sábado, 19 de novembro de 2016

A SANTA E A POMBA GIRA

Dizem que o sertão nos ensina a pensar. Seu Godofredo Cruz, um dia, disse para mim: “Meu filho, o sertão é uma escola cujo currículo é a vida”. Lembro-me muito bem desse dia, pois ao ouvir as palavras do homem fiquei um tempão pensando nelas. Devo confessar que não entendi bem as palavras de Godofredo, mas, as guardo até os dias atuais porque eu pude ver com os meus olhos que elas eram verdadeiras.

Godofredo depois do acidente de Chiquinho caiu em depressão. A figura robusta de um homem rosado e forte se transformara num esqueleto vivo que andava com muita dificuldade. Quando o via, mesmo sendo ainda um jovem púbere, minha alma chorava, pois, o velho Godofredo, embora severo em seus julgamentos, era um homem bom, não merecia aquilo.

O Riacho do Junco havia enchido muito por causa das trovoadas de Santana. Era costume do velho Godofredo pescar nessa época do ano. “A pescaria alegra meu homem” dizia dona Maria das Dores sua amada esposa.

Lembro-me de tê-lo visto descer para as bandas do Riacho do Junco. O velho levava sua tristeza e sua vara de pescar, e as iscas em um saco plástico. Ele passou defronte a janela de meu quarto, por isso pude vê-lo com muita nitidez. Seu rosto dizia para mim que Godofredo precisava de um milagre. Ora, minha jovem pessoa num entendia muito de religião. O padre Oliveira nos dera a catequese e a eucaristia, o resto, eu nada entendia, na verdade, eu não sabia nada de religião mesmo, no entanto, Godofredo fora coroinha quando menino, e quando homem feito, foi diácono da igreja. Talvez tenha sido essa a causa de sua depressão, pois ter servido a Deus com tanta fidelidade e perder o filho de forma tão fútil: “Meus pêsames Godofredo!” Disse com um tom de sensibilidade o pároco da igreja. Na missa, ele fez referência a Godofredo com as seguintes palavras, eu tentei sorrir, mas, minha mãe beliscou-me na barriga: “Psiu!” Amuado fiquei ao lado dela enquanto o vigário dizia: “Deus sabe de tudo e tudo que nos ocorre é vontade dele”. Eu tentei dar uma risada, mas, minha mãe acertou-me o topo da cabeça com um cascudo que até hoje me recordo.

Godofredo, após a passagem de seu filho, tornou-se como eu - um desconfiado de Deus. Desde criança que eu não entendia o fato das pessoas não puderem ver a Deus como vemos as pessoas; eu dizia com frequência: “Deus se ausentou e pôs a culpa no mundo”. Mas naquele bendito dia, nossas vidas, a as pessoas de nossa comunidade teria uma experiência que mudaria para sempre o rumo do povoado; e se alguém não entendeu foi porque não viu a santa.

O Riacho do Junco naqueles dias era de água tão cristalina que se via o fundo. Godofredo pescou sete grandes tilápias. Após a pescaria Godofredo se prepara para voltar para o povoado. Alguns macaquinhos comiam seriguelas num pé do dito fruto que ficava na margem do riacho quase beijando as águas. Os pequenos primatas comiam o fruto e jogavam os caroços dentro do riacho. Godofredo observava a festa dos macaquinhos, e ao se aproximar deles, eles gritaram e jogaram os caroços em Godofredo que tentou se proteger o que o faz perder o equilíbrio e cair nas águas frias do Riacho do Junco. A profundidade das águas do riacho era de dois metros; as águas do riacho puseram Godofredo cara a cara com a santa misteriosa. Ela tinha um manto azul que cobria seu corpo na cabeça e nas costas, na frente um vestido de santidade branco. Godofredo a recolhe com cuidado e nada de volta para a margem. Os macacos no alto do pé de seriguela fazem uma festa com o estranho visitante Godofredo. A macacada balançava os galhos do pé de seriguela fazendo as maduras cair, e elas caíam no chão, algumas, porém, na cabeça de Godofredo.

Godofredo traz a santa para casa. Sua mulher põe a imagem no seu altar doméstico. A santa sem nome estava, agora, ao lado de Santo Antônio, São Francisco, Nossa Senhora das Candeias e São Cosme e São Damião. Godofredo recobrou o ânimo e voltou a frequentar a paroquia. O povoado ficou maravilhado com o milagre que acontecera.
- Mulher, pois o homem num se levantou depois de ter achado a santa!
- E foi?
- Oh, você num sabe não?
- Não.
- Godofredo achou uma santa e agora ele anda com os ombros pra cima, e seu semblante voltou a ser feliz. Isso é um milagre! O povoado comemorou a vitória de Godofredo, no entanto, havia a cobra chamada curiosidade. O povo queria conhecer e ver a santa. As pessoas, no início, queriam só dar uma olhada, mas, depois, os doentes e miseráveis começaram a chegar, e com eles a paz da família foi embora.
- Padre Oliveira. Eu acho que num dá mais para a santa ficar lá em casa.
- Meu filho qual é o nome da santa?
- Num sei.
- Então como é que vou trazer para a igreja uma santa sem nome?
- Sua santidade não pode dar um nome para ela não?
- Bem, vamos até sua casa e vendo a imagem pode ser que eu a conheça. Padre Oliveira tinha um problema sério de saúde. O vigário reclamava para seus colegas que ficava até sete dias sem defecar. Muitas vezes o homem santo chorava no altar pedindo a Deus para evacuar com liberdade. Oliveira ao ver a imagem não teve referência sobre seu nome, todavia, dona das dores disse: “A sua santidade num vai benzer a imagem não?” O padre pegou na santa e fez o sinal cruz e jogou água benta nela. Ao devolvê-la para as mãos de das Dores, o reverendo sentiu cólicas abdominais e saiu em disparada para o banheiro que ficava fora de casa. O homem arriou todas as fezes que durante anos o perturbava. Godofredo, finalmente, se convence que a santa era milagrosa. O padre retorna aliviado e diz: “Meu filho é nas horas difíceis que Deus aparece; essa santa veio na hora certa; seu nome ainda eu não sei, mas cá entre nós, eu gostaria de chama-la de Santa do Rio”. A mulher de Godofredo interrompe o vigário dizendo de forma irritada: “Minha santinha merece um nome melhor!” “Nunca vi essa tal de Santa do Rio, não, Oxente!”
- Bem, por enquanto, levemos para a igreja e lá Deus vai nos dizer o nome certo dela. Com as palavras do vigário, o casal descansou.

