terça-feira, 13 de novembro de 2018

A TORNEIRA

No teu olhar, o olhar do outro, a presença minha se oculta em tuas conjecturas.
Silencia o coração do solitário fabricante de ilusões.
Pergunto, e o caos atende-me quando clamo.
As sombras são pessoas que passam por aí.
E, o doce da manhã, amarga ao meio dia, no meio fio de uma calçada quente.
Cuspiram lá.
Deixaram a poeira de suas preocupações.
Estamos perdidos na razão Pós-Moderna.
Invertemos as coisas?
Criamos outro homem?
Não!
As baratas habitarão o mundo e o encherão de baratinhas.
Os escorpiões farão suas casas em nossas camas.
Se não acordarmos do anátema de sermos humanos exageradamente.
Tente!
Juntamos pedras e delas fizemos naves espaciais.
Somos senhores das máquinas.
Mestres sobre a vastidão do planeta.
Empolgados pelos nossos delírios megalomaníacos, nos esquecemos de fechar a torneira.
A água se foi, e morremos de sede...

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O CAOS VOLTOU

O CAOS VOLTOU
A ordem é um retrato batido; um quadro exibido nas ruas, nos peitos, nas mentes, pelas bocas dos filhos do verbo. O modelo é uma ordem ordenada pelos que passaram na estrada da diferença. Toda diferença vira a mesma coisa pela força do que não existe – o tempo; ou pela coação da espada, ou do hábito, ou do sorriso.
Disseram-me que existiam dois irmãos, o primeiro era bonzinho e o segundo, vil, tão vil como a morte. O que é bom não é tão bom quando as coisas apertam no meio do nada numa estrada com a testa suada e falta d’água, e falta de sorte.
Calo-me diante da sabedoria do modelo e a astucia da diferença – toda diferença é ousada, é como uma mulher honrada vestida de meretriz. E, às vezes, fico sem assunto, e invejo o irmão sapo que muito pouco entende o porquê de pular muito.
Dizem que as cópias enchem a terra, dizem que a tua cabeça é tão pesada quanto o mundo, pois cá dentro, o tirocínio é um tirano sem imaginação. Todo sonho vira ilusão e, agora, toda criança cresce adulto sem brincar de pega-ladrão - Isso não é mais igual a aquilo, não é mais a mesma coisa, contudo, tem as marcas na pele como as de um rosto cicatrizado depois de muito ferido. Então, surge do Nada, o velho nada que fala muito, e diz ainda mais: “Todo retrato tem seus cantos, seus ângulos, seus valores, e suas diagonais”. E o nada, mais uma vez, declama o poema da utopia, ou, também, da agonia, da despedida sem dizer nenhuma adeus ou escutar alguma melodia.
O nada, o caos, a ordem é tudo a mesma coisa é só mudar a perspectiva. É uma questão de percepção. Disseram-me, recentemente, que somente existem duas forças. São duas manifestações da mesma coisa em lugares e estados diferentes, todavia forças completares.
Disseram-me que o perceber é uma questão de lente, de opinião, pois cada cabeça é uma caixa cheia de meninos e meninas correndo sem medo ou assustadas com a velha feia que acaba o sonho.
Disseram – me; eu pouco ouvi, pois, quando acordei cedo de manhã na terra só haviam ruínas e escombros, e os homens começando tudo de novo...

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

JOÃO TROVOADA - O HERÓI DO SERTÃO

A história humana têm seus heróis e vilões. Às vezes até os vilões nos chamam a atenção e passamos a admira-los. O sertão é um cenário fértil para a imaginação popular. Ademais, o imaginário do povo abre a porta para a entrada de diversos tipos humanos, entre eles, está o herói sertanejo, ‘aquele homem que aceitou uma causa em favor do precisado’. Os heróis sempre existiram na mente das pessoas, mas, aqui, em Campos quem não se lembra de João Trovoada – o herói do sertão?

Os dias eram difíceis na antiga Vila de Campos. Para beber água a pessoa tinha de caminhar muito até encontrar um poço ou esperar o caminhão pipa. Algumas vezes antes do caminhão chegar, a água já tinha se ido pelo caminho, pois, o estado dos carros era muito precário. Havia também, e era muito útil, a carroça pipa; essa foi uma verdadeira heroína nos tempos de estiagem em Campos. Muitos foram os pais de familiar que alimentaram seus filhos com o dinheiro ganho na ‘carroça pipa’.
Era o mês de outubro. O sertão nessa época do ano se enruga todo. A caatinga perde o verde e cede lugar primeiro ao marrom, depois ela vai se tornando cinza. É nessa época que o boi geme, e o carcará faz a festa. Campos tem sete meses de estiagem todo ano. Isso significa cerca de 210 dias sem chuva, ou com chuviscos espalhados aqui e ali. Os políticos sabem disso, mas, durante o tempo que passei no sertão nunca vi alguém do poder preparar o povo para seca.
- Ronaldo será que se você falar com o prefeito ele manda um carro pipa para nós lá no pau de colher?
- Sei não, Seu Anilton anda tão triste. Depois que descobriram a rapariga dele, ele quer descontar em todo mundo.
- Ah, então quer dizer que ele arruma uma quenga e o povo é quem paga?
- E o pior Ronaldo, a rapariga é casada, e o marido dela todos conhecem. Disse o carroceiro pipa Chico.
- Se fosse no tempo de Lampião a gente dizia para ele e ele dava um jeito nesse homem safado.
- De Lampião não, pois, o homem era do mal, mas, se fosse o tempo de João Trovoada, a coisa seria diferente!
- Rapaz, eu já ouvi falar desse homem!
- João Trovoada foi considerado o herói desses sertões do lado de cá.
- E foi mesmo rapaz?
- Num foi o que, rapaz!?
O sol castigava Campos sem dá uma trégua. As nuvens estavam cinzentas, no entanto, a falta de vento frio impedia a precipitação pluviométrica. Os termômetros davam 34, 35 na sombra. O sertão dessas terras parecia um deserto. Quanto mais os dias passavam o calor ia aumentando. O auge do verão tobiense ocorre entre janeiro e fevereiro; é nessa época que alguns se aproveitam da fraqueza do povo para comprar propriedade a preço de batata. Os povoados estavam ficando desertos. As populações iam se movendo rumo à sede do município; durante o trajeto, assaltantes roubavam seus poucos pertences. Alguns, e não foram poucos, se aventuraram rumo ao sudeste na esperança de uma vida melhor.
- Como foi lá em São Paulo, compadre Damião?
- Rapaz, ali num presta não!
- Por que homem? Só vejo o povo falar nesse São Paulo?
- A gente num pode ter nada. A identidade e o dinheiro a gente bota dentro da cueca. Relógio nem pensar e falar com o povo nas calçadas é muito difícil.
- Então isso num é vida não!
- Num é?

Campos não padecia apenas com a estiagem. Campos sofria todas as consequências da mesma: Desemprego, êxodo rural, superpopulação nas periferias, violência, abuso de poder econômico e político.

- Anilton falou na rádio de Lagarto que o atraso dos funcionários deve ser entendido pela população, pois, Campos está quebrada. A dificuldade financeira é grande.
- É mesmo rapaz, coitado de Anilton, um homem tão direito!
- Que direito rapaz! Aquilo é um ladrão!
- Não diga um agravo desse não, rapaz!
- Homem! Tem seca todo ano, e eles nada fazem! Será que estão doidos?
- Ele num faz porque num pode. Anilton nasceu e se criou em Campos; ele ama seu povo.
- Sei não!

A seca se agravou; o bicho do pasto estava arriando os quartos. Os urubus e carcarás se amontoavam nas árvores e cercas ao longo dos pastos queimados pelo sol. As garças deixaram o gado cambaleante e foram se refrescar nos tanques de água esverdeada.
- Mãe! As águas dos tanques num presta mais não. É mais lama que água!
- Menina passa pra dentro, o sol está de matar hoje! A menina Suely entrou em sua casa e foi direto para a cozinha onde estava sua amada mãe. Suely e sua mãe Tailine viviam de sua rocinha. O marido de Tailine fora para São Paulo tentar a vida e até aquela data não dava notícias. Isso fazia a pequena menina Suely sofrer com saudades do pai.
- Mãe! Estou com tanta saudade de pai.
- Tenha paciência minha filha! Tenho certeza que seu pai não se esqueceu de nós.

Suely foi deitar. O calor do tempo, e a barriga não muito farta só dava uma opção para as pessoas – dormir para fazer o tempo passar. Suely enquanto dormia via na sua vidência um carcará feme muito grande. A ave pôs um ovo enorme sobre uns pés de gravatás. O ovo não era branco, na verdade, aquele era um ovo cinzento, da cor das nuvens do céu. Ao ver o ovo da ave mais conhecida do sertão, e temida por muitos, Suely se animou e caminhou até os gravatás. Uma cobra coral sentiu as passadas da menina, e se retirou para deixar os humanos em paz. Parece que o bicho cobra estava com pena da humanidade. “Mas o que é isso?” A menina cogitou por um instante. Suely se sentou no tronco de uma jurema caída. A menina estava examinando o ovo gigante. De repente, ela ouve o som de estalos, depois viu as rachaduras que gradualmente apareciam na casca do ovo, por fim, a menina Suely viu o nascimento de um homem. O homem estava vestido, Suely nem se importou com isso, pois, o rosto do cidadão era muito parecido com o de seu pai viajante. “Pai!” Pensou ela.
O homem nascido do ovo de carcará gigante vestia calça e camisa típica dos vaqueiros e boiadeiros do sertão. Era uma calça de algodão tingida de marrom, e uma camisa também de algodão. Sobre ela um jaleco de couro. Na cintura, um facão e uma pistola 38. O chapéu do moço era de couro com a aba frontal para cima. Em seu pulso direito ele segurava um chicote de couro de boi. O homem calçava uma bota preta que brilhava como um espelho. O homem se levantou, tirou uns pedaços de casca de ovo de sobre si e caminhou na direção de um pé de mandacaru. O velho mandacaru floresceu na hora.
- Até que fim seu João!
- O amigo mandacaru sempre verde! Salve o sertão e o sertanejo! A menina Suely se lembrou da história que Rozental, seu professor contava. Rozental dizia que o sertão tinha um herói e que mais cedo ou mais tarde tornaria ao mundo.
- Moço! Moço!
- Oxente! Uma pequenina dessas aqui no meio da caatinga! Onde está seu pai, mocinha?
- Meu pai está em São Paulo!
- Oxente, e o que é que ele faz por lá? O sertão está seco, mas, não está morto!
- O povo daqui tem esse costume. Quando a coisa aperta eles vão para o sul. Respondeu a menina.
- Isso num é coisa de cabra macho, não! O sertão tem futuro! Suely e João Trovoada descem o pasto na direção do povoado Jabiberi.

