogo que entendemos que a condição natural dos homens é de diálogo. Ninguém foge dele! Conversamos conosco ou dialogamos conosco, com as coisas, e com os animais. O homem sempre será um ser em relação a outro. Foi essa posição que nos constituiu animais dialógicos desde os primeiros tempos de nossa história. Olhamos sempre para o outro que, ora somos nós mesmos, ou um ser virtual, ou um ser real. O outro ou o receptor fecha o circuito conosco e ambos se moldam em função do que dizem e da posição que os dois têm ao dizer. A assimetria ao dizer é inevitável, pois, é também condição natural a dominação do outro pelo discurso, nem sejamos nécios! O animal ainda sobrevive na civilização dos homens. As relações geopolíticas, as relações sociais, ou até mesmo o cotidiano das praças e ruas de nossas cidades atestam que o homem tende ao convencimento e dominação do outro. A nossa relação com o outro é santa e profana, é divina e diabólica e tudo isso se traduz em humanidade.



Usamos o termo monólogo acima para deixar claro que o dizer sem um contra-dizer é como se fosse um monólogo, uma realidade de uma única dimensão, um olhar numa só perspectiva. Ora, se enunciar pressupõe um ‘outro’, ou um receptor, então, naturalmente, nossa condição é de diálogo. Posto isso, acabar o monólogo não existe de fato, pois, este não existe. O que é preciso é aproximar os interlocutores, dar-lhes condições de barganha, dar-lhes sentidos que gerem mais sentidos para que as relações entre os homens se tornem mais humanas. Dialogar é humanizar a fera que urge pela carniça que está no campo.

O diálogo só é possível se as partes possuem competências para enunciar o novo. Caso contrário, os homens tem a impressão que dizem algo, mas, na realidade, sua voz é a voz de alguém que o domina e o sujeita a uma ordem consagrada pela historia das relações matérias de determinada sociedade. Ocorrendo isso o sujeito é um sujeitado, o ser sujeito único se dilui no discurso do outro. O sujeito não se epifaniza; torna-se gado, o gado além das cercas do sertão.

A epifania do sujeito enquanto sujeito único é a epifania de sua unicidade. A epifania de suas marcas compartilhadas com o todo social, e de sua unicidade enquanto sujeito único no mundo. O enunciar para ter o sentido aqui apresentado não é o dito das conversas triviais das ruas e becos das cidades, mas, deve ser o ato único, sublime, o lampejo de consciência que ilumina toda a malha que o envolve. A unicidade do sujeito lhe garante marcas próprias que são só suas. Essas peculiaridades ocorrem porque o sujeito enquanto um “devir histórico” é auto transcendente; o sujeito transcende no eixo das diacronias e se epifaniza nas coordenadas sincrônicas do ato enunciativo. Desta forma, o enunciar é um ato único do ser de ser ao dizer, de se diferenciar ou se distanciar das marcas do outro mesmo que este continue implacavelmente sendo seu hospede.

A substância do sujeito enquanto sedimento ideológico; construção semiótica e psíquica de uma personalidade que externa furtivamente sua identidade não poderia se expressar de uma forma melhor do que por meio das linguagens, e entre elas está a língua, principalmente, enquanto parole. No entanto, não devemos desprezar as outras, pois, o sujeito sempre buscará uma forma de expressão no mundo. Ele é massa-sentido e produtor de sentidos.

Mais uma vez, minha angustia toma conta de mim, meu caro Souza. Pois representar o mundo é tão necessário para o homem como ar que o mesmo respira. Ligamo-nos, de forma tão visceral ao material ideológico formador de nossa subjetividade que esse pode inervar-se e psicossomatizar doenças, até letais, na nossa máquina biológica. Sua pessoa, Mestre das Ciências Sociais e psicanalista sabe muito mais de que esse humilde pedagogo sobre os efeitos dos sentidos na maquina fisiológica.

Alhures, falamos sobre o enunciar enquanto representação de mundo ou sentido de realidade. O sujeito ao se epifanizar surge por trás de uma máscara na qual ele esconde seu animal, ou sua verdadeira face. O sujeito, sem consciência disso no momento epifânico, o faz de forma natural, é a amnésia necessária para que o seu psiquismo se adeque a realidade social. Assim, dizer da racionalidade é dizer de uma centelha de luz em um recorte no tempo enunciativo. Dizer da consciência é a mesma coisa. Essas duas irmãs trabalham juntas para negar o que somos realmente: Mamíferos falantes; animais perigosos e belicosos. Somos a mais mortal criatura sobre a terra. Assim, humanizar o animal é preciso. Essa é uma das funções éticas da Educação.

Ora, meu amigo, se a epifania do sujeito via linguagem, e no caso deste breve ensaio, via enunciado esconde a realidade do mesmo, então, afinal, onde encontrar o sujeito? A resposta a essa pergunta é fundamental para que o educador exerça seu trabalho com ética e objetividade. Pois, se não conheço o homem que pretendo educar; como educa-lo, então? Para que? Qual o modelo?

A história da educação humana é a historia de teorias, de propostas, de modelos, de filosofias, enfim, a história dos mais diversos conceitos de homem que já conseguimos produzir. Portanto, infere-se pelo testemunho da história da educação humana que o homem educa as gerações em função de um sentido de realidade, e este está culturalmente ligado à malha de sentidos de uma determinada sociedade, em um determinado tempo e espaço. Estou dizendo que as relações materiais concretas dos homens é que dizem qual o sentido da realidade, assim, elas inspiram as mais diversas teorias sobre a Educação humana.