A comunidade do povoado do Riacho do Junco passou a fazer devoção a Santa do Rio. Os milagres começaram a acontecer no seio da Paróquia de São Sebastião. O povo era curado, outros deixavam os vícios, outros nada recebiam, mas, por causa dos outros eles eram devotos da Santa misteriosa. A devoção a Santa durou do mesmo jeito por sete meses, depois, algo muito estranho aconteceu.

Minha pessoa, embora adolescente viu os milagres da Santa do Rio. Na verdade, a princípio estranhei depois vi a coisa com naturalidade, todavia, para algumas pessoas a santa passou a ser um fardo abominável.



Recordo-me como se tivesse acontecido hoje. Eu e Lopes brincávamos no oitão da igreja por volta das sete horas da noite. Minha bola, por acidente caiu no interior da igreja. Nos fundos ela tinha uma área de serviço que dava acesso à sacristia e da sacristia para o santuário. Não sei qual a razão, mas, a porta dos fundos estava aberta. Ao pegar a bola, tive a curiosidade de dar uma olhada na santa. Quando a vi, tive uma forte vontade de me aproximar. A santa foi mudando de cor. Seu vestido branco tornou-se preto e vermelho, e em vez da posição de beatitude, a santa fazia poses sensuais e dava gargalhadas. Fiquei sem entender. Depois ouvi o povo falar que algumas mulheres estavam visitando a santa durante a noite. Elas diziam “Padre, nós gostaríamos de velar pela santa essa noite”. Algumas filhas de Riacho Fundo tiveram seus casamentos recuperados, outras, saíram de casa. A confusão estava feita no povoado:

- A culpa dessa falta de respeito é de Godofredo! Acusou seu Bonfim.
- Não, num concordo não! Ele pensava que era uma santa. Disse dona Flores.
- E como é que Godofredo podia adivinhar que a santa ia ser duas coisas?
- Bem, a solução é jogar a santa fora. Ela está corrompendo a moral do povoado. O povo estava dividido: As mulheres que se chocaram com a santa de preto e vermelho queriam sua retirada, as que tiveram a conquista de alguém ou a salvação do casamento queriam que ela ficasse. A confusão foi tão grande que tiveram que chamar monsenhor Xavier que morava na sede do Município. Ao saber do fenômeno, o homem santo questionou a si mesmo: “Como o mesmo santo pode encarnar Deus e o diabo?”

A santa foi examinada por um grupo de teólogos vindo de Aracaju. Os mesmos constataram que o objeto era uma santa de barro, e que tinha uma idade avançada, mas, era apenas uma santa. Em momento algum a santa virou a mulher de preto e vermelho. Os religiosos retornaram para a capital sergipana certos de que se tratava apenas de crendices do povo.

Foi no mês de novembro do ano seguinte que a coisa ficou mais séria. Alguns maridos se queixaram de suas mulheres: “Essas mulheres quanto mais rezam mais ficam quente. Eu num tenho mais idade para isso não!” Muitos milagres foram realizados. Seu Antônio que não podia andar sem a ajuda de sua bengala foi curado na missa de domingo. Com os milagres e as contradições, a santa tornou-se um objeto de todos os tipos de devoção. As pessoas do culto afro queriam fazer uma devoção a santa à meia noite, pois, para eles a santa era, na verdade uma Pomba Gira. O vigário recusou o pedido. Os devotos do exu Pomba Gira foram reclamar a Federação na capital do estado:

- Estamos aqui para fazer uma acusação grave de preconceito e constrangimento religioso.
- Calma! Pai Jorge, Calma! Qual é o problema? Perguntou a Ialorixá “Mãe Cislene de Oxum”.
- Nós queremos fazer reuniões na igreja. Estamos apenas pedindo o nosso direito. O exu Pomba Gira é uma santa pela metade, ou seja, ela, pela noite, deixa de ser santa e vira uma Pomba Gira.
- Mas que é isso meu irmão! Isso é um absurdo! Onde já se viu um exu na casa de Deus!
- Cislene você conhece o oráculo de Pai Miguel que ele deu antes de bater as botas?
- Não.
- Então, ele disse que chegaria um dia que Exu ia morar no altar com os santos, e quando esse dia chegasse as pessoas seriam mais sinceras.
- Deixa de conversa rapaz! Exu num vai pra casa de Deus não! Jorge se irritou com a Ialorixá e virou a mulher em Pomba Gira, a mesma deu uma gargalhada e disse: “Não existe coisa melhor do que um exu na igreja!” A gargalhada da mulher acordou o povo do povoado que imediatamente trancaram as portas.