Quando João Trovoada entra na comunidade, o povo estava nas calçadas e bares. O povo dizia que o jeito era ‘comer água’, isso é o mesmo que beber. O povoado inteiro estava nas portas e ruelas.
- Assim num dá. Disse seu Domingos – proprietário do único armazém da comunidade.
- É num dá não! Concordou seu João cabeludo, um barbeiro muito bem quisto no lugar. Dizem que o homem sabia cortar cabelo tão bem que quando ele parava a mão a tesoura dele continuava sozinha.
João Trovoada procurou um dedo de prosa com alguém, mas, ninguém o conhecia ou se lembrava de seus feitos passados. Trovoada não era mais lembrado por aquela jovem geração de sertanejos. Trovoada se cansou de andar e decide parar um instante para pensar no que fazer.
O sol ardia no meio do céu. “A coisa está preta mesmo pensou ele”. A praça defronte a igreja do povoada tem uns pés de juás. Trovoada e sua amiga Suely se sentam para prosear.
- O sertão não conhece mais seus heróis.
- Como seu Trovoada?
- Teve tempo em que o povo conhecia minhas histórias. Eu sou João Trovoada o herói do sertão! Suely pulou do assento onde estava e disse: “Viva!” O povo por perto nem mexeu a cabeça para olhar de lado, o som de bares e botecos não permitia as pessoas ouvirem nada, exceto, se prestassem muita atenção. Contudo, a natureza era aliada de Trovoada. As nuvens cinzas começaram a ribombar seus trovões, pequenas gotas de água caiam do céu, depois, a trovoada veio lavando as calçadas, e os telhados das casas, a menina saiu para rua para se banhar na chuva, junto com ela os adultos se refrescavam de mais uma manhã de sol causticante.
- Graças a Deus! Foi Trovoada, o herói do sertão!
- Quem é Trovoada? É uma trovoada mesmo!
- Não, foi seu João Trovoada, o herói do sertão, repetiu a moça menina.
- Que nada! O sertão num tem herói, não, o herói dele é São José. A mulher dizia que foi São José e Suely dizia que foi Trovoada. Quando de repente se ouve um tiro de pistola, em seguida se ouviu o som de dezenas de gatilhos. O povo do Jabiberi gosta um pouquinho de armas. Trovoada estava no meio da praça da igreja e ao seu redor os homens do povoado com suas armas apontadas para ele.
- Parem! Gritou a pequena do Jabiberi.
- Oxente! O que é que a menina de Tailine está fazendo com esse estranho aí?
Trovoada percebendo que o povo estranhava, tomou a palavra:
“Meus irmãos de Campos do Rio Real, é com muito prazer que retorno ao sertão depois de muitos anos perambulando por aí. Voltei porque o gado está morrendo, o sertanejo está sofrendo sob o jugo de um tirano!” A palavra ‘tirano’ despertou os ânimos de alguns que gritavam alto: “É tirano mesmo!” O outro grupo protestava contra Trovoada. A briga estava feita. O povo passou para as vias de fato. Naquele final de manhã, no povoado Jabiberi, o povo se desentendeu, e isso causou a morte de alguns. Trovoada foi com sua amiga para a casa de Suely.
- Mãe, esse é João Trovoada!
- Muito prazer seu moço! Mas, o que sua pessoa faz acompanhando minha menina?
- Nos encontramos por acaso.
- Mãe, espia como ele é a cara de pai.
- Menina, deixa de tolice! João Trovoada conseguiu rancho na casa de Tailine.

Depois do almoço, Trovoada, Suely e Tailine vão para o quintal onde havia uma cobertura de telha de barro vermelho. Tailine ficou curiosa e queria esclarecimentos sobre aquele cidadão: “Sua pessoa quem é mesmo?” Trovoada explicou que quando sofre o sertão é ele quem acorde. Tailine ora dava risadas, ora prestava atenção à conversa da estranha criatura.
- Vocês sabem de uma coisa?
- Não!
- Eu vou falar com esse Anilton.
- Mãe, Trovoada é o herói do sertão mesmo! Mãe e filha caem na risada. Trovoada percebe o deboche e pede licença. Trovoada tomou a estrada para Tobias Barreto. Quando alguém passava por ele, ou de moto, ou de carro, ou a cavalo ou carroça dizia: “É o herói do sertão”. A mangação era grande. Talvez somente Suely, na inocência de seu coração acreditasse que Trovoada era a solução para os problemas de Campos.
Trovoada alcançou o povoado ‘batata’ em pouco mais de quarenta muitos. O povo da batata já sabia da história do estranho. Nas batatas, Trovoada fez um milagre. Havia na comunidade uma senhora que não andava mais. Segundo o povo, o vento passou e a mulher perdeu as forças. Trovoada soube do assunto e mandou uns moleques aparar urina de jumento. “Foi um jumentinho que levou o Cristo” Pensou Trovoada. A mulher se queixou um pouco, mas, depois de um tempo ela deu umas coladas na urina de jumento.
- Foi ruim, foi?
- Mulher! Para ficar boa eu faço de tudo!
- Num é o que comadre! Cinco minutos depois a mulher se pôs a vomitar, depois de umas três golfadas, ela dá um pulo da cadeira onde estava entrevada há cinco meses. “Glória a Deus!” João Trovoada estava na estrada quando isso aconteceu. O povo da batata saiu atrás do estranho sertanejo. À proporção que o povo caminhava, mais gente se juntava ao grupo da batata. Na altura da granja, a população de gente já o ultrapassava a centena.
- Rapaz, dona Rosinha sabe?
- Não.
- Rosinha da batata! A mulher estava entrevada há uns cinco meses. Trovoada deu mijo pra ela, e ela ficou sã de imediato.
- E foi? Então esse homem tem parte com o chifrudo.
- Veja, eu num sei, mas, eu vou ver o que vai acontecer em Tobias. As pessoas seguiram seu caminho até a Vila de Campos.

As mulheres da batata são muito religiosas. Dona Almerinda, mulher de Peixoto que trabalhava como motorista de ambulância conduziu um canto religioso. O povo, em coro, cantava “Maria, Maria, Maria de Nazaré...”. Trovoada seguiu rumo à sede do município, e a nação de gente ia atrás dele. Perto da Concordia, uma antiga fazenda de um político tobiense muito importante, Trovoada precisou parar a marcha. Havia um homem deitado num esteira. Não se sabe como ele foi posto lá, pois, a pobre criatura estava muito convalescente.
- Moço, o que houve contigo!
- Eu cuidava de uma rês; e aí, o bicho se embrenhou no mato, eu fui atrás, mas, cai do cavalo sobre um tronco de pau. Acho que quebrei as costelas. Trovoada pergunta, então ao moço enfermo: “Tem fé em nossa Senhora, macho velho?” O homem timidamente respondeu; “Tenho”. Trovoada mandou o povo pegar bosta de boi e cozinhar. Depois passou o produto no homem. O doente ficou com os lombos cobertos de bosta de boi. Trovoada seguiu seu destino, e o povo atrás. Antes de alcançar Tobias, um rapaz chega montado numa besta: “O homem já se levantou”. O povo avançou pra cima de Trovoada; no empurra-empurra, Trovoada sai de fininho, e com ele estava Suely.
- Mocinha, ser herói num é fácil!
- É mesmo, seu Trovoada, como é que você aguenta?
- É Deus minha filha que nos dá forças.
- Agora falta pouco, para nós chegarmos à sede.
- Isso. Trovoada e Suely saíram da estrada onde estavam as pessoas e entraram nos pastos. Para eles era o único jeito de não ser perturbado pelo povo. Na calma da natureza, o herói do sertão, seu João Trovoada decide dá uma parada para refazer as forças. Os dois se sentam na beira do tangue de uma roça nas proximidades de Tobias. A água estava esverdeada. O tangue estava agonizando com a estiagem. Trovoada pede a Suely para ela pegar uns galhos de jurema; a moça o fez prontamente.
- Menina quando a seca chegar, você use a jurema.
- Para que seu Trovoada?
- Espia! Trovoada pegou a jurema e cavou um buraquinho na lama do tangue agonizante. Depois, o herói do sertão disse sua palavra mágica: “Água”. O pequeno buraco cavado virou, de súbito, em um minador. A água sangrava sem parar, o que chamou a atenção do povo. Este gritava em alto e bom som: “Milagre”. A água era muita e muito maior a multidão que se formou para se molhar naquele tangue. O povo começou a fazer perguntas sobre João Trovoada.
- Seu Alécio, esse homem milagroso, é quem mesmo?
- Sei não, dona Telvina.
O senhor prefeito foi informado das curas e do milagre do minador. “Mas, quem é esse louco?” “Isso deve ser coisa da oposição”. O partido da oposição começou a questionar a identidade do herói do sertão. “Esse homem deve trabalhar para o prefeito”. João Trovoada estava em apuros, os dois partidos pensavam muito mal dele.

Os dois partidos mandaram um representante para o pasto onde estava Trovoada acampado. O tanque agonizante havia enchido de água e nas águas nasceram peixes, e o povo matava a fome com as tilápias do tangue regenerado.
- Quem é sua pessoa amigo? Perguntou o representante dos Pebas.
- Eu sou João Trovoada.
- Eu digo seu nome de batismo.
- É João Trovoada, o herói do sertão. O representante dos Pebas sorriu. O homem achou que João trovoada estava fingindo que era doido: “Mas, que povo esperto, estão se fingindo de doido para simular um milagre mesmo”. “Mas, isso num vai ficar assim, não”. O representante dos cabaus perguntou a Trovoada quem ele era; Trovoada respondeu prontamente: “O herói do sertão”. Os cabaus saíram sorrindo: “Esse é louco de verdade”.
Na verdade, Trovoada incomodava os dois lados da política local. Trovoada deveria ser usado para fins maiores como disse o presidente dos cabaus: “Vão propor a ele um cargo na secretaria de obras com salario retroativo até janeiro de 2010”. A oferta foi posta para Trovoada, mas, o herói do sertão nada queria. “Moço, obrigado pelo emprego, mas, eu preciso ficar com o povo”. Os cabaus, então, pensaram que Trovoada se vendera aos pebas. O pessoal do partido peba pensou o mesmo: “Seu Trovoada, um homem como você, na sua idade, deve ter um cargo de confiança perto de sua excelência, o prefeito. Trovoada, ao ouvir o nome prefeito, disse com convicção: “Aceitxo”.
Trovoada foi trabalhar com o prefeito Anilton. O herói do sertão recebeu o retroativo de seu salario; aguardou a segunda feira chegar e foi para a feira de Campos. “Salve o sertão e o sertanejo”. “Eu sou João trovoada - o herói do sertão”. Trovoada pegou o dinheiro do retroativo e distribuiu com o povo da feira. Tiveram que chamar a policia para organizar as coisas. O prefeito Anilton chamou Trovoada para uma conversa.
- Como é que sua pessoa dá seu dinheiro assim?
- Macho velho, o povo está faminto!
- Eu sei seu Trovoada, mas, o que é seu, é seu!
- Não senhor, o que é meu é do povo. Anilton viu que o homem era louco. Anilton também viu que Trovoada não lhe oferecia perigo. Contudo o deixou no cargo de confiança. Com o tempo, o povo em vez de procurar o prefeito, procurava Trovoada, e isso irritou o prefeito.
- Seu Trovoada quando o povo lhe procurar, mande-o a mim para que eu possa ajuda-lo.
- Certo vossa excelência! O povo procurava Trovoada e ele mandava o povo ir ter com o prefeito: “Anilton vai te atender!” De fato, o prefeito começou a atender o povo e a ouvir as necessidades de cada um: “Seu prefeito, meu bujão acabou e não tenho condições de comprar outro”. “Seu prefeito a minha conta de luz está atrasada e o salário ainda não saiu”. “Seu prefeito, minha filha está gravida e está sem médico no hospital”. Os casos eram muitos, mas, com Trovoada de lado, o prefeito ouvia a todos. No final dos trinta dias, Anilton teve uma crise de choro.
- Compadre, soube que Anilton está com depressão?
- O que é isso depressão?
- É quando a pessoa fica amuada, sem querer viver!
- Vixe, então Anilton está ruim.
- Num está o que? Dizem que Trovoada fez o homem ouvir o povo.
- Está vendo, o cargo é pesado. Anilton piorava dia após dia. Quanto mais ele ouvia o povo, mais o homem piorava.
- Seu Trovoada, Anilton parece que vai bater as botas.
- Muito mais sofreu o Cristo. Disse o herói do sertão olhando para a barra do tempo. Uma chuva muito forte estava para cair. Trovoada continua:
- Eu vi santa Bárbara no céu nesse instante. Essa chuva vai mudar tudo em Campos.

