sábado, 29 de julho de 2017

AMANHECEU EM CAMPOS

Amanheceu em Campos, o sol é um menino que se arrasta no tapete de estrelas da abóboda celeste; lentamente, o azul engole o manto negro da noite.
As pessoas dizem sobre tudo nas primeiras horas da luz.
As pessoas enterram a noite passada com palavras amigas, ou inimigas, ou palavras que são palavras, mas, que seus efeitos são aqueles perdidos em algum lugar de ontem.
Pedro Antônio disse da morte que varre a cidade;
A cidade anda entra a luz e o negro noturno;
a cidade não tem idade, seu povo esqueceu as estórias dos mais velhos.
Enterraram seus conselhos em covas de sintagmas;
disseram aos seus fantasmas para se calarem.
Maria Francisca disse muito. Disse de suas amigas; falou seus delírios com muito bom senso.
No romper do dia, o sol se torna polifonia, todos os homens nos enunciados ditos plasmam um pouco do futuro com o barro das mãos e a polissemia dos vocábulos.
No romper do dia, a coruja se enruga na toca, os passarinhos cantam uma melodia. Há som no mundo dos homens.
Em Campos, na aurora nordestina, começa uma nova sina;
Seus capítulos se escondem nas encruzilhadas cheias de meninas.
Seu texto é um solitário trabalhador que conta os minutos da nova intriga ou do gozo de encontrar uma colega na esquina.
Nas calçadas varridas entre as narrações das coisas ocorridas, o povo recebe o astro sublime com muita conversa e parágrafos mal escritos sobre a tardinha da passada labuta.
A claridade solar queima a pele, contudo, dá vida ao mundo, o sol ensina o sertão as regras da mãe natureza.
Aqui, não se perde tempo, todo segundo é ouro, todo ouro trará o seu pecado e o prazer da boa conduta.
No meio da manhã, a menina do sertão sergipano passeia nas avenidas, ruas e becos, nas esquinas, e quarteirões; Campos celebra a boa sorte, ou chora sua morte; no sertão, como em toda parte, o homem é conflito; é angustia e prazer, é vitória ou derrota ou os dois como dizia seu Raimundo, aquele que fumou três maços de cigarro todos dias durante cinquenta anos e morreu de infarto.
Em Campos, o sol e a noite andam juntos.
A coruja está de volta às segundas; não há semana sem ela.
Na feira mais feliz de Sergipe tem queijo, presunto e mussarela, tem pão, manteiga de Itabaianinha, e café quente logo cedo.
Perto do meio-dia, a cidade estremece com a pisada de seus filhos, uns tombam pela força de suas ideias, outros sonham com princesas e cinderelas; em Campos, a fantasia está na fazenda, a fazenda trás o gado e ele o latifúndio.
Nas lojas o povo moe o grão de trigo.
No sertão de Campos, o pão é frio como uma manhã sem agasalho, ou como um início de noite no mês de agôsto.
Finalmente, amanheceu em Campos, as avezinhas da aurora foram embora.
As buzinas de motos ou carros de diversos tipos fazem o fundo musical da nova história.
Campos tem lei nas ruas,
Campos tem sorrisos,
tem faces felizes,
tem olhares tristes,
tem gemidos de despedidas, tem palmas de honra ao mérito, e tem o picareta que te vendeu uma moto roubada.
Amanheceu em Campos,
Amanheceu no mundo,
Os homens foram embora,
A mulheres se dividem entre o tanque de roupas sujas ou a caneta da faculdade, ou o telefone do escritório, ou balcão da loja.
Havia uma senhora que viveu na máquina de costura. As pessoas a reconhecia pelos dedos em formas de agulhas.
Essa mulher fundou Campos, deu o leite de seus filhos e os ensinou sua doutrina.
Viver em Campos sem costura é pesadelo matutino.
É viver sem carinho, é semear na pedra.
Amanheceu em Campos, amanheceu em Tobias Barreto.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