- Que foi mulher?
- Num ouviu não?
- Não!
- Deixa pra lá.

A federação entrou com medidas jurídicas contra a paróquia. A paróquia exigiu seu direito ao culto a santa porque quem a encontrou era católico. A justiça considerou o argumento da igreja mais justo. O povo do Axé ficou triste: “É, nós estamos impedidos de cultuar nossa santa na casa de Deus”.

A pequena paróquia do pequeno povoado do Riacho do Junco crescia. O povo da sede do povoado passou a frequentar a igreja de Riacho do Junco. A igreja ficava lotada. E com isso, o povo do povoado começou a reclamar e a dizer: “Vão para igreja de vocês!” A confusão estava feita. O povoado contra a sede, e a sede contra o povoado. Um grupo de afrodescendentes, finalmente, sequestrou a santa. Isso ocorreu no dia vinte e três de novembro numa noite de lua minguante. Arrombaram a porta do fundo da igreja e levaram a santa Pomba Gira.

- Miguelina, mulher, nossa santinha! Nunca a vi de Pomba Gira.
- Isso é invenção do povo!
- Num é o que mulher! Levaram a santa para fazer macumba na bichinha!
- Isso é uma abominação a Deus!
- Num é o que mulher!

O povo sente a falta da santa. Os casamentos começaram a desmoronar, as pessoas passaram a sentir ansiedade e ter depressão. A santa do Rio fazia falta ao povo do Riacho do Junco. “Mulher, eu quando rezava pra santa sentia um fogo por meu marido, ave, era uma coisa forte mesmo, mas, agora, estou fria que nem mármore!” Todo mundo tinha uma coisa a dizer para justificar a volta da santa. Padre Oliveira recebeu um aviso que a santa estava no barracão de Pai Jorge. Segundo a denúncia ofertaram sete galinhas dispostas em sete pratos de barro. Na missa das cinco horas da tarde o vigário desabafa sua indignação:

“Meus irmãos do Riacho do Junco. Saibam que há pecado para morte, e este foi um deles. É uma blasfêmia contra Deus o uso de uma santa católica no culto de terreiro. Como pode Deus e o diabo estarem unidos, cúmplices! É um agrave forte. As pessoas que fizeram isso pagarão caro!” Na noite do mesmo dia, o barracão de Pai Jorge comemorava a volta de Pomba Gira para seu terreiro. Os tambores aturdiam o povoado, os foguetes estralavam no céu. Era noite de Maria Padilha, a rainha do Candomblé. No centro do altar do gongá estava a santa transformada em Exu. Em momentos alternados Pai Jorge fazia menção a santa e dava um banho de cerveja nela. As mulheres do terreiro e alguns homens viravam exu Pomba Gira. A festa estava bonita até a polícia chegar. O delegado Rodriguinho fora designado para investigar o caso. O terreiro calou seus tambores ao ver a viatura policial. Pai Jorge vira homem novamente para receber as autoridades.

- Recebemos informações que a Santa do Rio que havia sido subtraída da igreja do povoado está aqui.
- Não, acho que aqui num tem nenhuma santa não.
- Mas, mesmo assim, nós iremos dar uma olhada A policia procurou pela santa e nada. O povo do terreiro comemorava o livramento de dona Maria quando o relógio da igreja bate meia noite. Ouve-se, então, umas gargalhadas vindo de entre os santos no altar de exu. Era a Santa do Rio que havia virado Pomba Gira. A santa dançava e rodava a cintura feito uma cobra. Era de fato uma santa pomba gira. O povo do terreiro gritava de alegria e soltava foguetes. O povo da igreja estava triste, mesmo assim, o vigário garantia que banhando a imagem na água benta ela ficaria santa novamente, então, começa o tumulto para pegar a santa. Alguns irmãos católicos permaneceram em oração, enquanto isso o soldado Henrique que também era católico mais o soldado Juracy que era evangélico partiram em direção o altar, Pai Jorge se põe no caminho gritando: “Só sobre o meu cadáver, minha Mãe não vai sair da aqui!” os dois PMs ignoram as palavras do sacerdote e pegaram a santa do altar, esta dá uma risada nas mãos de Henrique que de imediato vira uma bicha cheia de palavreado esquisito. Coisas como: “Parem essa safadeza de vocês, quem não sabe que dentro de vocês existem uma santa e um exu, vocês não tem olhos para ver não?” Nessa altura, as coisas estavam sob máxima tensão. Aproveitando que Henrique estava espiritado, pai Jorge pega a santa das mãos dele. O soldado Juracy corre e pega a santa da cintura para baixo e Jorge da cintura para cima. No puxa-puxa, os dois partem a santa ao meio. O silêncio foi absoluto. Só se ouvia o coaxar dos sapos e os grilos cantando. Por alguns minutos ninguém disse nada. O silêncio no pé de serra do sertão falava muito alto.