Os amigos do prefeito se afastaram dele. “Anilton agora gosta de pobre”. A oposição estava revoltada porque o povo passou a gostar de Anilton. “Dizem que deixou até a rapariga”. “É, depois que esse Trovoada apareceu, as coisas mudaram em Campos”. O povo continuava sofrendo, por mais que Anilton os ajudasse, o sofrimento continuava. Agora o povo sabia que seu prefeito queria mudar os rumos da cidade. “Rapaz, ano que vem vocês vão ver, Anilton vai ajudar muita gente”. “Eu num estou gostando não, pois, ele num tem mais cargos de confiança”.
A oposição decidiu dar fim a Anilton. “Com a morte dele vai haver reeleição”. Trovoada caminhava com sua amiga Suely pelos pastos do Jabiberi quando um garça se aproxima dos dois: “Mestre Trovoada, o prefeito corre perigo”. Trovoada pega sua pistola e dá um tiro para cima: “Eu sou João Trovoada, o herói do sertão!” “Quem mexe com meu povo, mexe comigo”. Trovoada disse a Suely que aquela viagem ela não podia ir com ele. A menina resistiu um pouco, depois, ela o despede dizendo-lhe: “Num vá se machucar”. A pequena Suely estava muito acostumada com seu novo amigo. Trovoada chega a Vila de Campos. Na entrada da cidade estavam os capangas da oposição. Os homens bebiam num bar. Ao verem João Trovoada, os homens se levantaram e foram em sua direção. A ordem era atirar nele e em Anilton. O prefeito Anilton também passava pelo lugar. Os homens da oposição disseram consigo que estavam com sorte. Ouve-se um tiro, depois outro, e depois outro. O povo apavorado correu para dentro de casa. Alguns segundos depois, as pessoas aparecem para ver o que ocorreu. Trovoada estava estirado no chão. A cidade viu o herói do sertão dá sua vida pelo prefeito Anilton. O corpo de trovoada lentamente se transforma em um mandacaru. A cactácea pôs sua flor no meio da praça principal de Campos. As pessoas ficaram perguntando pra onde ele havia ido. O prefeito Anilton, no ano seguinte, planejou os custos da cidade para enfrentar a seca. Anilton mandou cavar cisternas em todas as roças do município. O povo de Campos não sofreu mais com a seca.

O sol caia por detrás das serras do Jabiberi. A menina Suely acorda de seu sonho. A menina morta de fome procura sua mãe.
- Mãe, eu sonhei que pai era o herói do sertão!
- E foi mocinha?
- Foi.
- Minha filha, o sertão está cheio de heróis e vilões.
- É mãe, mas, Trovoada é herói mesmo! A chuva voltou para o sertão, os pastos ficaram verdes, os tanques cheios e as mesas fartas. O sertão se aquietou e com ele seu povo...

A CASA BRANCA NO FINAL DA RUA PERNAMBUCO

Andamos nas cidades tão ocupados que não percebemos que estamos cercados de estórias. Muitas delas tão próximas a nós que se soubéssemos disso pararíamos um pouco e prestaríamos atenção a alguma coisa ou a alguém que está passando na nossa estrada. Foi isso que aconteceu com Gracinez. Gracinez era uma gracinha de menina. Uma moça muito esperta e inteligente; criou-se na roça e depois, por volta de 1985, foi morar em Aracaju. Naquela época Aracaju dava sinais de crescimento e ninguém tinha tempo de parar e prestar atenção a alguma coisa fora da rotina. Todos estavam em harmonia com o ritmo do progresso. Contudo, as cidades têm bueiros e esgotos, ruas velhas e novas, sangue aqui e ali. Aracaju seguia o rumo de todas as filhas do Brasil.
A jovem de Monte Alegre estava um dia à tarde caminhando perto dos trilhos da Leste. A Leste é a ferrovia Sul Atlântico, uma ferrovia que sai de Aracaju e cruza boa parte do estado. A moça estava tão desatenta que pisou em falso e machucou o tornozelo. A dor foi tão grande que a menina mal conseguia andar. Um senhor de idade um tanto avançada percebe o ocorrido e aproxima-se da moça.
- O que houve menina? Machucou-se?
- Sim. Pisei em falso e parece que torci o tornozelo.
- É bom pôr gelo. Passa logo. Chegue à frente. Aqui é minha casa! “Maria!” Gritou o senhor em busca de ajuda. Dona Maria veio logo e com Deus na boca disse:
- Valha-me meu Deus! O que houve Tião?
- Foi a menina que machucou o pé.
- Vixe minha fia, tá com a cara cheia de dor. Chega pra cá! Seu Tião trouxe um banco de madeira e dona Maria pôs gelo no machucado de Gracinez. Eles moravam no final da Rua Pernambuco já avistando os trilhos da Leste. Dizem que as aranhas caranguejeiras invadiram as casas daquela quadra. Foi um sofrimento para o povo do lugar. Mas, fazer o que? Seu Tião dizia que as coitadas não tinham mais onde ficarem.
- Tá mió, minha filha?
- Tô. Dói um pouco, mas, acho que dá para andar.
- Dá mesmo? Num quer ficar mais um pouco? Olha lá hein! Seu Tião pegou outro banquinho e sentou-se ao lado de Gracinez e iniciou uma prosa com a menina.
- Sabe moça, aqui já foi bom de morar. Não tinha bandido; nem droga, nem gente sem futuro. Todo mundo vivia como Deus quer; bem contente com o que podia ter. Tinham muitas mangueiras, havia muitos sítios; as casas eram mais distantes umas das outras, mas, nem por isso o povo não se falava. O Aribé era um lugar bom de morada e para aqui vieram muitos de todos os cantos de Sergipe. Lembro-me de uma moça cujo nome é o seu. Dona Gracinez. Ela veio de Monte Alegre com suas filhas e por aqui ficou até Deus a levar. O povo todo da rua contava que Gracinez teve um grande amor antes de casar-se com seu Feliciano. Este tal Feliciano era um homem bom, embora, muito rigoroso na educação das filhas. Ele conheceu uns homens do bando de Lampião quando morava em Monte Alegre na época em que o cangaceiro levou dona Gracinez para ser mulher de um soldado de Curísco. Naquela época as mulheres tinham muito medo que Lampião roubasse suas filhas. Dona Gracinez foi uma das vítimas do cangaço. A jovem menina se interessou pela estória do velho e esqueceu-se da dor de seu pé.
- Conte seu Tião como foi a estória de Gracinez no cangaço! Disse a menina Gracinez com curiosidade.
- Minha filha essa estória me arrepia todo. Eu tive que tomar banho de arruda para parar de sonhar com o bode preto.
- Bode preto, que bode preto? Perguntou a moça Gracinez.
Gracinez era filha de um pequeno agricultor e vivia uma vida de rainha no seio de sua amada família. Todos os dias ela ia com seu pai pegar leite no curral da roça deles. Eles saíam antes do sol subir. Gracinez estava noiva de um soldado da polícia que havia sido promovido a sargento por méritos. O homem era dedicado ao que fazia. Quando o rei do cangaço cercou Monte Alegre, o Sargento Cupertino se prontificou a chefiar a tropa de resistência e captura do delinqüente. Tentou muitas vezes, mas o danado escapuliu de todas. Lampião gostava de forró e por isso as pessoas davam festa para ele e seus homens. O problema é que moça direita não andava nesses lugares. Um dia saindo do curral de sua fazenda Gracinez e seu pai se depararam com os homens do bando de Curísco. Um deles olhou para a pequena e se apaixonou por ela. O bando seguiu destino assim como Gracinez e seu pai.
- Como era o amor dela com o Sargento seu Tião? Perguntou Gracinez.
- Cupertino era um rapaz correto e queria casar-se com ela. Todas as noites quando não estava de serviço jantava com a família dela. Era uma pessoa de casa. Os dois se amavam de verdade. Gracinez dizia: “Sem Cupertino, num vivo mais”. Eles se entendiam muito bem e as diferenças eram resolvidas na conversa como deve sempre ser, num é minha filha? Pois bem, Monte Alegre fazia tempo que tinha visto um amor daquele. Contudo o rapaz de Curísco ficou com a imagem do rosto de Gracinez em sua cabeça. Ele teve um surto de amor inesperado e sua face caiu desde então. Curísco dizia para ele: “Tá choco macho? Levanta a cabeça!” o rapaz respondia: “Choco não, mas a moça do curral me quebrou o gosto de viver, sem ela não dá. Vamos atrás dela seu Curísco!” O caso durou semanas, até que em uma tarde de sol muito quente encontraram o rapaz caído na beira do tanque. Ele estava com febre e delirava: “Gracinez minha linda onde está você?” Curísco teve muita pena do rapaz. Seu nome era Raimundo.
- Mande três homens buscar essa rapariga da peste! Ordenou o grande Curísco do sertão.
Os homens de Curísco varreram a cidade e acharam a dona Gracinez fazendo o que sempre fazia quase todas as noites. Ela e seu sargento conversavam à porta de sua casa. Os dois estavam combinando como seria a lua de mel. Falavam da serra de Itabaiana e da roça de seu Jucelino no pé da serra. “Ali nascem flores que encantam a todos que passam”.
- Moço, num dê uma de macho! Passe a arma! Disse um homem caboclo com um fuzil apontado para Cupertino. Dois outros homens pegaram Gracinez, vendaram-lhe os olhos e a levaram a cavalo sumindo na escuridão da estrada. O caboclo de fuzil na mão mandou Cupertino virar as costas. Nesse momento o rapaz pensou: “Vão me matar”. Mal parou seu pensamento e a coronhada o jogou no chão inconsciente.
-Cupertino! Cupertino!
Cupertino levantou-se, pôs a mão na cabeça, e viu sangue em suas mãos. Os pais de Gracinez choraram o seqüestro de sua filha por muito tempo. Cupertino não se consolava e alimentava o sonho de reavê-la. Tentou por vezes entrar no arraial dos cangaceiros, mas, nunca conseguiu chegar perto de seu amor. Uma manhã de fevereiro, às dez do dia, ele e três elementos fortemente armados tentaram entrar no arraial pelo acampamento das putas que ficava um pouco mais afastado do de Curísco. Foram percebidos logo na primeira barraca e levaram tiros até perto do pasto de Miguel do Amarante uma légua distante do lugar. Cupertino definhava desde então e abandonou a farda. Sua triste vida passou a ser vivida no pé da mesa de sinuca e perto de uma garrafa de pinga. Pobre Manoel Cupertino.
- Seu Tião, e Gracinez? Como ela viveu no arraial? Perguntou a moça bonita do tornozelo doído.
- Bem, minha filha, Gracinez virou mulher de Raimundo. Ou deitava com ele ou morria, mas, o jovem cangaceiro não a tratava mal, seu amor era tão forte que ele sentia seu débito para com a moça e procurava agradá-la. No entanto, por mais que tentasse nada obtinha de sucesso. Raimundo e Gracinez caminharam pelas caatingas do sertão até voltarem a Monte Alegre em um verão quente de Sergipe. A terra gemia como mulher agoniada na hora de parir. A caatinga se veste de cinza com pontos verdes aqui e ali graças à força do juazeiro.
- Cupertino! Cupertino! Chamou dona Josefa, mãe de Gracinez. O rapaz estava deitado no banco da praça da matriz. Os pardais se assustaram quando Cupertino se levanta para atender sua sogra.
- Como? Perguntou ainda grogue o valente soldado.
- Lampião esta de volta, homem, vamos ver se a gente livra Gracinez! Seja macho rapaz, junte uns homens e volte lá!
Han? Cupertino retornou ao banco vencido pelo efeito etílico de sua noite anterior. Era meio dia quando o sol passou as folhas do cajueiro e incidiu seus raios no rosto de Cupertino. O calor era intenso. Quem olhasse para o chão via sombras trêmulas desfilarem ante seus olhos. Cupertino levanta-se, espreguiça-se, abre a boca, coça a barriga e caminha em direção a casa de seu sogro.
- Meu filho! Graças a Deus que você veio. Lampião está em Poço Redondo e amanhã ou depois estará aqui. Disse dona Josefa com muita fé.
- Não tenho mais farda. Vocês não lembram? Como é que vou arranjar gente para ir comigo? Disse Cupertino sem nenhuma fé. Seu Honorato, pai de Gracinez vai até seu quarto, apanha um saco de algodão, e retorna a sala.
- Está aqui tudo que juntei em toda minha vida. Pôs o homem o saco sobre a mesa com muita tristeza. Agora Cupertino sabia que podia reaver sua amada e estava disposto a tudo por esse amor.
- Não se preocupe seu Honorato, amanhã mesmo estarei com os homens aqui. Cupertino saiu da casa de seu sogro mais animado. Passou pela matriz, fez o sinal da cruz, e rumou na direção de Glória para ver se conseguia alguns homens corajosos. Na estrada de Glória, na baixada de um riacho, Cupertino desmonta de seu cavalo para aliviar o ventre. Após o serviço, percebe o moço que não estava só naquela baixada.
- Quem está aí? Sou o sargento Cupertino! Identifique-se! Nenhuma voz veio do mato.
- Será o diabo? Fale logo rapaz antes que eu atire! Berrou o sargento com muita arrogância. Saiu do mato, do lado de uma pedra enorme, um rapaz branco da cabeça grande. Seus olhos eram bem claros, nem azuis, nem castanhos, eram, na verdade, uma mistura de tudo isso. Seu cabelo era castanho escuro. As feições finas, mas a boca estava cheia de dente pobre, e o bafo era o legítimo bafo de onça. O rapaz levava consigo um livro enrolado num pano cinza.
- Que é isso que você carrega? É roubo, moço? Você é do bando de Lampião? Cupertino fez as perguntas de práxis intimidando o moço como se ele ainda fosse alguma autoridade.
- É só um livro que sempre carrego comigo e eu desço aqui para lê-lo e praticá-lo quase sempre. Disse Cristovão, o bruxo de Glória.
- Deixe-me ver este livro! Disse Cupertino dando-lhe uma ordem. Cupertino folheou o livro. Este estava cheio de rezas e de encantamentos. Havia muitas figuras e símbolos mágicos. Era um autêntico Capa Preta. Cupertino interessou-se muito pelo trecho que diz: “Fazendo com fé a oração da cabra preta você se tornará invisível e só uma pessoa que te ame de verdade poderá te ver”. Naquele instante estava diante de seus olhos a solução da vida de Gracinez: “Entrarei no arraial de Lampião sem ser visto e a trarei de volta”. Sua vontade de ver sua amada era tão grande que ele se esqueceu do resto da oração.
- Moço, você quer quanto pelo livro? Perguntou Cupertino.
- Num vendo não moço. Esse livro meu pai trousse de São Paulo.
- Moço meu caso é urgente e preciso me tornar invisível para libertar uma pessoa que está nas garras de Lampião.
- Mas eu num vendo não. Repetiu o rapaz.
- Tenha piedade moço. Insistiu Cupertino.
- Eu rezo por você. Na verdade nunca testei este encantamento, mas acho que para uma causa nobre como essa os espíritos vão nos ajudar. Feche os olhos!
- E pode rezar aqui? Perguntou o bravo soldado do sertão.
- Num se preocupe! Aqui é o local certo de magia deste tipo, feche bem os olhos e se concentre na cabra preta.
“Pelo galo que cantou;
Pela cabra que berrou;
Pelo sol que levantou;
Pela noite que chegou;
Eu chamo as forças da jurema, do Imbuzeiro, e do cruzeiro;
este moço será um bode invisível e salvará sua amada”. Na mesma hora, em plena luz do dia, caiu um raio que torrou um pé de mandacaru que estava faceiro perto dos homens. Cupertino desapareceu, o rapaz era agora um bode preto do sertão.

