sexta-feira, 30 de junho de 2017

EDITORIAL DO BLOG


Permitam-me um dedo de prosa...

Estes dia tomei a seguinte decisão: “Não vou assistir o jornal”. De fato passei uns quinze dias sem o contato com a telinha. Confesso que foi ótimo. Atualmente, nossos jornais tanto os radiofônicos quanto os Televisivos me deixam depressivo. O contato com a mídia brasileira tem me dado perturbações do sono e um profundo sentimento de incapacidade. Como diria um colega nosso de magistério: “É brochante”. Desculpe-me o termo, mas, foi o que me surgiu na cabeça agora.
Ser brasileiro não é uma coisa muito confortável. Entendo que as pessoas de todas as nações sentem um certo orgulho de sua terra, pois, temos construído, ao longo dos séculos os conceitos de cultura, povo e nação. E aí, quando o sujeito se identifica com sua nação e sua cultura ele mata e morre por ela. No nosso caso, não podemos dizer a mesma coisa. Acredito que nem todo brasileiro daria sua vida pelo Brasil.
Diria meu finado pai: “O que o Brasil fez por ti além de cobrar impostos?” Sim, seu Pimentel sabia muito bem o que é o Brasil. Meu velho morreu com 80 anos, e por todo esse tempo ralou para sobreviver e segundo ele, o Brasil só fez atrapalhar. “Meu filho te vira, o Brasil num tem nada para você!” Eu tinha uns doze anos quando ouvi este sábio conselho e hoje aos 57 já disse o mesmo para meu primogênito: “Te vira cabeça, senão tu tá lascado”.
A imagem podre do Brasil vai passando de geração em geração. Isto é inevitável. Quando lemos os livros de história e nos assustamos com o passado nem imaginamos que as mesmas coisas estão ocorrendo exatamente agora – o Brasil é o mesmo e o seu povo é o mesmo!
O Senhor excelentíssimo presidente da República disse em cadeia nacional o mesmo que D. Pedro disse há menos de dois séculos: “Diga ao povo que eu fico”. Michel fez diferente: “Olha povo, eu num saiu!” Ninguém desejou a permanência de vossa excelência exceto os que se beneficiam com a mesma.
O presidente do Brasil, acusado pela Suprema Corte, com gravação de áudio examinada pela Polícia Federal (uma das poucas instituições em que o povo ainda acredita) entende que tem autoridade moral para ficar no poder e realizar as mudanças que deseja. Eu garanto a você meu amigo: “Em lugar nenhum do mundo este homem seria presidente quanto mais o povo aceitar as decisões e ações praticadas por seu governo”. Tudo em Temer deve ser tido como duvidoso assim como foi duvidoso seu encontro com o empresário da JBS. É temerário crer, ou continuar tendo este homem teimoso como presidente sem temer a maracutaia. Temer para mim é temor, é medo, é traição da nação, aliás, a traição já foi feita com as reformas que ele encabeça.
O Brasil deve parar! A sociedade deve deixar bem claro que nós não aceitamos um acusado no poder. A imagem de nosso país no exterior está desgastada demais, e aqui dentro não podemos mais acreditar que esta republica é legítima. É preciso fechar o Congresso Nacional, prender os marginais e seus relacionados e convocarmos eleições gerais. Tenho dito!

domingo, 25 de junho de 2017

O LOUCO

O discurso do louco é subversivo.

A ordem do louco é caos.

Eu tenho um rei de paus.

Mas ele tem ases de copa.

A partida vencida.

No naipe, no signo.

Quem disse que isso é isso?

Quem disse que a volta é ida?

Jogam o jogo ao seu modo.

E as palavras fazem discursos de terno e gravata.

O louco não é ouvido.

Sua metáfora incomoda.

Sua metonímia provoca.

A ordem não suporta.

E o louco é calado.

Sua partilha é com os doutores.

Esses lhes ouvem as vozes.

As frases de crianças.

Olhares de terrores.

Uma corda cheia de tranças.

Por vezes escondem esperanças.

Conheci um velho.

Sua casa estava no morro.

Falava pouco.

Dizia quase nada.