Minha pessoa, embora menino pré-adolescente, um púbere observava o desfecho do problema. Jorge segurava um pedaço de sua pomba gira e Juracy o outro. “Agora não havia mais nada”. Pensei eu ansioso para entender o mundo dos grandes. Nas mãos de Juracy a santa se move, se contorce como que estive com dores de parto. Ouve-se o sofrimento de mulher no meio do tempo. Uns diziam que a voz vinha do mato, outros diziam que era imaginação. A metade nas mãos de Jorge faz a mesma coisa. O enfermeiro Valdomiro – aquele que aplica a melhor injeção em Campos pede aos dois as partes separadas alegando que o que estava para acontecer era um parto. O povo caiu na gargalhada sendo interrompida quando Valdomiro diz a santa: “Força, respire forte, isso!” O trabalho de parto durou alguns minutos que pareceram horas. O povo sem perceber intercedia pela santa ou pela pomba gira. Pela primeira vez as duas religiões choraram juntas por seus santos. A comunidade vendo a cena fraternal se juntou ao grupo que rezava para que a imagem da santa tivesse um parto bom. E eu, um menino ainda me perguntava: “Mas, o que vai sair daí?”

A santa deu a luz a duas crianças. O primeiro a sair foi um homem. Na sua cabeça havia dois toquinhos, parecia uns chifrezinhos, e a outra um Nossa Senhora toda de branco. Infelizmente a imagem da santa do Rio estava quebrada depois do difícil parto. O padre enterrou sua parte no cemitério ao lado da paróquia, a outra parte foi jogada no rio.

O povoado do Riacho do Junco desde então não fala mais de religião. Todos se respeitam e sabem que Deus tem muitas histórias para contar. Eu cresci e fui depois morar na beira da praia. Um dia caminhando na areia ouvi uma voz que me dizia: “Menino tens visto a Santa do Rio?” Na minha mente eu respondi que não. A voz de mulher continuou dizendo: “Então, veja!” Sim, meu amigo leitor, hoje sou velho, e digo de coração o homem imagina sem limites, então, cada um viva seu sonho em paz!

URUBUS

URUBUS

O Professor Rozental estava em um pequeno povoado de Tobias Barreto chamado Jabeberi. O Jabeberi nunca cresceu. Desde sua povoação até os dias atuais ele tem quase o mesmo tamanho. Seus moradores agem do mesmo jeito e acreditam nas mesmas coisas. Eles cuidam de seus bichos e de seus filhos. Vivem seu mundo não importa o tamanho. O povo costuma descansar no final da tarde quando o sol esfria um pouco. O vento que desce a Serra do Canine traz esperanças para o povo do Jabeberi. Na verdade, é um alento no final de um dia quente e abafado.

Quando aqueles sertões foram ocupados pela etnia branca, os índios Jês invocaram os Capangueiros da jurema vermelha. Todo sabido da jurema sabe que esses Capangueiros são seres afinados com o mal – Para eles o mal é um prazer. Um feiticeiro Jê, mestre na magia da raiz da jurema, profetizou que o branco conquistaria a serra, mas, sempre teria problemas com a mãe Okaru – a natureza!

- Mãe, tá sabendo que descobriram uma tubulação secreta que despeja produtos químicos na barragem?
- Não, minha filha! Sua mãe não sabia disso. Mas, quem te disse?
- Foi o professor Rozental. Ele disse que o meio ambiente do Jabeberi está alterado.
- Que bom minha filha! Continue assim estudiosa como seu finado pai. Sueli ao ouvir sua mãe falar em seu pai, se calou, e foi para o quarto.

Sueli era uma menina de dez anos muito sabida. Ela era a menina que mais lia no quinto ano. Sabia a tabuada de cor, e podia conjugar qualquer verbo. O único que parecia para ela impossível era o verbo morrer. “Esse eu num digo não professor Rozental!”

Rozental fazia de tudo para ajudar aquelas crianças especiais. Ele não acreditava que especial fosse apenas um grupo com limitações psicomotoras. Para aquele pedagogo, todos os seres humanos eram especiais. Assim, as crianças do Jabeberi eram crianças muito especiais. Sueli era um exemplo. A casa da menina tinha os fundos voltados para Serra do Canine. De lá se podia avistar a majestosa serra que foi cenário de muitas lutas entre índios e brancos na época de Belchior Dias Moreira – O colonizador. Comenta a população do povoado que Belchior tinha casa no Jabeberi. A Vila de Campos nasceu no Jabeberi por isso muito se parece com o povo de lá.

- Mãe! Mãe! A serra está coberta de preto, e o preto se mexe!
- Deixa de besteira menina!
- Não mãe, é verdade! Dona Maria das Dores olhou para serra para ver se era verdade aquela história. Para sua surpresa, a serra estava coberta de urubus. Maria pensou que era o “tempo”. O povo da roça quando não entende uma coisa costuma dizer que é o tempo. Os urubus formavam uma cobertura preta sobre o pasto seco no alto da serra. O céu da serra estava cheio de aves negras devoradoras de bichos e homens mortos. Nunca se havia visto tanto urubu como naquele dia. O padre rezava uma missa na pequena paroquia do povoado quando seu Tonho entrou apavorado gritando bem alto. “O mundo vai acabar!” Os fiéis correram de imediato para a porta, a sombra da nuvem de urubus que cobriu o lugar, andava apressada rumo a serra. Os carcarás se juntaram aos seus parentes urubus. A serra tremia ante o peso de tanta ave.