- E agora seu Tião, como vai terminar esta estória. Esquisito! Perguntou assustada a pequena Gracinez. “Maria, pega um cafezinho para nós”. Dona Maria levantou-se do banco e foi à cozinha buscar café. Ao retornar ela diz: “Faz vinte anos que ouço esta estória e é nessa parte que Sebastião pede um cafezinho. Conte logo homem já, já, escurece, a menina tem que ir para casa”.

O bode preto inicia sua caminhada pelo sertão em busca de sua amada. Por onde passava berrava e o povo ouvia seu berro, mas, não sabia de onde vinha. A população que morava no beiço das estradas estava apavorada com aquele berro triste de partir o coração. O sogro e sogra de Cupertino nunca souberam o motivo do rapaz não ter mais aparecido. Cupertino agora pertencia à outra estória. O bode preto avistou o arraial de Lampião na manhã do dia 29 do mês de Santana. O bode preto andou em círculos berrando sem cessar até que os cangaceiros incomodados com zoada indagaram sobre o que estava acontecendo. Ninguém tinha resposta. Era um som de bode que os acompanha pelas estradas do sertão, fosse dia ou noite, manhã ou tarde, o berro do bode estava no ouvido do povo. O próprio lampião já não suportava mais aquele berro triste.

- Curísco vá chamar dona Florisbela para rezar. Ordenou o rei do cangaço. Curísco pegou a estrada da tapera e foi em busca da benzedeira. A mulher ao chegar aos limites do arraial gritou em alto e bom som: “Salve o bode preto!”

- Que é isso dona? Perguntou Curísco a benzedeira.

- É o bode preto que está no encalço de vocês. Conta a lenda que ele não pode ser visto. Somente a pessoa que o ama pode fazê-lo tornar-se visível.

- E a tua reza não pode expulsar este animal de perto de nós?

- Não, ele está aqui porque ele está em busca de sua amada. Deve haver alguém aqui que o bode deseja.

- Há três anos um de nossos homens teve uma febre de fricote por causa de uma moça de Monte Alegre, e nós roubamos a moça de casa. Não sabíamos que a coisa era tão séria assim. “E agora o que fazer?” Perguntou Curísco preocupado. Raimundo estava na espreita ouvindo a estória da rezadeira. O rapaz amava muito Gracinez e não queria perdê-la. Raimundo gritou: “Faça um feitiço para o bode aparecer e nós mandamos chumbo nele”.

- Num é tão fácil assim, não. O bode preto é um encantado e as forças da Jurema estão com ele. Você nem imagina a força de um bode preto. O jeito é levá-lo até a moça e quando ele vê-la, ele ficará visível por causa do amor que está dentro dele. E será nesta hora que vocês vão rezar a oração do desmanche antes de pegá-lo:

“Sapo cururu;
Coruja encantada;
Serpente alada;
Pela força da calunga;
Pela força do cruzeiro sagrado;
O bode ficará visível”.

- Rezem, depois ele será visto, e façam com ele o que quiserem. Mas é bom sangrá-lo na garganta com uma faca virgem. O bode era grande, uns dois metros de bode. Ele tinha chifres afiados e uma barba de bode muito atraente, na verdade, o bode preto era um bode de lei. Depois disso Curísco e seus homens tomaram Gracinez numa conversa muito astuciosa:

- Moça, vá buscar água no tanque. Volte logo, seu Virgulino está esperando. A água do tanque era quase verde, mas, era única que tinha, e dela o povo bebia, cozinhava, e tomava banho. Quando a moça Gracinez foi buscar água, o bode veio ao seu encontro. À proporção que ele berrava, ele se aproximava, e seus berros deixavam o tom de tristeza para ser tom de alegria. A moça nada entendia até que viu uma forma trêmula de bode se formando na miragem do sol quente da caatinga sergipana. “É um bode preto!” Pensou a moça consigo. O bode aproximou-se dela e ajoelhou-se aos seus pés e berrou como que fosse um choro, misturado de alegria e sentimento. Cupertino, finalmente, encontrara seu amor. A pobre Gracinez em sua inocência passa a mão na cabeça do bode com muito cuidado para não tocar-lhe os chifres. Este se deita aos seus pés e põe como um cachorrinho a barrica para cima. A moça passa a mão na barriga do bode. Raimundo estava à espreita por entre as moitas de macambira. Ele e seus jagunços. Todos correm e amarram o bode pelas pernas.

- Mulher, estás me chifrando com o chifrudo preto? Perguntou Raimundo com o rosto transtornado.

- Não! Você não vê? É só um bode perdido. Respondeu-lhe a moça de Monte Alegre.

- Esse é o bode fantasma que andava assombrando todos os povoados desse sertão. Esteja preso bode maldito! Levaram o Cupertino para o arraial. Deram tiros no chão e o bode pinotava para todos os lados enquanto isso os homens de lampião davam gargalhadas. Gracinez não sabia o motivo, mas sua alma chorava ao ver o sofrimento do pobre bicho.

- Seu Tião, o que houve depois disso? Os dois ficaram juntos? Perguntou a pequena Gracinez do Aribé.

- Minha filha, juro por Deus, mas conta o povo que o bode...

- Parem de atirar! Ordenou o rei do cangaço.
- Isso é coisa de macho? Zombar de um pobre bicho? Continuou seu Virgulino.
- Deixem o bode quieto. De hoje em diante o bode anda conosco. Daquela hora para frente Cupertino deixou de berrar e só andava com Gracinez. Para onde a moça ia, o bode ia atrás. Muitas foram as noites e dias juntos. E Raimundo sempre cismado com o coitado do bode. Ele nunca mais ficara invisível, agora, seria um bode de estimação do cangaço.

- Mas, minha filha a vida num é sempre rosas. Essa estória parece não ter um fim, mas teve.

Era noite de lua. Esta estava imponente no céu do sertão de Monte Alegre. As serras vistas a distância não mais encobriam a orgulhosa senhora da noite. É tempo dos bichos darem seus uivos, ou gritos, e no caso do bode, berros. O bode berrava de alegria e pulava para todos os lados como que dançasse a luz do luar. Desse jeito foi se aproximando da barraca de Raimundo onde Gracinez estava. O casal estava fazendo amor, ou melhor, Raimundo fazia amor e Gracinez pensava em Cupertino. A moça nunca esquecera seu homem. As mulheres são assim, quando amam, amam até fim. O bode entrou na barraca do casal e deu um berro assustado quando viu sua amada naquela situação. “Bérrrrrrr!” Estas foram as últimas palavras de Cupertino. Raimundo saltou de onde estava e tomou a faca virgem por ele guardada em segredo e tomou o bode pelos chifres e o levou para a beira do tanque sob os gritos de Gracinez apavorada. “Não mate o bichinho, não, Raimundo”. Raimundo passou a vaca no pescoço do bode cortando-lhe a artéria. O animal se estrebuchava em uma poça de sangue que escorria para dentro do tanque. Lentamente o bode se transforma em figura de homem e de homem conhecido. Gracinez reconhecera que era o seu amor. Correu e o abraçou dando-lhe beijos no rosto e fazendo-lhe juras de amor eterno. Com isso Raimundo enfraqueceu o juízo. Quando amanheceu o dia, todos do arraial sabiam do ocorrido e como Raimundo havia assassinado o bode preto. Lampião ordenou seus homens que enterrassem Cupertino e ao lado de sua sepultura enterrasse Raimundo até o pescoço e lhe jogasse mel na cara. A cara do cangaceiro foi comida pelas formigas e Gracinez foi mandada de volta para seus pais. Todo o povo do sertão chorou a morte de Cupertino – amor como esse é coisa rara. Gracinez voltou para Monte Alegre, conheceu seu Feliciano, casou-se com ele. Depois da Segunda Guerra vieram morar no Aribé, em Aracaju, em uma casa branca no final da Rua Pernambuco. Ali criaram suas filhas que devem estar vivas até hoje.