O velho acreditou nas palavras.

O velho sabia o que dizia.

O velho esqueceu-se de seus dias.

O velho foi embora.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

BARATAS

O natal se aproximava. As pessoas estavam enternecidas com o espírito cristão que envolvia a sociedade aracajuana. As campanhas do natal sem fome, e do natal com roupa foram um sucesso. “É muito importante as pessoas participarem da solidariedade”. Asseverou o Bispo de Aracaju Dom Cosmerino de Souza Neto. Aracaju crescia feito uma mocinha. Ora, ela se estendia rumo ao sul, ora ela esticava para cima como que quisesse o seu lugar de cidade grande. Como as demais cidades brasileiras, Aracaju tem suas mazelas. Dizem os historiadores que esse problema é herança da colonização e da forma como foram fundadas as cidades do Brasil.

– Chega mulher! Chega!
– O que foi vó?
– Olha a TV! O sul está se desmanchando. A água encheu tudo!
– Graças a Deus que Aracaju não tem dessas coisas! Disse dona Dilza.



Dona Dilza conhecia todo mundo no “Costa e Silva” – Um bairro de classe média baixa de Aracaju. No Costa e Silva as coisas ainda estavam por acabar; bem diferente das coisas da zona sul. No Costa e Silva, o esgoto estava por acabar, no Costa e Silva as calçadas estavam por acabar, as ruas e os becos estavam por acabar. O que nunca acabava era a fé do povo.

– Graças a Deus que tenho minha casinha no Costa e Silva.
– Num é mulher? Já pensou se a gente morasse na “Terra dura?”
– Nem pensar! Dona Dilza bateu a mão na boca três vezes ao concluir seu comentário.

Na Avenida Osvaldo Aranha, na altura da entrada do Costa e Silva, estava em pé, próximo a uma pequena ponte que dar acesso ao emaranhado de ruelas, um homem mendigo, um João ninguém, totalmente desconhecido. O coitado não parava de dizer: “Vocês vão ver! Roubaram minha mulher e a esconderam aí dentro no Costa e Silva. Pois, vai chover antes do natal e vai todo mundo morrer!”. O homem repetia a mesma coisa todos os dias e noites em que ele fez ponto ali. O homem sumiu. Até hoje não se sabe seu paradeiro.

Maria filha de Judite, muito amiga de Dilza a contou do ocorrido. “Tem um profeta na Osvaldo Aranha. Ele diz que Deus vai castigar o Costa e Silva”. Dilza riu muito e depois disse: “Nunca se quer choveu em dezembro em Aracaju. Isso é coisa de cheira cola. A conversa foi esquecida e a vida continuou para quem podia pagar suas contas.

No Costa e Silva a comunidade, de forma quase que geral, era muito prestativa. Embora Aracaju fosse uma cidade com quase 600 mil habitantes, você ainda comprava na “caderneta”. As pessoas compravam fiado para pagar no final do mês. Todo o bairro era cheio de mercearias e botecos com mesa de sinuca e televisão com karaokê. Nos finais de semana as pessoas gostavam de tomar uma, e comer a maravilhosa “moqueca de sururu” – um prato muito estimado pela população de Aracaju. Parecia uma imensa orquestra. Em cada esquina da cidade, em cada bar, em cada casa havia música e pessoas se divertindo. Um suíço hospedado no Siqueira Campos descreveu Aracaju como uma cidade em festa – uma cidade polifônica.

– O que mais me admira no Brasil é essa alegria. Disse o gringo coçando a barba rala.
– Pois é, meu caro. Nosso povo é muito alegre e tornamos a vida melhor de ser vivida. Disse Osnário, um professor da rede pública.

O gringo desapareceu Brasil a fora. De vez em quando ele manda um e-mail com fotos para os amigos que ele fez na pracinha do Siqueira. Dizem que o cara arranjou uma namorada e está vivendo no Maranhão.