As religiões, os mitos, os heróis, os vilões, os super-heróis, os monumentos, as instituições, os títulos, as insígnias, os brasões, enfim, todos os símbolos e criação humana falam de sua relação objetiva com os meios de produção e consumo de riquezas. A divisão do trabalho, as hierarquias, as estruturas sociais e tudo mais que criamos são sentidos oriundos de nossa relação com a matéria ou com a sobrevivência. Num sentido mais amplo, com a nossa relação com as riquezas e sua distribuição. Portanto, educar é sonhar e fazer sonhar. Pois, se não há um conceito único de homem, se não há uma substância concreta, se não temos uma pista para encontrar o sujeito, então, tudo que dizemos sobre ele pode ser um sonho ou um sentido dado em um dado momento; uma atividade onírica em estado de vigília. Nossa espécie precisa acreditar que existe um sentido além da matéria, ou o sentido UNO. Quanto a este, não é propósito deste ensaio discuti-Lo.

Assim, meu caro Souza, a epifania do sujeito é um sonho para si e para o outro. Enunciar o mundo é dizer de nossos sonhos num primeiro momento. Todavia enunciar é criar na matéria pela matéria pensante, ou a vontade do homem um mundo objetivo onde nele os homens jogam o jogo da realidade, ou de sua conjuntura socioeconômica. A relação do homem com a natureza produziu uma realidade ideológica que embora sonho nos afeta objetivamente. Cabe ao educador sonhar com o educando, mantê-lo sonhando, pois, a civilização precisa continuar, todavia, é, também, um fim ético da educação fazer o sujeito perceber que não há sentido em toda a malha de sentidos, cabe, então, a ele, unicamente a ele, produzir os seus sentidos dentro das possibilidades do jogo que já está posto. Sonhar é também escolha e escolher faz parte do jogo da vida.

À percepção dessas coisas deve o educador estimular seus pupilos. Isso é possível sem comprometer a proposta conteudista das instituições de educação. Somente percebendo que sonhamos é que acordamos, e quando isso ocorre nos encontramos a sonhar novamente.

Reduzir as assimetrias discursivas entre os interlocutores; aproximá-los, e garantir ao educando a capacidade de sonhar, e de despertar para sonhar de novo, é o fim último da missão de um educador. O educando precisa saber que não existe um modelo real de sujeito, mas, que existem diferentes olhares, ou sonhos sobre o mesmo. O sujeito só pode ser percebido no ato único da enunciação.

Meu caro Souza, as crianças do sertão sonham. Há uma geração chegando mais uma vez. Minha angustia aumenta a cada passo que vejo entre nossos colegas a falta de percepção da realidade. Muitos acreditam no real como se ele merecesse plena confiança. Muitos dos companheiros estão presos a uma visão mítica de um sujeito que pode ser visto, ou tocado; de uma substância constituinte do mesmo, de uma epifania plena do ser. Esquecem os homens que somos um sendo; um perpétuo movimento de sentidos, um devir na busca do UNO.

Para concluir, meu amigo sociólogo, na natureza não há sentido. Todo sentido é criação do homem, exceto, o UNO. Não quero te excitar falando Dele, apenas digo que na matéria o verdadeiro sentido é a falta de sentido. Educando assim, libertarás a ti mesmo e aos teus discípulos. Muita paz e Luz!

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PONTO FINAL

A natureza acordou no silêncio do caos.
De súbito, uma sinfonia alcançou os termos do universo.
O criador, ou o logos fez todas as coisas como o poeta constrói seus versos.
Uma a uma foram amarradas as esferas por rimas perfeitas.
Contudo, no olhar pequeno, do grão de areia que pela terra esperanças semeia.
Tudo parece confuso, um caos persistente!

O silêncio do imenso espaço causa uma estranha e perturbadora inquietação.
Na terra, o lar dos homens, a visão do cosmos, é tão pequena quanto as órbitas de seus olhos.
Seja aqui, ou entre as estrelas, a falta de palavras despe tudo de sentidos.
A natureza se torna nada e o nada mais um nada – é a física do silêncio.

Assim, dizem os homens que dizer é preciso.
Pois, os filhos dos anjos consomem palavras.
E nas palavras estão seus sonhos.
E neles seus caminhos.

O silêncio rouba as almas das almas.
E quando este se instala entre queridos.
É sinal que o mal avassala.
É maré destruidora que aniquila tudo à beira da praia.
Que faz do olhar brilhante um vidro fosco.
Que torna os amantes pares distantes.
Apenas viajantes que esperam o transporte na mesma sala.

Dizem que o silêncio tem seu momento.
Sobre isso, agora, não comento.
Uma vez que dizer é preciso.
A palavra certa é faca afiada.
Uma incisão perfeita onde há suspeitas.
Faz a alma sair do tormento.
Faz a dúvida partir do peito.
Une os casais, os devolve ao bendito leito.

– Ah, se tu dissesses só uma palavra!
– Ah, se tu abrisses os lábios e rasgasses as vestes!
– Ah, se teu amor me coubesse!



Dos astros ouviria essa criatura a mais suave melodia.
Com isso não mais suplicaria a luz do sol;
Nem desejaria a claridade da lua;
Nem das trevas teria medo.
Seria eu como no início de tudo.
– Éramos conversa de amigos!
– Éramos um diálogo garrido!

Mais uma vez a natureza acordou no silêncio do caos.
Viu que não havia poesia e se calou por um instante…

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