- E Gracinez, seu Tião? Está ainda viva?

- Não minha filha. A pobre mulher fez de tudo para amar Feliciano, contudo, sempre Cupertino estava em seus pensamentos. Morreu e foi enterrada aqui no cemitério perto da Leste.

- E na casa que eles moravam mora gente lá? Perguntou curiosa a menina Gracinez.

- A casa fica logo ali, é só seguir em frente e você a verá.

Gracinez despediu-se do velho e de dona Maria. Agradeceu-lhes os cuidados e o bom dedo de prosa. A moça seguiu seu destino caminhando com dificuldade. A curiosidade é coisa natural de todos os homens. E quando falamos do sexo feminino parece que ela é bem maior. A moça foi ver a casa da finada Gracinez. Era uma casa branca que estava toda descascada com o tempo. O portão quebrado com um lado caído. As pessoas entravam ali para fazerem tudo que queriam. Havia fezes pelo antigo jardim. As pessoas aproveitavam o muro alto da propriedade para usarem de tudo. Gracinez entrou pelo portão, e caminhou na direção do hall que estava cheio de folhas secas e papel velho. Tentou abrir a porta da frente, mas, não teve sucesso. Então, disse ela consigo: “Onde vai dar este beco?” Ela seguiu o bequinho na lateral esquerda da casa, e mais adiante avista uma goiabeira e nela amarrado um bode, o bode era preto. “Um bode preto?” Pensou ela. “Deve ser coincidência”. Naquele instante, ela rever a estória que o velho preto da leste tinha contado. “Será o mesmo bode?” Enquanto a moça está tentando situar-se no tempo e espaço, pois, sua mente procurava respostas. Atrás dela surge uma voz que ela já conhecia.


- Minha filha, a vida é cheia de sentidos assim como as cidades são cheias de casas. Em todas elas moram estórias nunca contadas. Os homens transitam entre elas como sonâmbulos acordados pelo o urgir das necessidades.

- Mas, o senhor não é seu Tião? Perguntou Gracinez confusa e assustada.

- Tião é um contador de estórias como eu. E você quem é? Perguntou-lhe o velho de Aruanda.

O bode que estava preso deu um berro e a corda quebrou-se sozinha sem força de mão de homem. O bode veio até Gracinez, ajoelhou-se ante seus pés e chorou amargamente. Depois se deitou como um cãozinho de estimação com a barrica para cima. Gracinez passou a mão em sua barriga peluda, e sentiu uma ternura profunda. Olhou para trás e lá estava um preto velho sentado com as costas encurvada observando tudo. A fumaça de seu cachimbo subia ao céu como a oração dos justos.

- Gracinez, acorde! Disse o velho de Aruanda.

Gracinez cresceu, casou-se, e foi morar no Santo Antonio. Todas as tardes quando chegava do trabalho ela ia até o oitão da igreja olhar a vista da cidade princesa do Brasil. E era nessa hora que seu peito ardia de saudades da cidade de Monte Alegre onde vivera sua infância e nunca ninguém lhe contara sobre Cupertino e o bode preto...

O DESPACHO

- Mulher não me pergunte mais sobre isso!
- Por que Vasconcelos?
- Porque isso é coisa para ficar guardada!
- Por que Vasconcelos?
- Porque tem de ser assim, entendeu?
- Não!
- Então, traz o pinico aí, por favor, que a coisa tá ruim!
- Você é um cagão seu velho maldito!
- O que? Mulher se conforme pelo amor de Deus!

O dia havia amanhecido em Tobias Barreto. As mulheres estavam varrendo as calçadas e comprando leite. Entre uma coisa e outra, um dedo de prosa sobre a vida dos outros. A Rua Itabaianinha, de manhã cedo, tem jeito de gente. Há uma efervescência de vida. As pessoas saem de casa em busca do que fazer e assim é por toda a antiga Vila de Campos. Tobias Barreto se tornou em um centro comercial na zona sul do estado de Sergipe. Muitos baianos e pessoas de outras cidades sergipanas e de outros estados do Nordeste vêm fazer compras em Tobias. A antiga Vila de Campos do finado poeta Tobias Barreto agora leva o seu nome, em homenagem a sua ilustre pessoa. Vasconcelos de Araujo Dantas era um tobiense da gema. O velho é um arquivo de estórias de um passado ido, porém, bem presente nos arquétipos locais. Sua mulher, dona Germana Alves, havia conversado com Liliane, sua vizinha e amiga de fofocas, sobre o achado daquela manhã. Conta o povo, e aqui, a voz do povo é a voz de Deus, que encontraram um grande despacho de macumba na encruzilhada da Sete de Junho em frente ao Restaurante Trindade. O despacho continha nomes de autoridades e fotografias de mulheres da sociedade.

- Liliane, mulher, você já tá sabendo do despacho de macumba? O sangue de Jesus tem poder!
- Eu ouvi alguma coisa, mas, num to sabendo, não! Disse a moça com um ar de “num sei não”.
- Pois, num é mulher encontraram um despacho na avenida e nele está o nome de muita gente graúda.
- Você já perguntou a teu velho sobre isso? O povo num diz que ele é sabido?
- Não, perguntei não. Encerrou a conversa dona Germana.
Dona Germana retorna ao interior de sua residência e trava mais uma prosa com seu Vasconcelos.

- Tá vendo homem. O povo tá dizendo que você é sabido. - Vasconcelos! Tenha fé em Deus, homem! Desembucha! O que é aquilo na praça?

O velho Vasconcelos Araújo coça sua barba branca e abre a sua boca com pouquíssimos dentes e viaja ao seu passado. Era 1987, Tobias estava de vento em popa, e Vasconcelos tinha sessenta anos. Ele recordou-se da antiga feira da coruja, da enorme quantidade de barracas e vendedores de todos os cantos do estado. As ruas menos movimentadas ficavam cheias de ônibus da Bahia. As pessoas circulando com sacolas na mão e muita esperança em seus corações. Os comerciantes trocavam de carro todo ano e a cidade ganhava prestígio econômico e político no estado. Mas não era só coisa boa não. Havia uma enorme quantidade de falidos e desesperançados andando sem rumo nos becos e vielas da cidade. Naquela época houve muitos casos de suicídio e de mulheres que abandonaram a família para tentar a vida de outra forma.

- Seu Vasconcelos minha menina Natália está com quebrante, não dá para o senhor rezar nela não?
- Dá minha filha traga ela às duas.

Vasconcelos era um rezador famoso na cidade. Um homem de caridade a flor da pele. Muitas foram as famílias que ficaram devendo a ele esse favor divino.

“Em nome da Virgem Santíssima, em nome de Nosso Senhor, saia dessa moça todo quebrante, perturbação, obra do mal”. “Salve a pemba, salve a jurema!” “Tá melhor minha filha?” Quem não conhecia essas palavras mágicas do velho rezador da Rua Itabaianinha? Vasconcelos recordou os tempos em que em Tobias as pessoas não fechavam as portas porque não havia ladrão na cidade. Aquele tempo fora muito bom, dizia o velho rezador.

- Vasconcelos!
- Ham?
- Estava a onde? Deixou-me, aqui, falando sozinha?
- Eu tava me lembrando do passado, você não quer que eu diga o que é aquilo?
Vasconcelos lembrou-se de Coronga. Este era um bruxo antigo que morava na Bahia próximo ao Candial. Coronga era especialista na magia com a cabeça de porco. Era sabido pelo povo que ele tinha uma enorme lista de pessoas afetadas por sua magia.

- Vasconcelos, esse Coronga seu amigo é do mal?
- Sei não.
- Mas ele não faz o mal?
- O que é o mal?
- Sei lá meu velho!
- Então? Se você pede um benefício, este atinge o outro, num é bom para você e ruim para o outro. Todo dia nascem e morrem pessoas, afinal, o dia foi bom ou mal?
- Sei não seu Vasconcelos estas coisas são muito complicadas.
- Eu só queria que o senhor segurasse esse homem dentro de casa, pois, ele está muito namorador.
- Num é minha filha que direito tem você de trancar alguém dentro de casa? O seu bem é mal para alguém, num é?
A jovem saiu das lembranças do rezador por um instante. A mente do velho Vasconcelos andava em tempos muito distantes agora. Ele via a Vila de Campos de 1956. A cidade era pequena e as pessoas mais próximas das outras. Ele lembrou-se de uma velha profecia de um feiticeiro da Lagoa Redonda:

“Chegará um dia em que algumas mulheres de bem de Tobias trairão seus maridos na avenida sete”.

- Será? Germana!
- Estou aqui, desembucha!
- Deve ser a profecia de seu Feliciano, o feiticeiro da Lagoa Redonda. Ele havia jurado que um dia algumas mulheres de bem de Tobias trairiam seus maridos em frente à praça do cruzeiro.
- Que nada rapaz! Está com conversa fiada!
- Então num sei não! Calou-se o velho rezador.

A praça do cruzeiro estava lotada de curiosos para ver o despacho. Tobias, mesmo nos dias modernos, não estava habituada com essas coisas. Tinha seus macumbeiros, mas, tudo bem escondido. Até que se prove o contrário todos eram cristãos autênticos. Ninguém ousava pegar no despacho. O sol foi esquentando, as pessoas foram passando pelo local e a multidão se avolumava. Quem pegaria no despacho para tirá-lo do local. Chamaram o padre, este disse que tinha uma missa para rezar. Chamaram alguns pastores, estes não puderam vir. “E agora?” Perguntou Clemente, um trabalhador da padaria ao lado do restaurante. “Chamem a polícia!” Disse Miranir, vendedora da Avon que passava pelo local. Os reportares das rádios locais vieram para a cobertura do acontecimento. “Isso é um absurdo!” Dizia o âncora do programa “A hora da verdade” “Não temos mais paz!” Disse o prefeito apoiando seus eleitores numa hora muito difícil. Enquanto o povo resolve sobre o que fazer com o despacho uma criança de cinco anos solta-se da mão de sua genitora e corre para o despacho pegando a rosa vermelha da Pomba Gira. O povo grita unânime: “Não! Pelo amor de Deus!” a criança corre com a rosa na mão por entre os adultos e se esconde debaixo de uma carreta de uma transportadora. Nesse instante o povo atônito começa novamente as suas conjecturas.

- Tá vendo? O diabo usou a inocência de uma criança. Disse Eduarda que trabalha no fórum.
- Pois num foi mulher, coitada da criança! Concordou Tereza, uma dona de casa.
- Isso num tem nada a ver não. Deus guarda as crianças inocentes. Disse Pedro, um torneiro mecânico.
- Rapaz tudo tem um propósito debaixo do céu. Esse foi o argumento de Paulo, um adventista do sétimo dia.
- Deve ter sido o carma da criança. Argumentou Herculano Andrade, líder do centro espírita cavaleiros da luz.

As opiniões eram muitas, e o sol já estava no meio do céu e nada do despacho ser retirado do lugar. Todos que passavam diziam alguma coisa. Cada um segundo seu mundo interior. A tarde entrou e o tempo ficou pesado de nuvens. As pessoas foram se dispersando para suas casas. As nuvens cinzentas anunciavam que haveria trovoada em Tobias. Era costume na época colocarem plásticos nas janelas em tempo de trovoada por que a chuva era acompanhada de ventos e a água entrava nas casas. Todo mundo no seu lugar, e o despacho no mesmo local sem ser removido, exceto uma pequena rosa vermelha jogada no calçamento da avenida sete. Os trovões ribombaram no céu do sertão. As mulheres cobriram os espelhos com um pano, “É para não atrair raios”. Disse Almerinda Góis, mulher de Gustavo da Exatoria.

