sábado, 10 de abril de 2010

A MOÇA DA CALÇADA - O CONTO

Aquele foi um dia muito especial para Pai Joaquim. Ele estava em nosso orbe, em Sergipe, bem perto de todos nós. O velho das Alagoas nutria um profundo amor pelo povo desta terra. A razão eu não sei. Contudo se podia ver por seus atos, sua caridade para conosco. Havia uma moça que atendia pelo nome de Fernanda. Todos os dias de segunda à sexta, ela esperava um carro passar às 08h30min da noite. Geralmente ela ficava defronte de seu prédio uns trinta minutos antes. Não falava com ninguém. Apenas ficava ali pensando em sua vida.

Pai Joaquim a vira várias vezes e muito sentia sua dor. Ele esteve ao lado dela umas três vezes conversando em seus pensamentos. Ela não percebia sua presença. Mas um diálogo começou a aparecer desenhado em sua mente perturbada. Fernanda estava mergulhada em um mar de incertezas. Aquele que ela esperava era pai da criança em seu ventre. Fernanda não sabia o que fazer: se deixava a criança continuar crescendo, ou se abortava.

Era noite de segunda-feira, quando o velho babalaô resolveu se aproximar de Fernanda. Ele trajava sua roupa de todos os dias, uma roupa de escravo de senzala. Fernanda esperava seu namorado chegar como de costume e estava pensando sobre o seu dilema.
“Puxa minha barriga está crescendo, só mais uns trinta dias e ela vai aparecer”.
Esse era o pensamento da moça quando o velho interferiu no seu destino. Pai Joaquim sentou-se ao seu lado, ela nem o percebeu tamanha era sua distração para o mundo real.
- A filha está cansada? Disse Joaquim.
- Não! Disse a moça.
- Mas parece. Falou novamente Joaquim.
- Estou?
- Bem, eu não sei o seu causo, mas parece muito pesado.
- Como sabe o senhor? Nem me conhece.
- É verdade! Não sei muito sobre você. Mas qualquer um quer passar verá uma tristeza em teu rosto.
- Como assim? Não entendo onde o senhor deseja chegar!
- Assim como o perfume das rosas se espalham no jardim, assim a tristeza se espalha no ambiente. Tudo é vibração.
- O amigo sentiu, então? Perguntou Fernanda mais calma.
- É isso. Respondeu Joaquim.
- A tristeza esconde muitas dúvidas. As dúvidas nem sempre são más. A dúvida é uma sirene nos convidando a pensar. A natureza se auto-regula, foi Zambi quem fez assim. Falou o velho essas palavras com muito cuidado.
- A natureza, disse o senhor, mas eu não sou a natureza!
- A moça ainda não se despertou para saber que a natureza está em tudo? Nada está fora da natureza. O homem é a natureza falando. Disse Joaquim.
- Eu sou um ser humano, meu amigo, a natureza está lá na floresta. Disse Fernanda novamente.
- A natureza está em sua barriga ganhando forma todos os dias. Falou Joaquim referindo-se ao seu problema.
- Como? O que? Perguntou a moça como que estivesse nua diante dos olhos do velho escravo.
Eh, uma criança é uma lei da natureza! E uma lei muito bonita. “A vida deve continuar”.
Essas palavras deixaram a moça mais confusa e um tanto desorientada. A sua ferida estava exposta.
- Mas, às vezes é melhor morrer de que viver. Se a vida for má para aquela pessoa e nós podermos evitar isso, não será isso certo? Perguntou Fernanda.
- Evitar a vida é eliminar todas as chances de se ver como ela será. Além do mais, a natureza ensina que a vida pela vida só se justifica se for cadeia alimentar dos seres, ou se for por defesa de si mesmo. Nenhuma vida é melhor que a outra. A cobra pica porque se sente agredida.
- E é justo trazer um doente para este mundo? Se uma mulher tiver um filho deficiente e puder evitar que ele nasça para não sofrer. Não seria isso ético? Perguntou Fernanda com muita ousadia.
- Filha, existem coisas que nossa imaginação não pode cogitar. E o sofrimento é algo um tanto relativo, você não acha? Pergunte a alguém que sofre se ele ou ela deseja morrer.
- E eu? E minha vida? Como direi aos meus pais que meu filho é de uma relação com um homem casado? Disse a moça com muita tristeza.
- A natureza nos diz que uma mulher tem a força de gerar uma vida. A moral é que impõe seus valores. A vida que está em você não sabe nada sobre isso. Que diferença há entre uma vida em forma de germe e uma em forma de pessoa? Ambas são vivas e devem seguir seu curso. Joaquim falou com muita seriedade.
- Não se pode parar o curso de um rio sob pena dele inundar nossas casas. E quando isso ocorre nos queixamos de Zambi. Mas a lei é clara, o rio deve correr, suas águas não devem parar. Continuou Joaquim.
- Teu pai e tua mãe não são melhores que você. Concluiu o velho Iorubá.
- O que o senhor quis dizer com isso? Perguntou Fernanda curiosa.
- A moral que se cobra dos outros não é a mesma que as pessoas cobram de si. O outro é objeto de nossas sanções, mas quando nós somos impactados pedimos clemência, não é assim?
- Em muitas eras e em muitos lugares os homens tiveram muitas mulheres, você não é a primeira a ser a segunda.
- Mas não suporto isso! Chorou Fernanda.
- Então tome seu filho e siga seu destino com ele em seus braços, será uma lembrança de seu amor. E ele ao crescer amará a ambos. A vida não é moral, é muito mais que isso.
- Vejo que o moço conhece muitas coisas. Sinto-me menos culpada.
- A culpa não deve ser teu norte. Faça teu norte o amor que ganha forma em você todos os dias, a criança vai ganhar forma e será a forma de teu amor.
- De quem é aquele carro que se aproxima? Perguntou Joaquim.
- É ele. Respondeu Fernanda.
O carro estacionou, e um certo Dr. Souza chegou-se a moça. “O que você decidiu? Não se preocupe, eu cubro tudo e ninguém vai saber”. Fernanda virou para o homem e disse: Estou aqui conversando com este senhor... O médico perguntou, “Que senhor?” “Não vejo ninguém”. Fernanda procurou por Joaquim, no lugar onde ele estava sentado, haviam vaga-lumes iluminando o jardim do prédio. Fernanda, então, entendeu que algo havia acontecido. “Sabe doutor Souza, eu decidir ter meu filho e nada vai mudar isso”. “Mas, Fernanda, vamos dar uma volta”. Disse o médico dirigindo-se para o carro. “Não”. Disse Fernanda com tom grave. A moça voltou para casa e contou tudo a seus pais. Seus pais, a princípio, ficaram muito tristes. O tempo curou as feridas e quando a criança nasceu a família foi visitada por uma profunda alegria. Um belo dia com a criança em um carrinho, a mamãe Fernanda caminhava pelo jardim do prédio, e no lugar de sua conversa com velho de Aruanda, flores e margaridas haviam nascido. A moça nunca mais vira o escravo das Alagoas.