- Mas o que é isso? Perguntou Padre Arnóbio ao seu protegido Ricardo. Este nada respondia. Somente balançava a cabeça em sinal de atenção.
- Diga alguma coisa, rapaz! Ordenou Arnóbio ao seu escudeiro.
- Eu num sei que bicho é isso não padre! O rapaz respondeu a sua santidade com voz medrosa. Ricardo era um rapaz que fora viciado no jogo e se converteu a fé católica quando o padre cantor Sebastião esteve em Tobias. O povo da igreja ficou muito alegre com o rapaz. Desde então, ele acompanha o Padre Arnóbio. Aonde ele vai, Ricardo vai atrás.

A segunda feira chegou, era dia de escola. Rozental estava no Jabeberi. A menina sabida Sueli o esperava à porta da escola.

- Professor, os urubus estavam na Serra do Canine, era uma multidão! Nunca ninguém viu tanto bicho como ontem! Próximo aos dois, um grupo de agricultores comentava a morte de alguns animais.

- Encontrei uma vaca morta no pasto. Ela estava toda picada e não era cobra não. Era mordida de bicho grande. Parece mordida de gavião. Os urubus vieram em cima e devoraram a carcaça, bem rápido.
- Os urubus invadiram minha roça e devoraram duas reses.
- A menina de Fátima foi atacada por urubus de manhã bem cedo quando ela foi ordenhar.
- Seu Jeremias teve de se esconder na malhada para se livrar dos urubus. E eram muitos, só andam em grupos. O grupo de pessoas se desfez quando o vereador Matias da Serra chegou. “Povo cheio de estória!” Pensou Matias consigo mesmo.
- Pois num é! Quem num sabe que nessa quadra do ano os urubus ficam mais agitados?
- É porque o povo do Jabeberi gosta mesmo é de conversar!
- É. Esse povo fala de tudo. Tá lembrado do enterro de dona Gemina?
- Quem num se lembra da finada! Aquela coitada!
- No dia do enterro o caixão num abriu? E o povo comentou que foi por causa da língua grande dela. Os dois saíram proseando em direção ao um Jeep dos anos 70. Matias estava indo para o Canine.

A viagem para o Canine foi rápida. A estrada da agrovila havia sido restaurada. O prefeito Nogueira Pinto atendeu ao pedido de seu colega vereador Matias. O povo do Jabeberi diz sempre: “Sem Matias num dá!” Isso parece ser verdade, pois, quando tem qualquer problema é Matias quem o enfrenta.

- Onde estão os urubus, vereador? Perguntou o encarregado.
- Rapaz, parece que sumiram! Mas, num pode. Essas aves são de fazer morada no mesmo canto por muito tempo. Deve ter realmente sido um mal entendido, coincidências digamos.
- Pois, é. O vereador falou tá falado. Concluiu o encarregado Geraldo. Ao terminar a conversa Geraldo olha, por caso, para o topo da Serra, para o lugar onde dizem que Aragão enterrou o ouro de Belchior quando foi ferido pelo povo Jê e vê a figura de um índio observando os dois de longe. “Mas, como?” Perguntou Geraldo ao seu espírito. “Índio? Deve ser alguém trajado e quer fazer gracinha”.

- Seu Matias! Olhe para cima, para o topo! Tem um índio lá!
- Índio? Perguntou o vereador caçoando de Geraldo. Deixa de ser burro rapaz! Deve ser alguém brincando! Não tem índio por essas terras há muito tempo. Meu tataravô matou foi tudo.
- Mas, num foi isso que eu disse?
- Tá! Tá! Deixa para lá! Vamos voltar, pois, cá em cima não tem nada para a gente ver, exceto, o pasto seco. Nem ovo de urubu tem!

A manhã de terça feira trouxe uma notícia muito triste para o Povoado. Logo cedo, a emissora de radio de maior audiência de Tobias Barreto anunciava a morte de uma criança branca de cabelos avermelhados e que tudo indicava ser do povoado. O repórter do povo João Sabido, acrescentou que o Jabeberi perdeu 277 cabeças de gado durante a noite. Os corpos dos bichos foram levados de caminhão para a capital sergipana.

- Vereador! E a criança?
- Foi também, homem!
- E agora? O povo vai dizer que Matias não tem solução para o caso. O amigo nem sabe como foi? Sabe?
- Cala a boca homem! Deixa-me pensar!
- Porque você num vai à favela! Dizem que lá tem uma mulher que sabe de tudo.
- Rapaz, tá doido! O povo vai me chamar de que? Bruxo, feiticeiro! Geraldo você tem mesmo a cabeça oca! Geraldo coçou a cabeça, arrastou um punhado de caspas nas unhas, levou-as ao nariz, e as cheirou. Quando ele ficava nervoso ou pensativo entrava em relação narcísica com seu corpo.

Ao meio dia o radio torna a falar. “Tantos os animais quanto a criança foram mortas por mordidas ou bicadas de urubus e carcarás. E se não tivessem morrido logo, morreriam de todo jeito, pois, foi encontrado nos corpos alto teor de cianeto – um poderoso veneno”. A cidade de Tobias entrou em pânico. Certamente havia alguém envenenando bicho e gente. O suspeito segundo Matias era a estranha pessoa do alto da serra. Mas, Quem era ele ou ela?

- Geraldo! Vá pegar o Jeep! Precisamos subir novamente a serra. Matias tomou uma dose de pinga, no balcão do bar do Saraiva, que fica quase em frente à Rodoviária Velha. Em alguns minutos, o encarregado Geraldo chega com o Jeep.