- Vasconcelos! O povo foi embora e não tirou o despacho do meio da rua. Tenha fé em Deus homem! Faça alguma coisa para aliviar a dor do povo! Disse Germana um tanto irritada. Vasconcelos foi para o quintal em busca de seu cachimbo que ele ganhou quando esteve na aldeia indígena que fica no município de Colégio nas Alagoas. O cachimbo estava sobre sua pedra sagrada. O velho gostava de sentar naquela pedra no final da tarde para fazer suas orações aos Orixás. E aproveitava para dar umas cachimbadas e meditar sobre o sentido da vida, ou os sentidos que a vida pode ter como dizia ele. A chuva começou a cair fina, as folhas do pé de sapoti e do pé de carambola não a deixavam incomodar o velho rezador em sua reflexão sobre o ocorrido.

- Pai Joaquim, será que aqui tem algum maluco que arria ebó no meio da rua?
- Tem, meu fio.
- E que diacho é isso meu velho?
- É o povo que pediu dinheiro, sorte no amor, e sucesso na vida.
- Mas por que arriar logo na encruzilhada da avenida principal da cidade?
- O rapaz achou que fazendo assim ia ajudar a todos uma vez que as lojas estão todas por ali.
- Mas que diacho meu velho! Assustou o povo!
- Mas num foi o povo quem pediu?
- É. Sendo assim, por que o povo estranha o que conhece?
- É a natureza humana, num é Vasconcelos?
- É, meu velho...
Um forte trovão despertou Vasconcelos do sonho e as grossas gotas de água caíram pesadas sobre o corpo cansado do velho Babalaô conhecido como “rezador Vasconcelos”. A chuva veio impiedosa e levou tudo que estava em seu caminho. Desfez o ebó, a farofa, as rosas, os cigarros, os charutos, tudo foi levado pela enchente que cobriu toda a antiga Vila de Campos. As casas foram inundadas, os plásticos para nada serviram e após o dilúvio as pessoas se ocuparam em limpar suas casas e fofocar sobre a chuva.

- Nunca mais havia chovido assim no mês de Santana.
- Pois num é mulher!
- Será que foi a mão de Deus?
- Deve ter sido, né.
- Será que morreu alguém?
- Que nada, se tivesse morrido a gente já sabia. Aqui as notícias correm rápido.
- Molhou a minha casa toda.
- A minha também.

A cidade voltou ao normal. Todo mundo foi fazer alguma coisa. O despacho a chuva o levou e até hoje não se sabe quem o fez. Será?

- Vasconcelos!
- Sim, mulher, estou no quintal!
- De novo homem, no quintal?
- Mulher deixa de besteira e traz o pinico que voltei a ficar ruim...

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

DIZER...

Dizer...
Como dizer o que intento se o busco por um momento com as mãos fracas que nem sustentam as miligramas de um cabelo caído acolá, ali, em algum lugar. Como dizer certo se a certeza é como uma mocinha tomando banho de sol. A velhice, a decrepitude, a diferença daquilo e da crença é que me diz com mais ou menos verdade alguma coisa digna de atenção.
Às vezes, as mãos lânguidas são tão fortes quanto a correnteza de um rio, mas, tem momentos, que o dizer é sofrimento, é uma falta evidente de sentido, é somente dor, ou um calado gemido.
Como dizer o que intento se o busco por um momento e não encontro você em lugar algum. Você está aqui, mas não te vejo, meus olhos cegos enxergam apenas o que eu quero ver. Como te ver se não há o que dizer pra você, somos, por vezes, um monólogo discreto. Somos um sem-palavras, apenas um silencioso egoísta que perdeu a vista.
Ontem e hoje, as pessoas se abraçaram, e o mundo rodou e todos foram com ele. Não se sabe onde, nem se sabe como, nem se sabe nada, apenas dizemos porque dizemos, nos encontramos sempre dizendo de tudo.
No sertão o burro fala, e a égua responde ou a ordem inversa sem medo, com calma ou, até, com pressa. A natureza imaginou no encéfalo nordestino e de repente, o massapê encontrou tino. Depois disso, o bichinhos pularam pelos campos.
Essa criatura berrou nos pastos e declamou uma poesia. Ali estava você meu amor. Ali, meu estômago se aquietou; toda acidez se amiudou e o silêncio ganhou forma de texto. As palavras foram mais que semântica. Na verdade, elas se tornaram nervos, e carne, e suor, e lágrima, e gozo, e você.
O que dizer do fruto que cai, da ponte que também cai, do avião que se perdeu no mar, ou de ti Maria Almeida, amiga eterna, ou de ti Raimundo, amigo eterno, ou do ônibus que passou, do guarda-chuva que eu não trouxe, ou do beijo que eu quis te dar e tive vergonha?
Às vezes, podemos dizer tudo. Outras vezes, nada, ou quase nada, ou a metade de alguma coisa. As pessoas ficam bem aquém do que as palavras podem contar. As pessoas são feitas de palavras. Fora isso, a fisiologia das tripas explica os fatos. Não há dúvidas, eu e você somos sintaxe e morfologia. Somos dicionários, universitários, e meninos e meninas de papel.
Mas, eu digo. Tudo que eu digo alguém disse antes de mim e está dizendo agora mesmo em algum lugar. Portanto, não há nada novo no dizer ou no que digo. A novidade não é a idade, nem a oralidade, nem a identidade, mas, o sentido que pede abrigo nas cavernas d’alma que nos acalma ou nos assusta, ou atormenta, ou acalenta, ou mata.
Mas, eu digo, pois sou um viciado em dizer mesmo sem nada saber sobre quase nada. Nestes sertões, quando a jurema floresce a caatinga agradece a fragrância que perfuma o ar quente. Tudo diz, tudo estala. Até o chão rachado, o barro duro, as pedras da beira da estrada, tudo fala, tudo é gente. Mas, eu digo que o dizer afirma o ser e o nega num segundo momento. Mas, eu digo que o dizer é uma mentira, uma verdade, uma possibilidade, um jogo, um sopro, um suspiro. Mas, eu digo que o dizer afirma o tu, você. E tanto um quanto o outro destilam o mesmo mel. Mas como dizer o que intento se não o sei dizer? Mas, como dizer se não me fio no que falo ou ouço? Não sei, eu digo.

sábado, 4 de agosto de 2018

MOÇA BONITA

MOÇA BONITA.

Sentir o mundo é coisa de gente. É conversa da gente. É mente, é coração; ás vezes, uma mera trapaça de um espertinho que, simplesmente, passa por aqui como todo mundo.
Sentir o mundo é olhar para dentro de si e vermos que do lado de cá não tem janelas, nem portas, nem brechas. É a verdade das tripas – nossas amigas ou inimigas, tuas velhas companheiras de antigas cantigas e intrigas.
A moldura do retrato do mundo foi feita pelo artesão mais velho da terra. O mundo este ente criado, este retrato batido, esta coisa de homem, este palco sagrado de atores mundanos nunca é o mesmo depois que o sol nasce. Tem um novo mundo a cada dia não importa nossa agonia, pois a imaginação da cabeça que esmaga o crânio de quem pensa é a mesma que concebe uma formula de salvação. Então, sentir o mundo é sentir o teu perfume. É, também, beijar tua boca, e ainda ouvir tua voz roca de tanto dar aulas, ou ver teu olho caolho ao amanhecer.
Sentir o mundo é degustar a boa comida, é ter certeza que existe uma despedida – esta cruel inimiga, é saber viver a vida seja ela boa ou sofrida.
Dizem que o mundo está ali. Dizem, também, que você está aqui. Nós e o mundo não temos lugar. Aqui, neste chão, terra de Adão andamos de mãos suadas. Este é o torrão cheio de encruzilhadas, de sertões e veredas, de moças alegres e tristes raparigas. Nossa herança é uma eterna caminhada, pois, cá não há lugar, ou lar, ou paradas.
E eu e tu, e tu e eu, e essa humanidade perdida, ou salva, ou redimida, amaldiçoada, ou abençoada; esta face alegre ou decepcionada, ou aquela senhora de nariz arrebitado a reclamar do negrinho no assento ao lado, ou a madre cheia de virtudes a derramar suas lágrimas sobre seu rosário somos a cara do mundo.
Sentir o mundo é ouvir o vento; seu assobio quieto, seu vendaval insatisfeito. Não é o vento que sopra o mundo, nem o mundo sopra o vento, os dois dançam nos quatro cantos da terra as melodias das noites, manhãs, madrugadas; das horas alegres, dos dias de porfias, dos olhos arregalados e dentes cerrados, no crepúsculo, no fim da tarde, de céu cor de gema com suco de laranja.
Sentir o mundo é sentir o ar que traz teu cheiro, teu carinho companheiro, teu sorriso faceiro, tua mão amiga, teu afeto verdadeiro.
Mas, na calçada do vizinho tem um buraco, e o buraco é fundo, é do tamanho do mundo. Nele, por vezes, sucumbem os sonhos meus e teus. Nele estamos unidos de mãos dadas, nele se cruzam destinos com ou sem tinos, ou encruzilhadas velhas com as novas, pois toda calçada tem provas, tem testemunha, tem pedra, ou calçada simplesmente.
Sentir o mundo é olhar-se no espelho e mirar a eternidade, a essência de algo sem delimitada identidade. Sentir o mundo é ver no vidro espelhado tantas faces possíveis num fração de segundo. É um delírio, um sonho conjunto de muitos, uma realidade tão dura quanto pedra, um vapor que aquece o tempo e me traz você moça bonita que encanta meu canto enquanto também passo...


sexta-feira, 11 de maio de 2018

ZÉ DE JESUS E A JUMENTA FALANTE

Diz a Bíblia, e ela não mente que num passado bem distante o bicho falou com um profeta atordoado chamado Balaão. Pois, meus amigos, meu espírito andou pela Vila de Campos em busca de um Fiel. Sim, senhor; é muito fácil dizer-se crente; estar bem bonito ou bonita na igreja; barbinha feita, ou o cabelo passado na chapa. Vi com meus dois olhos que, embora míopes, pude enxergar muita coisa braba nesses sertões no meio do povo conhecido como “O povo de Deus”. Era 1987. A Velha Vila de Campos fervia de gente de todo canto. Parecia que, aqui, era o lugar de encontro de gentes de várias partes do sertão. Eu era um modesto contador de histórias. Minha pessoa estava sentada num bar na Avenida João Alves quando chegou um senhor de cabeça branca, barba branca, e pele branca, e se sentou à minha mesa; o homem me olhou nos olhos e me disse: “Contador de histórias, conte sobre o fiel e a jumenta que falou”. Puxei a cadeira pra trás e disse ao moço: “Se de um Fiel a Deus já é difícil contar quanto mais uma jumenta falar”. O moço coçou o coro rosado da testa e me disse olhando em meus olhos sem piscar um instante: “Então durma que eu te falo”.