– Dilza! Dilza!
– O que foi mulher? Perguntou a mulher a sua colega pela mureta do quintal. O que separava a casa de Dilza da de sua melhor amiga era uma mureta de cimento e blocos. Logo atrás passava o canal. As duas famílias não suportavam o cheiro de esgoto e os pernilongos durante a noite.
– Sabe quem vai morar na baixada?
– Não!
– A viúva de Raimundo do ferro velho. Estão se mudando agora.
– Graças a Deus mulher! Vamos ter mais uma sofrida da vida para jogar buraco no sábado á noite. Concluiu Dilza.

A nova família do Costa e Silva trazia uma marca triste de sofrimento e dor. Isso fez com que mãe e filha se unissem como se fossem uma corda de duas dobras. Mariana era uma adolescente, filha de Natividade – a mulher de Raimundo do ferro velho.

– Mãe! A casa é boa mãe! Disse Mariana encantada com a nova casa.
– É minha filha. Graças a Deus, e a seu pai que nos deixou um dinheirinho, senão estávamos no meio da rua.
– Da rua não mãe! No meio da Osvaldo Aranha!
– Quem te disse isso?
– Ninguém! Os mendigos vão todos para lá. Por que mãe, por quê?
– Sei lá Mariana. Todos vão para lá, talvez por que tem muita gente, fica mais fácil ter uma esmola.

Enquanto as duas desfaziam os pacotes, e procurando arrumar a nova casa com uma nova decoração, a televisão anunciava as tragédias do sul do país.

“Niterói debaixo d’água: Mais de trinta casas soterradas. Três Pessoas faleceram no local”.
“Nova Friburgo chora seus filhos soterrados: A Defesa Civil estima mais de vinte mortes em Nova Friburgo!”
“Desabamento e morte nos morros de Salvador”.

Natividade e Mariana arrumam seu novo lar. As duas estavam muito alegres com a nova casa. O bairro não era ruim, e a casa não era de se jogar fora. As duas desfizeram os pacotes e a televisão anunciava o fim do mundo no Rio de Janeiro.

– Mãe, por que Deus deixa as pessoas morreram nas enchentes?
– Não sei minha filha! Mas, acredito que Ele sabe o que faz!

Em pouco tempo Natividade estava entrosada com os vizinhos. Mariana brincava com suas novas colegas. A vida seguia seu curso normal.

Em uma manhã de sábado, o dia nasceu cinzento. O tempo não ventava um instante. O povo da cidade sentia que estava em uma panela fervendo. O céu não tinha ar; era só vapor e mormaço naquela manhã do mês de dezembro. As mulheres do Costa e Silva aproveitaram o calor para lavarem roupa mesmo com o céu nublado. As nuvens não adiantavam de nada. A sombra parecia mais uma panela de pressão. Os noticiários avisavam que podia chover naquele dia a qualquer instante. Mas, não choveu aquele sábado, nem no domingo. A massa de água que tornava o céu escuro permanecia parada sobre a menina do Nordeste. Segunda feira chega e com ela a efervescência do comércio aracajuano. As ruas ficam lotadas de carro e de pessoas vindas das mais diversas partes do estado. A massa humana ocupa as ruas em busca do pão de cada dia – esta é Aracaju, e assim deve ser em toda parte do Brasil.

Mariana brinca com suas colegas no quintal de sua casa. A brincadeira estava animada até que Lucinha joga, sem querer, a boneca de Mariana por cima do muro dos fundos. A boneca cai no canal que passava no fundo das casas. Mariana pega uma cadeira para ver sua boneca.

– Mãe, mãe, venha aqui ver!
– O que Mariana?
– Veja! Tanta barata!
– O que menina?
– Baratas!

As baratas estavam mudando de morada. As pessoas foram para cima dos muros para ver as baratas saírem dos bueiros e buracos espalhados pela área. Elas saíam ao mesmo tempo formando um monte que depois se desfazia quando elas corriam em uma só direção – A Osvaldo Aranha. O povo do Costa e Silva nunca tinha visto tanta barata ao mesmo tempo. O estranho é que elas estavam apressadas e determinadas a deixarem o lugar.