Os dois rumaram na direção do povoado Jabeberi. A estrada estava nivelada, pois, a máquina de terraplanagem foi usada para dar um novo aspecto. No sertão, no ano de eleição, aparece de tudo, até estrada boa, mesmo sendo de barro massapê. No caminho, nos dois lados da rodagem, uma coisa estranha chamou a atenção dos dois heróis de Tobias. Carcarás estavam pousados nos paus das cercas desde a granja até a caixa d’água do Jabiberi. Parecia que os bichos sabiam o que estavam fazendo. Um carcará Rei levantou voo e rodou sobre o Jeep; fez dois rasantes e depois saiu em direção a serra.

- Você viu chefe?
- Que chefe rapaz! Tenho cara de índio, ou de mafioso?
- Não! Eu estava só brincando patrão!
- Então dirija! Pois, a coisa tá ficando cada vez mais estranha. Nunca vi um carcará fazer isso! Nós não somos carniça para ele fazer um rasante desses. Faz quanto tempo que você não toma banho Geraldo?
- Olha pra ele! O patrão tá achando que o bicho veio por causa de mim! Geraldo parou o carro na praça logo na entrada do povoado. A igreja estava cheia de fiéis implorando a São José para interceder pelo povoado, pois, nunca se vira tamanha coisa. As aves haviam, realmente, assustado o povo do Jabeberi.

As nuvens ficaram cinzentas sobre a serra e o povoado. Trovões rimbombaram. As mulheres e crianças correram para suas casas para desligarem os aparelhos e cobrir os espelhos. Segundo a crença espelho atrai o raio. “Sueli cubra minha filha o espelho perto da televisão!” A menina cobriu o espelho. Ao virar-se para a porta viu a silhueta de um índio em pé na porta olhando para ela. Foi muito rápido, tão Rápido quanto o clarão do raio. A chuva ameaça cair, mas, nenhuma gota descia do céu. As aves se agrupavam formando um grande exército no topo do Canine. Um grupo de senhoras e velhos, e moças de casa permaneceram com o pároco na capela do povoado, os demais se enfiaram em suas casas.

- Matias, o povo está com medo. Eu não tenho medo não. Deve haver uma explicação.
- Rapaz, se você não está com medo, então, você é macho mesmo. A vontade que eu tenho é de me abrigar. Matias apontou para serra. As aves negras e os carcarás estavam mais agressivos. O barulho que faziam dava medo.
- Então vamos para a paroquia?
- Não amigo, vamos pegar as armas. Os dois entraram em casa. Alguns minutos depois saíram em direção a serra novamente.

As aves estavam agitadas no alto da Serra do Canine. Os urubus voavam pairando no céu como que aguardassem uma convocação. Os carcarás formavam um grupo grande numa árvore no alto de um pequeno monte elevado. O carcará Rei estava no meio dos bichos. Tiago e Geraldo chegaram no momento em que o carcará Rei falava com seu exército. A ave emitia grunhidos, às vezes, grave, às vezes, agudo. A esse comando elas reagiam. Os grunhidos eram tantos que deixaram Tiago irritado. Ele apontou sua escopeta para cima e atirou. As aves se assustaram e fugiram. No entanto o gavião Rei permaneceu no mesmo lugar. A ave Rei do sertão de Tobias encarou Tiago olhando-o dentro dos olhos. Naquele instante, o vereador Tiago do Jabeberi entrou em estado de transe. O rapaz se vê voando por uma floresta de juazeiros e juás, macambiras, jenipapos, umbuzeiros, paus-ferros, mandacarus, juremas brancas e vermelhas, jenipapeiros, muricizeiros, pés de udicuris, e outras árvores que povoam os sertões do nordeste. Uma imburana hospedava muitos gaviões na visão de Tiago. Os riachos estavam cheios, o mato verde. A vida desabrochava da terra. Em lugar de pastos, campos de alecrim, cipó caboclo, e outras ervas aromáticas, cobriam a face da terra. A onça andava na terra livremente. E o veado se alimentava das gramíneas que arrebentavam do chão de massapê. Tiago viu crianças se banhando no rio Jabeberi onde hoje é a barragem. Ali o rio guardava o passado dos Cariris-jês do sertão de Campos. Um pouco mais, na frente, onde o rio faz uma curva na direção de Tobias, estava o cemitério do povo Cariri. Dezenas de urnas de barro enterradas na margem direita do rio, outras na margem esquerda. Esses eram os Capangueiros da Jurema Vermelha. Os índios que não perdoaram o agravo do branco contra sua gente. Os Capangueiros eram os vingadores. Tiago, em sua vidência, vê uma gruta no barranco do rio, numa baixada quase coberta pelos galhos das cajazeiras. Lá estava a figura de um índio pintado com carvão e urucum. Em sua cabeça, um pequeno cocá de penas pretas e vermelhas. Em seus beiços, pequenos ossos enfiados. Em seus braços, na altura da junção do antebraço e o ombro, coteguns feitos de palhas de udicuris. Na sua mão esquerda, uma bodurna feita de pau de jucá – um dos mais duros do sertão. O guerreiro Jê entra em sintonia mental com Tiago.

- Okaru demanda contra sua terra. O chão cobra o veneno derramado. Mãe d’água chorou.
- Num estou entendendo nada! Disse Tiago apertando as garras na madeira da escopeta de dois canos.
- Okaru e Tupã contra a terra de vocês. Vão pagar pelo rio preso.
- Okaru? Rapaz, você tá doido! Tiago apertou a escopeta e ela disparou. Com o barulho, o homem volta a si.
- Geraldo!
- Sim! Seu Tiago estava a onde?
- Rapaz, num sei. Mas, eu derrubei o índio! O carcará Rei desapareceu. Os urubus voltam para a serra e a sombra da nuvem de urubus se retirou de sobre o povoado. O povo deu graças a Deus.