No alto da boiadeira nasceu um menino que lá se criou até o final dos anos 60. Um dia de sol quente uma jaracuçu picou seu pai. Este era um homem bom que temia a Deus e respeitava a todos. Sua mulher, dona Virginia depois da morte de seu velho definhou; três anos depois, a mulher desceu a cova e se juntou ao seu marido. O único filho do casal foi morar na casa de dona Austera, uma senhora muito católica; uma mulher de que ninguém podia dizer nada de errado.
- Zé Jesus, hoje chega teu carro de frete pra você trabalhar na feira e na frente do supermercado, assim você vai ganhar uns trocados para ter suas coisas. Zé passou as mãos nos olhos azuis arredondados, depois pôs uma mão no bolso; olhou para tia e disse.
- Graças a Deus, agora vou poder comprar minhas coisinhas. E foi isso; Zé começou com um carro de frete, depois, pôs uma barraquinha de lanches, e mais na frente, já nos anos 80, o homem era dono de uma lanchonete bem no meio da feira. Zé ganhava para si, e para ajudar sua tia que na época era uma mulher idosa precisada de cuidados. Zé tinha três casas de aluguel, dois chãos, e um chevette 81 modelo sedan. Mas o homem tinha um ponto fraco. O maldito jogo. Zé apostava em tudo e jogava baralho nas sextas feiras numa casa no final da Getúlio Vargas. Certa noite, o jogo foi até tarde, Zé ganhava e com isso se atreveu a uma jogada de mestre: “Aposto tudo nessa mão”. “Mas, Zé, se acalme, vá para casa, você num já tem seu dinheiro?” Disse um amigo anão, natural de Itabaianinha. Zé insistiu e perdeu tudo. Não se satisfez com a derrota e apostou as casas; Zé perdeu todas; o moço tornou-se compulsivo e decidiu apostar chevettinho; o perdeu também. Assim, Zé perdeu tudo numa mesa de jogo, e foi morar no beco do matadouro antigo, numa casa alugada por um amigo. O tempo passou e Zé perdeu o amigo. O homem dormiu e amanheceu morto. Diz o povo que foi o vento. “E agora, Zé Jesus?” perguntou a si mesmo o homem da boiadeira. Zé virou morador de rua. Todos os dias, como alma penada, o homem andava pela cidade pedindo uns trocados que ele dividia entre a comida e a pinga que não podia faltar.
- Isso é vida de gente disse uma voz no antigo Parque dos Missionários.
- Mas quem fala comigo? Perguntou Zé com a voz etílica.
- Rapaz, você um homem descente cuja família ninguém se diz um agravo, nessa vida?
- Oh, seu filho da peste, vá cuidar de sua vida!
- Então, tá bom! Eu vou. Zé ouviu o barulho de casco de bicho pisando no chão.
- Pare aí moço!
- O animal parou.
- Oxente onde está o homem?
- Que homem; fui eu que falei contigo. Zé andou uns metros tropegamente e com dificuldade apanhou um pedra e a tangeu na jumenta. “To ficando doido, nunca vi jumenta falar!” Ali, mesmo ele arriou e adormeceu.

Nas segundas feiras, era costume de Zé ir à feira da Coruja para esmolar. Mas, aquele seria um dia muito especial para ele. Estava na feira o pregador Agenor. Agenor dos Santos anunciava o retorno do Cristo e ao fazer isso, ele citou a seguinte passagem: “Se Deus falou bela boca de uma jumenta quanto mais ele fará por ti”. “Opa!” Pensou Zé Jesus. “O bicho era uma jumenta sem ninguém montado, então, uma jumenta falou comigo!” “Terá sido Deus?” Concluiu o raciocínio o jogador de cartas Zé Jesus. Agenor continuava sua pregação com muita sinceridade na caixa do peito: “Se hoje ouvirdes a sua voz, e Nele Credes; Serás salvo”. Zé Jesus saiu do meio do povo tropeçando por causa da cachaça; e foi tombando e caiu aos pés do pregador que prontamente disse-lhe: “Você quer aceitar Jesus?” Zé respondeu: “Aceitxo, sim senhor!” Desse dia em diante Zé Jesus virou crente.

O irmão Zé melhorou a leitura, aprendeu a escrever de tudo e de vez em quando pregava numa congregação perto do lugarejo Curtume. Zé, agora, era um homem respeitado novamente. Nunca mais jogou, ou bebeu cachaça, nem raparigou, nem roubou porco ou galinha de sua vizinhança. Quando passava com seu terno cor de abóbora, o povo das calçadas dizia: “Olha lá, olha!” “Aprontou e agora é santo!” Mas Zé não olhava para os lados como ensina o salmo sagrado, nem perdia seu tempo com as coisas desse mundo. Sua vida era a vida de um fiel de Deus. Mas, nesse mundo onde o cão anda solto, as coisas nem sempre permanecem em paz. O chifrudo resolveu tentar Zé Jesus.
- Zé; vou deixar a igreja! Disse Agenor com muita tristeza.
- Mas, por que meu irmão?
- O Pastor não me dar oportunidade nem reconhece meu trabalho na feira. Ele comentou que sou um pirado.
- Pirado! O sangue de Jesus tem poder! A saída de Agenor muito entristeceu o irmão Zé. Por causa disso ele foi ao Missionário orar. “Mas, meu Deus como pode uma coisa dessas, uma pessoa como Agenor sem o direito de prega a Palavra!” O vento assobiava nos pés de eucaliptos, os patos nadavam mansamente na lagoa do Missionário. Não havia ninguém lá, exceto, o pobre Zé. De repente, Zé entorpecido pelo clima bucólico do lugar ouve um rinchado de jumento. “Oxente, será o bicho que veio falar comigo?”
- Zé; traíram o mestre, mas, mesmo assim ele não fugiu de seu intento.
- Mas, dona jumenta, eu me converti por meio de Agenor; sem ele eu vou sair de lá. Com as palavras da jumenta profeta, Zé se conformou e continuou sua vida com Deus e ganhava muitas pessoas para Ele. Na loca que ficava na raiz de pau de um juazeiro, na margem do Rio Jabiberi uma cobra mostrava a língua ao tempo; a bicha estava faminta.

Zé se conformou com a saída de Agenor. Sua igreja cresceu e entraram muitos jovens, entre eles umas moças que vieram do mundo das drogas. “A gente vai ter que receber esse pessoal com uma estratégia inovadora”. Disse o pastor Felisbelo. A igreja pôs uma banda de Rock Gospel. O povo nem sabia o que era isso. A confusão tomou conta da igreja.
- Pastor isso é coisa do mundo! Disse o diácono Peixoto - aquele que sentava à porta da igreja e fingia estar lendo a Bíblia para dar suas cochiladas.
- Eu li num livro evangélico que Rock é do satanás. Disse a irmã chefe de oração. Raimunda nunca usou calça comprida; sua roupa era sempre um vestido folgado em cima e bem apertado nos quadris. Minha humilde pessoa, por vezes, pensou que o vestido de Raimunda se rasgaria quando ela se sentasse no banco da igreja.
- Olhe pastor, não devemos imitar o mundo! Falou com tom grave o evangelista Luís – um ex – gay que cuidava do grupo de adolescentes “Jovens transformados”. O pastor Felisbelo ficou muito irritado com a reação da igreja, contudo, o amor pelas as almas, o fez continuar seu projeto. Em sete meses, a igreja tinha sessenta jovens matriculados na classe de catecúmenos. Mas, o irmão Zé se entristeceu novamente com o que via e ouvia. Essa geração de crente não lia a Bíblia, e nem orava. De fato, eles queriam viver os mesmos costumes de antes. O que mudava era a forma. Zé foi orar na beira do Rio Jabiberi. “Senhor, eu estou vendo que está tudo mudando; meu Pai, o que está acontecendo?” A jumenta chega de mansinho e dá um susto em Zé.
- Oxente jumenta profeta! Tá me fazendo medo?
- Num é assim que chega o tentador? De pontinha de pé?
- É dona Jumenta. Estou muito triste com que estou vendo. Agora tem de tudo na casa de Deus, menos Ele. Se eu vier para beira do rio eu num vou puder falar com Ele.
- Meu filho, é sabido que seria assim, mas, o fiel persevera até o fim. A jumenta falou e saiu rinchando dando uns pinotes com as patas traseiras. “Oxente!” “O que houve com ela?” Zé olhou adiante e viu a loca da cobra.

A igreja cresceu e com seu crescimento veio o interesse dos políticos: “Felisbelo devia sair vereador pelo nosso partido, num é Dr. Frank? – o médico da família” “É, sim, senhor”. Felisbelo foi eleito vereador. A igreja virou alvo das antipatias e simpatias políticas do município. Com isso Zé tornou a orar a deus e disse: “Senhor, para o mundo eu num volto, mas, aqui, num fico, não!” Após a oração contrita em sua residência, O fiel pega no sono, e acorda no outro dia com um rinchado de uma jumenta à sua porta. “Com a paciência salvareis vossas almas”. O animal irracional roçou a testa no peito de Zé. Dona Sebastiana, crente de Sambaíba há muitos anos disse: “Zé tá de chamego com uma jumenta esquisita”. “Tá vendo, diz que ora; crente safado!” Sete dias se passaram, durante os mesmos, o povo de Tobias e de Sambaíba comentava o caso do chamego entre Zé e uma jumenta. Até que a caluniadora teve um engasgo com um osso de galinha e bateu as botas. Diz o povo que a língua dela estufou saindo da boca mais de um palmo. Zé suportou a calúnia jejuando todos os dias até 5 da tarde. No final dos mesmos a bendita jumenta veio novamente.
- Zé, disseram que o mestre foi caluniado e suportou tudo. Ele falava até com as putas. Sua pessoa está muito mimada.
- Mas dona jumenta está escrito que “longe de vós toda aparência do mal”. Acho que eu e sua pessoa num pode mais se ver não. A jumenta saiu triste e desceu para as bandas de Riachão. Passou um tempão até que Felisbelo teve um chamado do Senhor para ter um programa de radio: “Ministério Vencedores”. A igreja comprou, primeiramente, uma hora, depois, duas horas, depois, três horas. Quanto mais horas; mais o povo dava oferta e mais a igreja crescia, e mais Felisbelo ficava rico. A igreja cresceu tanto que os antigos crentes desapareceram no meio dos novos; estes trouxeram cada um seus terrores. “A irmã Carla está prenha do irmão Francisco!” “Rapaz, num acredito não!” “Hoje à noite no culto, olhe para o bucho dela!” De fato, a mulher estava escondendo seu pecado, mas, não teve jeito. Alguns irmãos saíram escandalizados da igreja: “Pregam uma coisa e a gente vê outra”. Zé tentou desfazer a coisa, contudo, o povo tinha a prova material da contradição. “Vou falar com a jumenta e ver o que ela tem a dizer”. Pensou o homem de Deus.
- Dona jumenta qual o motivo da contradição?
- Que contradição, Zé?
- Na pregação dizemos que as pessoas aceitem a Cristo, mas, uma ou duas num universo de centenas vivem mais ou menos alguma coisa.
- É por que as igrejas têm seu foco na quantidade. Veja que o Mestre só teve doze discípulos, e mesmo assim, perdeu um. Já pensou se ele tivesse cinquenta milhões?
- Então, dona jumenta eu vou deixar de ser crente!
- E você é crente?
- Eu pensei que você era cristão.
- É só um modo de dizer dona jumenta.
- Mas os modos de dizer refletem os modos ou os modelos da sociedade. Você está vendo a igreja como um crente, um membro de uma seita religiosa.
- Dona jumenta sabe muito! Zé se aproximou para passar a mão na testa do bicho. Em uma moita de macambira estavam três diáconos da igreja para flagrarem Zé no ato de adultério com um animal irracional, uma verdadeira abominação ao Senhor. No outro dia à noite, Zé foi chamado para uma reunião extraordinária de membros da igreja:
- Zé Jesus durante muito tempo foi um servo leal ao senhor. Pregou a Palavra e nada quis para si. De que o acusai vós.
- Flagramos o irmão alisando uma jumenta com a qual ele mantinha encontros regulares. O povo a uma só voz fizeram “Ohhhhhh!” Alguns diziam; “Isso é crente nada!”
- Zé Jesus, o que tens tu a dizer a teu favor? Zé pensou no texto de Pedro que diz que o Mestre ficou calado.
- Teu silêncio é tua condenação, no entanto, minha esposa teve, ontem, um sonho que Jesus entrava aqui montado num jumento. Eu lavo minhas mãos! Mas o povo dizia: “Expulse Zé da igreja!” Zé foi expulso da igreja acusado de ter coito com animal.
“Irmã, Zé orava tanto!”
“Num é mulher, como o diabo é sujo!”
“Mas, logo, uma jumenta!”
“Por que ele não procurou uma mulher!”
“Num foi!”
“Que coisa feia!”