– Mãe, até as baratas vão para a Avenida Osvaldo Aranha?
– Num sei Mariana! Estou sem entender! Deve ser o mesmo que aconteceu no Siqueira. As aranhas invadiram as casas próximas a Leste.
– E foi mãe?
– Foi.
– Mãe a Osvaldo Aranha fica lá em cima, não é?
– É.
A Avenida Osvaldo Aranha ficava em um nível mais alto de que a rua das casas onde Natividade e sua filha Mariana moravam. As baratas são sabias e diligentes. Quando elas sentem que algo está errado, elas fazem o que deve ser feito. Mas, isso é pensamento de baratas. Apesar do calor daquela segunda feira as pessoas cumpriram a rotina do dia normalmente. No final do dia foram beber a loirinha. Nesse horário, Aracaju se transforma. Existe um glamour na cidade. As pessoas se encontram com as outras para conversarem nos shoppings, nos bares e botecos espalhados por toda a cidade. É uma coisa tão agradável que as pessoas perdem a noção do tempo.





– Puxa! Minha mulher vai me matar! Disse o PM Freitas.
– Rapaz! Relaxa! Já tá ferrado mesmo! Completou o raciocínio Eduardo, funcionário do IML.

Os dois continuaram a conversa até as dez horas. A noite de Aracaju estava quente. O abafado do dia não havia dado uma trégua. Os rapazes se separaram cada com seu destino. O PM para casa, no bairro Costa e Silva, e Eduardo de volta para o necrotério. Freitas não conhecia sua nova vizinha, dona Natividade. Esta ficou viúva cedo. Vivia muito só, e fazia muito que ela não tinha um homem. Mariana dormia sono profundo quando estoura o transformador da rua. Natividade corre para a porta onde estavam outras pessoas. Entre elas o PM Freitas.

– Meu Deus! Que houve?
– Foi o transformador! Uma voz grossa responde a dona Natividade.
– E o que é isso?
– É aquele objeto pendurado no poste!
– Sei, vejo! Mas, menino como é que isso acontece?
– Deve ter sido o calor. Fez quase quarenta hoje. Parece que o som da palavra hoje fez Natividade se lembrar que deixou Mariana dentro de casa no escuro. Ela corre para dentro de casa, e o soldado Freitas fica em pé defronte ao portão da casa. As pessoas mataram a curiosidade, por isso voltaram para suas casas, e Freitas permanece na rua. Dona Natividade acende algumas velas e sai de casa novamente para fechar o portão. Quando ela se aproxima dele, percebe que havia um homem ali.

– É você? Onde estão as pessoas?
– Já foram. Eu acho que vou também. Um pingo d’água cai na cabeça de Freitas. Ele passa a mão e sorri para Natividade. Esta lhe responde o sorriso. Natividade toma o rumo de dentro de casa; um pingo d’água cai em sua testa. Ela sorri e entra se juntando a sua amada filha.

Freitas ficou com a imagem de Natividade em sua mente. Sua esposa dormia quando o soldado se levanta um pouco ansioso. Ele sentia vontade de voltar à casa da vizinha, nem que fosse para dar uma olhadinha. “Rapaz que coroa atraente!” Sua mente repetia isso o tempo inteiro. Tornou-se uma obsessão. “Rapaz que coroa bonita!” Seu pensamento ganhou força fazendo-o voltar à casa de dona Natividade. Ele bate no portão de ferro com uma pedra pequena. Repete o feito mais uma vez. Depois, novamente e novamente. A cada tentativa a ansiedade da mulher abrir a porta era grande, contudo, sua mulher estava, bem ali, na outra casa. Freitas cobra o juízo e toma a direção de sua casa de ombros caídos. A porta da casa de Natividade geme baixinho. O coração de Freitas estava certo.

O quarto de Mariana ficava na frente da casa. Dona Natividade foi para o quintal onde havia uma cobertura e uma rede cearense. O casal ficou ali, despreocupadamente, até ser despertado pelo o som de um leve chuvisco que caía nas telhas. Natividade acendeu uma vela para procurar sua peça íntima, e se depara com um monte de baratas vivas que saíam determinadas do bueiro do fundo de sua residência. Freitas ficou assustado com tantas baratas ao mesmo tempo e começou a espantá-las. Quanto mais o homem mexia, mais baratas apareciam.