Tiago e seu ajudante se deram por satisfeitos. Os urubus e os carcarás sumiram do céu e da terra. A vida voltaria ao normal no Jabeberi. A morte da menina, no entanto, ficou sem explicação. Os dois servos do povo foram para o bar de seu Tonico comemorar o feito com cerveja e carne assada. Muitos moradores se juntaram a dupla de heróis.

- Todo mundo aqui sabe que Tiago gosta da terra, mas, ao ponto de arriscar a vida por nós não. Mas, e o caso da menina galega da Lagoa Real?
- Rapaz, as aves atacaram a menina, deve ser a mudança no tempo. De agora em diante a gente tem que ficar atento aos bichos. Eles podem se comportar de forma diferente. Está tudo mudado.
- Tiago é sabido. Acredito que Tiago vai ganhar de novo. A bebedeira varou o dia. A noite chegou com um friozinho típico do lugar. O Padre Arnóbio, que acompanhou o drama do povo, estava na igreja para agradecer a Deus pelo livramento.

“Meus irmãos o apocalipse está acontecendo perante nossos olhos. Precisamos nos dedicar mais a Deus”. A tônica de sua mensagem foi uma mudança de vida. As pessoas retornaram às suas casas confortadas e certas que no outro dia fariam as mesmas coisas de sempre.

Tiago estava na cama com sua mulher quando a porta de sua casa recebe pancadas apavoradas. Era o povo assustado com o que viram no romper da aurora. Eles saíram de casa para trabalhar, mas, não puderam porque o povoado estava cheio de urubus e carcarás nervosos atacando povo. O melhor a fazer era não sair. Mesmo quem tinha arma de fogo não se arriscava por que era muito bicho voando e atacando sem piedade. As aves estavam determinadas a travarem uma luta com os humanos.

- Tiago! Tiago! Tiago!
- Mulher eu não vou mais me candidatar a nada! Esse negócio de ser vereador está me tirando do sério. O que eu posso fazer? Porque eles não chamam a polícia?
- Se você não quiser tem Rozental que vai se candidatar. Diz o povo que ele será eleito. Tiago deu um pulo da cama, pegou o celular e chamou seu ajudante.
- Acorda Homem! Estamos sob ataque!

O sol se levantava preguiçosamente e quente no céu do povoado. Ninguém tirou leite, deu comida aos bichos, ou fez qualquer coisa fora de casa. Alguns valentes tentaram enfrentar as aves, mas, foram picados e voltaram correndo.

- Num dá não! É bicho muito! A gente derruba um, e logo aparecem dez diante de nós. E agora Franzé?
- O jeito é chamar por Deus!
- Mas você disse que num cria nessas coisas?
- Mas agora creio. Padre Arnóbio explicou que é o apocalipse.
- Sei.

A fé do povo aumentou. Talvez o aumento seja a quantidade de urubus e carcarás no encalço do povo. Tiago retorna a montanha do Canine.
- Onde está a carne?
- Está aqui!
- Os dois deram carne para as aves na intenção de agradá-las. Os bichos nem olharam. E havia bicho demais para tão pouca carne. As aves nem chegaram perto da carniça. O carcará Rei se aproxima da dupla. Passa o bico na galha de uma aroeira branca e pousa defronte o líder político do Jabeberi. Seus olhos amarelados estavam arregalados. Ela parecia determinada a enfrentar o valente do sertão – Tiago da serra ou do Jabeberi – verdadeiro parente de Aragão. A ave grunhia agudo, depois, passou para o grave. Os urubus alçaram voo. Naquele momento estavam no topo da serra Tiago, seu homem, e o carcará Rei. Este último parecia ler a mente dos dois homens. Diz a lenda que os índios Jê Cariri dominavam a técnica de encantar aves para que elas fizessem suas vontades. Um gavião se tornava um aliado na prática de suas magias, ou um assassino de guerreiros inimigos. A pena do carcará usada na porção mágica de água de raiz de jurema com casca de anatemba se tornava um feitiço para curar doenças letais.

- Tiago num olhe o bicho nos olhos não! Ele quer te hipnotizar!
- Num tenho medo não! Venha seu filho da peste! Tiago entrou em transe novamente.