MEU AMIGO

MEU AMIGO
Meu amigo, falam de ti. Tem dias que ouço verdadeiras barbaridades sobre ti. Outras ocasiões dizem tudo de bom de você. Fico sem saber o que dizer. Tem noites que minha alma não consegue o sono e rola na cama quando teu nome chama antes do sol nascer. Não sei, mas, no que penso não posso crer, pois, minha crença se revela líquida como a água; minhas ideias são como águas descendo uma ladeira de pedra.
A pedra que me fez; a dura pedra que fere a carne.
A pedra que dura até se tornar poeira.
Esta é, na verdade, toda a essência desta excelência que sou eu.
Sou pedra e sou água. Sou vida e morte. Sou alguma coisa de uma mesma coisa que eu não sei o que é.
Por isso eu digo, ou, penso que digo. Faço da semântica uma amiga. Brinco com as palavras como se fossem peças de um jogo. Um jogo complexo, tão complexo quanto o traçado do mundo.
“Eu sou eu”. Disse seu Raimundo quando discutia política com Anacleto leiteiro. Cada um disse o que achava ser vero. Cada um falou o que pensou ser verdadeiro.
Eu também sou eu; sou uma criatura que busca transcender o mero dever. Dizem que preciso ser. Sou eu o que precisa ser.
Lamento, mas, esta lógica de ser não tem sentido. Pois tudo que se torna ser vira plástico, ou papel higiênico. O ser é tão artificial quanto o papel, ou o jornal que jogam no teu jardim.
Sou uma caricatura dos homens, uma silhueta da sombra que passa apressada. Somos, eu e você a mesma essência de uma consciência mestiça, híbrida, diversa, que escorre no espaço como vinho derramado.
Meu amigo, falam de ti e nunca terminam o que dizem. Existem sempre reticências no final das sentenças; nunca acabam a prosa que se estende noite a dentro. Quando na manhã seguinte nascem rosas, então teimosas, tuas mulheres dançam as núpcias. Todo ano, por toda a vida, as meninas correm a corrida até o altar da matriz.
Meu amigo, sei que as palavras não cessarão; enquanto houver dúvidas haverá um clarão. E em todas as casas, e em todos os quartos verei teu retrato. Tua cara, teu choro ou teu sorriso tua verdade, ou teu cinismo.
Meu amigo falam de ti; eu mesmo declino o verbo em agonia de consciência. Mas tenha paciência tu fazes o mesmo comigo. Somos amigos inesperados, inimigos inveterados, amantes apaixonados; e uma pedra dentro de uma poça d’água.
Assim, não tem assim, esta é uma história sem fim. Seu começo, dizem que tem hora, mas, seu fim, embora, esperado nunca manda recado. Na verdade, o fim de um homem nunca chega; seus irmãos o carrega até a próxima geração. É como mais um inverno e outro verão.
Meu amigo, falam de ti.

AQUELA CASA


Da casa onde morei não tenho retrato.
Não me recordo da cor da pintura de sua estrutura.
Nem me lembro de seus metros quadrados ou de quantos tijolos usados.
Mas do mamoeiro, ou da goiabeira não preciso que ninguém me diga.
Pois, destas coisas minha mente não se fadiga.
Eu era um menino a experimentar o corpo e a mente no espaço e no tempo da casa da Rua Francisco Holanda. Eu era uma criança que crescia nos areais da Aldeota. Eu era o começo de mim mesmo a traçar um destino, um rumo, um tino que me fizesse crer que as coisas são as mesmas coisas em que meus pais acreditaram.
Da casa da Francisco Holanda ainda ouço as risadas na calçada; a alegria da meninada, e o meu soluço no quarto dos fundos quando a noite cai no quarto de meus pais. Ali, eu encontrei os mais velhos, mais sábios, menos sonhadores cujos corações entre risos e dores buscavam a razão no mar de questões; um cheque mate sem rei, somente peões.
Foi na Francisco Holanda que vi o céu azul e senti o chão frio na área do quintal de minha casa. Eu era um pássaro a voar sem pouso definido. Sem plano estabelecido; sem medo do infinito.
Eu abria os braços e o oceano azul celeste era o espaço onde meu corpo e mente vestiam suas novas vestes.
Deitado com os olhos para o alto voltados, escutava eu a voz de meus amados. Os dois, cada um no seu lado; uma certeza intranquila; um rio sem correnteza.
Na área da frente onde se recebe os visitantes estava o ser infantil a indagar do mundo. Uma pedra gelada na cadeira sentada discorria sobre o nada com voz de parente. Seus olhos congelados e sua mente descontente não saiam do transe desalmado – “Sai daqui menino!”
Em seguida sua imagem se desmanchava em frente à televisão.
Aquele ser materno; meu colo, meu amor eterno ainda não via que a vida tem seu dia; ou que os homens mudam como o camaleão.
Meu pai chegava às seis trazendo religiosamente o sagrado pão.
Seus pés entravam em casa vacilantes; suas mãos pálidas diziam de mais uma batalha vencida, contudo, as dores nos pés e nas costas não escondiam de minha mãe o cheiro da moça, mas isso não é tudo. Aquele homem, o homem de minha vida não era um carrancudo!
Da casa da Francisco Holanda me lembro com prazer. Recordo me de minhas irmãs jogando voleibol; dos amigos de meus pais na mesa de pôquer, da cachorra malta a latir de alegria fosse de noite ou de dia. E muito mais, quando o dia era de paz. Aquela casa, a casa da Francisco Holanda não passou. A vejo aqui e acolá. Parece que ela mexe com a gente, e parece que o tempo é um corvo velho e experiente.
Eis que vejo tudo de novo...