– Mulher chame, amanhã, a defesa civil!
– Eles tiram as baratas? Perguntou a senhora do ferro velho.
– Sim, basta fazer a denúncia. Eles vêm imediatamente.

Os dois conversaram até perto das três. A chuva havia ficado mais forte; Freitas temia que sua mulher acordasse e notasse sua ausência e se retirou. Natividade voltou para seu quarto com uma música em sua mente. Fazia muito tempo que a pobre mulher não sentia a vida tão viva.

– Mãe! Mãe! A casa está cheia de baratas!
– O que foi menina! Fale mais alto! A chuva ficara forte e as duas mal conseguiam se ouvir.
– Mãe! As baratas tomaram a casa toda! Tem um monte de baratas por toda a casa. De fato, a quantidade de baratas havia aumentado consideravelmente. À proporção que a chuva aumentava, mais baratas desesperadas e agitadas apareciam. Mãe e filha se empenham na missão de livrar sua casa das baratas. Com álcool e fósforo nas mãos elas enfrentavam os insetos até que ouviram uma explosão abafada vindo das casas mais altas. A rua era quase uma ladeira que terminava no canal. Logo em seguida outra explosão e agora o som de água. As duas correm para pôr os móveis em locais altos. A reação foi quase instintual. As duas mulheres ficaram com muito medo; nada podiam ouvir das outras casas. Não sabiam o que estava acontecendo. A chuva aumentava ainda mais. E a água dentro de casa também. Muitas baratas boiavam mortas na água suja corrente. Seu cheiro era fétido. O cheiro das baratas pode ficar em seu nariz por muito tempo, mas, o cheiro da água do canal ninguém esquece!

Aracaju estava debaixo de uma bomba d’água. A massa de água decidiu cair de uma só vez. Os córregos da cidade inundaram, a maré aumentou fazendo os canais vomitarem suas águas. Uma enchente sem precedentes na história de Aracaju estava se configurando. Freitas percebe o perigo e pede sua mulher para ir à casa da mãe. Quando o casal decide sair de casa era tarde demais. Ninguém mais podia usar as vias públicas. Postes caídos, fios elétricos vivos, bueiros arrebentados, redemoinhos em toda parte. A cena era aterradora. A água descia em direção as casas à margem do canal que transbordava seu conteúdo letal. A primeira casa caiu, a segunda, a terceira, finalmente a casa de Natividade. As duas ficaram em baixo de um pedaço de laje. Parecia um milagre: “Natividade, eu vou chamar ajuda!” Disse Freitas. Não houve respostas.

– Mãe! Mãe!
– Fique quieta Mariana, em breve vão nos pegar! Tenha fé em Deus!
– Mãe! Não sinto mais as pernas!
– Menina, menina, espere mais um pouco!

A água subiu e cobriu toda a margem do canal. Freitas voltou com os bombeiros, mas, era muito tarde. Morreram Mariana, Natividade, e um mendigo que dormia no fundo das casas beirando o canal. As águas duraram três dias para baixar. Acharam os corpos de mãos dadas, mãe e filha. O mendigo foi levado para o necrotério ao lado das duas. Dizem que seu ventre ao ser aberto revelou-se estar cheio de baratas.

Após a enchente do Costa e Silva nenhuma providência foi tomada. As coisas estão como sempre foram. Os mendigos vão para a Avenida Osvaldo Aranha, e se alguma barata resolve correr para lá. As pessoas olham para as nuvens…