O vereador de Tobias era agora um índio jê pintado para a guerra. O preto e o vermelho cobriam seu corpo sobrando apenas a curta tanga que cobria suas partes fracas. Ele voava montado em uma enorme ave – um carcará gigante. A distância de uma asa a outra era de três metros. O bicho voava sobre o povoado. Lá em baixo havia uma pequena vila de casas. Todas grudadas parede com parede uma a outra. As casas pareciam que pertenciam a outra época. Uma pequena igreja com um cruzeiro na frente podia ser vista do alto. Defronte a ela, uma senzala de escravos. Ao redor do povoado onde hoje são pastos, roças e fazendas estavam as malocas de índios. Os índios iam e vinham em paz. O povo da pequena vila não era hostil aos selvícolas. Os negros eram os únicos que sofriam naquele pequeno pedaço do paraíso. O carcará toma a direção da barragem. Ali havia um vale e nele o majestoso Jabeberi deitava em seu leito. Tiago viu do alto uma cerimônia fúnebre na beira do rio. As mulheres choravam e os homens também. Os pajés batiam suas maracas e fumavam cachimbo defumando o corpo do falecido. Junto ao cadáver eram enterradas ervas que, na visão deles, garantiriam o retorno à mãe Okaru. Tiago chorou de emoção quando viu a urna ser selada com lama de barro e depositada na margem enlameada do rio. O chão entijucado do Rio Jabeberi permitia a construção dos cemitérios jês. 277 urnas estavam ali. Eram seus entes queridos, suas lembranças, memória, e religião – Tudo inundado pela barragem! O carcará gigante retorna ao povoado. As pessoas estavam trancadas em casa. O povo valente do Jabeberi se rendera ao medo. Ninguém tinha coragem de enfrentar as aves enfurecidas. O carcará dá mais uma volta, agora, em voo rasante; Tiago é jogado bruscamente no meio da praça. Logo em seguida, o vereador via as pessoas saírem de suas casas. Elas passavam por ele e não o saudavam; sequer lhe dirigiam a palavra. Alguns carregavam velas acesas nas mãos. Homens, mulheres, meninos e crianças, todos iniciam uma reza; a ladainha cresce quando surgem os Caboclos da Jurema Branca e os Pretos Velhos do Cruzeiro Santo – as almas benditas. Padre Arnóbio com o terço na mão inicia um clamor a Virgem Santa e Padroeira de Campos. O Pastor da pequena e única congregação Protestante do povoado aparece com seu terno cinza de todos os dias, e se junta ao povo. Ele deixa a bicicleta no meio fio da praça para se unir à multidão orando em voz alta o Salmo 91. O religioso evangélico acreditava que Deus só olhava para os crentes protestantes. Em frente ao santuário de São José um milagre acontece perante os olhos de Tiago. O povo, suas histórias, e sua memória ressuscitam das cinzas em atitude de fé e amor. Os negros da senzala perdoaram seus antigos senhores. Um homem de pele avermelhada, bigode fino, beiços finíssimos cospe o fumo mascado na boca. Um besouro cascudo morre ao contato com a baba sinistra. Os capangueiros também perdoaram seus algozes – os fazendeiros. Mas disseram que a coisa podia tornar. Suas almas foram levadas para o espaço em um facho de luz. Os capangueiros da jurema disseram que dariam uma segunda chance ao povoado e que Okaru estava muito alegre com o arrependimento das pessoas. Dona Rubenita, uma evangélica antiga do Jabeberi, ficou tão feliz que deu uma aleluia tão forte, que seus dentes caíram na bosta do boi. A chapa encrustou-se no bolo fecal, mas, a mulher nem se incomodou, tamanha era sua alegria. O rapaz do jogo do bicho confessou publicamente que não levava as apostas do povo à casa do bicheiro. Por incrível que pareça, o Jabeberi perdoou o agravo. A menina que namorava um homem casado disse que não mais faria isso. O traficante Zaltinho decidiu parar seus negócios. Seu Zé da venda garantiu que ia mandar consertar a balança que estava, segundo ele, descalibrada. Dona Neusita prometeu, em alto e bom som, que jamais levantaria agravo contra uma pessoa – “Eu estou arrependida”. Os pardais dos pés de juás se assustaram um pouco ao ouvirem a confissão da anciã. A comoção era imensa. O chão da praça ficou encharcado de lágrimas. Tiago tenta falar com as pessoas e ninguém o ouve. As aves horrendas sumiram do céu. Um papagaio muito sabido apareceu do nada e falava com o povo. “Tá vendo? Tá vendo? É o canço!”

- Tiago! Tiago! Está vivo?
- Sim, estou!
- As aves sumiram. Vamos voltar! O barulho de foguetes estourava lá embaixo no povoado. Não havia mais perigo. As pessoas comemoravam a vitória.

“Tiago subiu a serra e o chão tremeu;
Nos pastos do Jabeberi tem cabra macho e mulher bonita.
Não adianta mexer com a menina que a espingarda grita.
Foi na mão de Tiago que o carcará padeceu”.

A popularidade de Tiago aumentou depois do problema dos urubus. A eleição veio e o homem foi eleito novamente. Quatro anos depois foi convidado para ser vice-prefeito. Sua carreira política não parou. Contudo, o povo não sabe, nunca soube, e nem saberá o que houve. Os ossos da barragem foram desenterrados e sepultados com muito respeito. Tiago foi buscar um Pajé Cariri-Xocó para fazer a cerimônia. Enquanto o índio fazia seu rito, no alto da serra, aparecia a figura de um índio observando tudo.

Os anos passaram. Rozental mudou de povoado. O pedagogo foi trabalhar em Moita Bonita. Dizem que de noite, o povo de lá vê uma mula- sem- cabeça. Será isso verdade? A pequena Sueli não crê em mulas desse tipo. Um dia ela disse: Aqui quando o povo vê urubu no céu, pede perdão a Deus pelos pecados todos. A felicidade foi tão grande que o povo esqueceu a menina morta. O povo não soube, ao certo, o que de fato ocorreu e quem pôs o cianeto.

- Seu Valdo! Vai usar o herbicida hoje?
- Sim, vou!
- Quanto?
- Umas dez sacas. O pasto é muito!
- Mas fede num é seu Valdo?
- E esse bicho é veneno até pra gente!
- A chuva depois num leva não pra dentro dos tanques seu Valdo?
- Deve levar; fazer o que? É carecido! Senão o mato sufoca a verdura. Num é compadre?
- É!
- A pois!...