AS HORAS PASSAM

As horas passam…
Ela era um sonho repetido nas noites e dias de minha mocidade.
Uma transgressão velada até da alma que insistia em dormir.
Uma partida na primeira hora, na aurora, e no entardecer.
Uma boca beijada; gotas de orvalho após um dia quente num verão que se estende.
O amante é cego; é um bruxo que trabalha contra si.
A paixão é feitiço; é fogo que derrete o ferro e o aço.
É vinho que embriaga a razão e entorpece o juízo.
É uma mulher egoísta a andar sozinha na praça.
É um vendedor de fantasias e prejuízos.
Contadora de histórias, e de desgraças.
Ela era um alento; tirava-me do espírito tormentos.
Mesmo por um momento; curto minuto numa eterna sede insaciável.
Um copo de água com lágrimas e sofrimentos.
No chão, vidros quebrados; cacos cortantes, na calçada, espalhados.
Quem passará?
Foi uma despedida?
Será que amanhã não terei você?
Há pessoas que nascem para amar; e outras que vieram beber do cálice da ventura.
Triste foi o dia do teu nascimento! O teu prazer será só por um sopro!
Será uma carteira roubada de um bolso desatento na feira.
Isso foi o seu encontro com sua parceira.
Uma nuvem escura diz da chuva que virá.
A água que corre levará as lembranças de ontem.
A água que nunca volta; a correnteza que some nos bueiros escuros da solidão.
Foi um caso. Só um caso.
Mais um, entre milhões.
Será?
Uma lágrima caiu de seu olho;
Uma gota de água e sal escorreu pela face triste.
O seu peito esquerdo encolheu e a moça se foi…

quinta-feira, 22 de junho de 2017

A NORMA

A norma
I
Queremos que os outros mudem.
Ou tentamos muda-los segundo a crença nossa ou a comum.
Manipulamos a matéria de acordo com nossa lógica.
A lógica que é como uma moça criada com mimos desde os tempos antigos.
Ela é alimentada por seus amigos e inimigos.
Ela é como a serpente que nos espreita em sua loca.
Ela é a regra vivida nos becos e encruzilhadas;
Tanto na chegada como na despedida.
Ela é a razão de uma civilização atrapalhada.
É a causa de tua vida sofrida.

II
Ontem eu estava no reflexo do vidro da janela do vizinho.
Vi-me o mesmo! Eu era como uma pedra perdida e solitária num deserto ermo. Meu rosto tinha a mesma cor; meus traços, embora o disfarce costumeiro, exibiam a rotina de uma diária lida sempre corrida; meus olhos eram laços; suas lágrimas gotas de aço derretido, e o meu nariz o de um garrido palhaço.

III
Ontem meus ossos estalaram com o peso do mundo sobre meus ombros vacilantes. Tentei joga-lo nas costas dos outros, mas, foi em vão. Cada um carrega seu mundo, sejas tu José ou João. Tua vida e tua morte é tua; é só tua. Não adianta tentar fugir da estrada em que todos passam, pois, é em vão ocupar teu irmão com a tua sorte e nem tu te tornares um ambulante sem norte.

IV
Os passos dados são de inteira responsabilidade do viajante.
A estrada em que andamos é uma combinação nossa e vossa.
Nesta jornada nada nos foi doado, tudo, na verdade que é importante, é filho do luto.
Ela é a estrada que foi construída com muita prosa.
E sem pressa e sem carreira, o nosso caminho foi aberto por uma velha faladeira.

V
Ah, as coisas velhas!
Ah, as coisas da velha faladeira!
Ah, a lógica que foi a primeira!
Ah, que ilusão dos andarilhos!
Ah, vejam o trem e seus trilhos!

VI
As velhas e novas coisas se fazem presentes sussurrando um passado distante ao ouvido do peregrino. E este crer em quase tudo ou em quase nada. Tanto um quanto o outro são a mesma coisa; a velha coisa que se tornará em outra coisa em outra história que desconheço.
E eu olhei mais uma vez e vi os homens recolhendo os pedaços de outros homens. Cada um era um irmão ou uma irmã tua e minha. Nós somos corpos retalhados com preços calculados. Somos mentes híbridas e espíritos mestiços cheios da poeira do caminho por onde caminhamos. Somos a soma de nossas sepulturas; somos, nas praças para quem passa, antigas esculturas que se esfriam como metal derretido na taça do tempo.

VII
Então, é bom pensar!
Então, é maravilhoso sonhar!
Mas, isso se torna inútil. Pois, a lógica dos homens é o delírio do ébrio que tenta encontrar o caminho de volta. O pensar é a ilusão da alma aflita que busca sentido no chão e no ar. Assim, o pensar dos homens é igual a eles – é poeira varrida pelo vento.