Zé ficou triste; e envergonhado na cidade. Não se falava noutra coisa: “O crente que papou a jumenta” Muitos foram os meses que Zé comia raízes, e frutos silvestres. O homem virou um João Batista.
“Raimundo, Zé tá doido; ele fica nos pastos, lá em baixo, perto da barragem. Dizem que ele rincha, mas, sua namorada não aparece”. Por quarenta dias Zé se alimentou de raízes e mel de abelha. Aqui e ali ela encontrava frutos do campo. Zé orava a Deus e Deus não o respondia, nem a jumenta sabida aparecia. Zé, em desespero, na agonia de sua fé diz para si: “Tornarei a igreja e vou dizer tudo que vejo e penso”. Ao dizer assim, sopra o vento quente do sertão; as folhas secas são erguidas do chão pela força do mesmo. Numa terça feira à noite, Zé Jesus entra na igreja no horário da pregação.
“Hipócritas, arrependei-vos!” “Vixe, o homem tá doido mesmo!” Disse Cleo de Andrade. Uma mulher trajada de roupa bem sensual, que mostrava os contornos da calcinha disse respondendo ao profeta: “Vá se tratar rapaz!” “Vocês pregam o amor entanto, condenam uns aos outros; cada um só pensa em si; vossos pastores só pensam em ouro e prestígio”. Replicou Zé. Felisbelo chamou os diáconos Manfredo, 187cm e Segal, 191cm para acalmarem o irmão possesso. Tentaram expulsar o demônio de Zé pressionando-lhe a cabeça, e segurando-lhe os braços. Zé tentava reagir dizendo: “Eu sou lavado no sangue do Cordeiro”, Os diáconos diziam: “Sai dele satanás!” Quando subitamente ouve-se um rinchado dentro do santuário. Dona Euclides, mulher de Demétrio que era tio de Felisbelo gritou: “A rapariga dele acabou de entrar na casa de Deus!” Todos pararam, os diáconos soltaram Zé que estava exausto e machucado. A jumenta solta um pum e sai pinoteando dentro do santuário. O povo dizia: “Até a jumenta dele está com o cão nos couros!” Chamaram a polícia que veio como um raio. Ao ver o bicho solto na igreja, os policiais disseram: “Chamem os bombeiros, esse não é serviço nosso”. Chamaram os bombeiros que prontamente atendeu aos apelos de Felisbelo. Ao chegarem os bombeiros pediram o formulário do ibama. O pastor, então, disse: “Pelo amor de Deus, parem o bicho, pois, hoje Deus vai falar com a igreja”. “Sem formulário, não podemos fazer nada pastor, lamento”. Disse o tenete José de Arimatéia dos Santos. Um irmão novo convertido perde a paciência e saca um revolver calibre 38 que estava escondido em suas calças. Foi um tiro só; bem no meio da testa do bicho. Zé quando ver sua amiga de fé numa poça de sangue, ouve o bicho dizer: “Em tuas mãos eu entrego o meu espírito”. A jumenta morreu dentro da casa de Deus. O silencio era imenso, se caísse um simples alfinete, ele podia ser ouvido. Por um instante houve paz. Zé Jesus continuava abraçado com a jumenta morta e dava-lhe beijos na testa. As mulheres crentes, embora, emocionadas viram o carinho de Zé pelo animal. Três horas após a morte do animal algo muito estranho aconteceu. A jumenta vai lentamente se transformando em algo diferente. “Mulher, o que é isso?” “Num sei não!” “Rapaz, a jumenta está virando gente”. A jumenta virou um carpinteiro, em suas mãos estavam as chagas sagradas que perdoaram o mundo inteiro. O seu lado direito tinha uma ferida de lança e dela escorria sangue e água. Em sua cabeça uma coroa de espinhos, mas, em seus braços, sim, em seus braços estava Zé de Jesus que acabara de falecer de infarto pela tristeza de ver sua jumenta profeta morta.
Meu humilde espírito se despertou com o estalado dos foguetes na Avenida João Alves. Olhei em todas as direções e o homem que falava comigo havia sumido. Perguntei as horas. O dono do bar me respondeu que eram nove horas da noite. Paguei a conta e fui dar mais uma volta pela cidade. Fui ao cemitério. Não havia ninguém vigiando o lugar. Andei por suas ruas até que achei um túmulo onde estava escrito num pedra de mármore: “Sem profecia o povo se corrompe; descanse em paz irmão Zé de Jesus”.

FARIAS E A MOÇA

Minha pessoa acorda cedo todos os dias. Isso ocorre há tanto tempo que nem me lembro de quando começou. Às vezes me recordo de meu finado pai à porta do quarto me chamando: “Farias vá para a escola já passam das sete”. Seu Clovis foi um pai acima de qualquer crítica, e assim deve ter sido minha educação. A primeira comunhão, a crisma e outras ações religiosas, embora sob os cuidados de minha mãe Dona Tamísia da Barroca foram todas acompanhadas pelo velho Clóvis: “Tamísia esse menino foi para a catequese?” Dias bons aqueles, que Deus os tenha em um bom lugar.

Acordar cedo e ir para a repartição têm sido a rotina de meus dias nesses anos abençoados de 1998. Meu chefe, seu Antenor, um dia me disse: “Farias, é o trabalho que dignifica o homem”. Bem, eu não concordo muito não, pois, em nosso país, a classe trabalhadora nada tem. Mas deixa isso pra lá. Antenor é um sexagenário muito rigoroso, contudo, devo ter caído em sua graça. Nunca mais cheguei às sete e meia. Todo mundo reclama, mas, Antenor diz: “Deixa o homem quieto”.

Com a cumplicidade de Antenor, por vezes caminhei de manhã cedo na linda Aracaju ao desabrochar do dia. Parece que as pessoas estão melhor pela manhã. Todo mundo diz bom dia. Os sorrisos nos lábios são muitos. O calçadão da Rua da Frente fica cheio de pessoas com os cabelos pintados de preto. Elas vão e voltam como que esperassem um milagre. Lembro-me do dia que encontrei uma conterrânea de Campos. A mulher estava entrando nos setentas, no entanto, sua lucidez me deixou de boca bem aberta.

- Mas Dulce, quanto tempo!

- Quanto tempo o que? Farias tenha fé em Deus! Isso num se faz! A moça te espera até hoje!

- E ela me espera?

- Não, num espera não! Rapaz, que coisa feia!

- Ora, Dulce! São coisas da vida! Não dava para eu ficar com uma menina daquelas, né.

- Então não enchesse a cabeça dela de esperança! Farias, você foi sem vergonha! Tentei mudar o rumo da conversa, mas, a velha Dulce foi impiedosa. O caso é que há dez anos quando minha pessoa tinha cinquenta e quatro, conheci uma moça durante uma visita a Vila de Campos, a atual Tobias Barreto...

Era época de missões. Tinha gente de todo canto do imenso sertão entre Tobias e Poço Verde. A cidade, em determinadas horas parecia mais um formigueiro gigante. Todo mundo queria a benção de Nossa Senhora Imperatriz dos Campos. A praça defronte a igreja matriz estava tomada de gente. Lembro-me muito bem de uma anãzinha, natural de Itabaianinha. Dizem que lá tem a cidade dos anões. A moça queria ver a celebração, mas, o povo eufórico não deixava a mulher passar adiante. A coitada dizia: “Com licença, com licença” e nada do povo atender. Fiquei um pouco indignado com isso e acompanhei a pobre mulher até o cruzeiro dizendo-lhe: “Suba na base de pedra e você vai ver melhor”. A mulher fez isso. Quando seus olhos miúdos e azuis viram a nave do santuário, a mulher passou a exalar alegria por todos os poros de seu pequeno e frágil corpo. Ela ficou para trás e eu segui meu destino em meio ao povo. Andei pela festa toda até o sino da igreja bater avisando o fim da missa. Decidi passar novamente pela Praça da igreja para ver como as coisas estavam. O local estava vazio, o chão da praça feito de pedras portuguesas estava coberto de lixo, sacos de pipoca, guardanapos, canudinhos etc. Parecia que uma imensa boiada havia passado no local. No canto, defronte a pousada “Sol Dourado” avistei duas pessoas que conversavam baixinho, ora riam, ora cochichavam. Uma delas eu já conhecia, era a anãzinha, a outra era uma moça de seus trinta e cinco anos. A menina tinha uma aparência ibérica muito bem desenhada pelo criador. Olhos verdes claros, cabelos loiros, mas não muito loiros, um metro e setenta e dois, uma cintura brasileira bem definida, e pele branquinha mediterrânea como o sol da Grécia.

Meus olhos castanhos claros caíram de cheio sob a moça que me correspondia com sorrisos pelo canto da boca e olhares de gatinha mansa, aqueles que as atrizes de televisão fazem para mostrar ao público que a cena vai esquentar. A anãzinha ao ver-me diz: “Olha, Bela, meu salvador!” Na verdade, cá entre nós, minha pessoa, digo, eu mesmo, sou ateu. Mas, o salvador estava ali na hora certa para socorrer uma pobre anãzinha e agora recebia, quem sabe, do divino mestre uma recompensa: Bela!

- Eu sou Maria das Dores. Apresentou-se a pequena mulher.

- E essa é Bela, minha sobrinha. Continuou o pequeno ser. Cocei a garganta e disse meu nome com dúvidas se estava fazendo a coisa certa.

- E o meu é Farias. Após apresentados acompanhei as duas mulheres até o bar Secos e Molhados onde elas esperariam o ônibus para o Povoado Ilha.

- Quando é que você aparece lá, Farias? No sertão é assim, depois que se quebra o gelo, o sol aparece e esquenta as relações.

- Nesse final de semana. E foi assim durante uns dois meses. Com o tempo, eu passei a dormir na casa de Bela, com todo o respeito é claro.

As noites dormidas na casa de Bela e sua tia foram marcadas pelo misto de tensão e prazer. Primeiro, a anãzinha não me dava chances de realizar meu intento, secundo, quando Bela tocava em mim, eu me desmanchavam de prazer. Convenhamos um homem na minha idade viver um caso de amor com uma moça de trinta e cinco é, no mínimo, algo fora da regularidade. Os meses passavam, e minha pessoa fiel aos finais de semana na casa da anãzinha. Tudo que eu queria era uma chance de ficar sozinho com Bela.

- Farias e Bela venham cá!

- Pois não tia! Disse Bela como que soubesse o conteúdo da conversa.

- Vou passar esse final de semana em Campos. Vocês se comportem!

- Nos comportaremos tia, num é Farias?

- É. Não sei muito bem o que estava na minha cabeça, mas, no íntimo eu sabia que algo estava acontecendo.

- Num se preocupe, cuidarei de Bela como se fosse minha filha! A anãzinha entrou no ônibus e acenava com sua mãozinha para nós. No seu semblante estava um ar de “Deu a louca no mundo”. Tudo isso minha humilde pessoa viu, mas, não se importou!

Liguei a televisão para ver alguma novidade. Enquanto isso a jovem moça estava no banheiro a banhar-se. A televisão era aquele velho tédio de todas as manhãs e tardes dos finais de semana. Nada tinha de bom, exceto, os programas e shows tão batidos que todo mundo já sabia o que ia passar “Retrato da Vida”, “Roda da Esperança”. Eu sabia que meu alento àquele final de semana seria a jovem Bela. Eu precisava me sentir novo de novo. A menina saiu do banheiro enrolada numa toalha rosa. Passou pelo corredor onde pude ver sua silhueta: “Sensacional”. E finalmente, entrou em seu quarto, de onde ela me chamou: “Farias”.

- Farias, você pode ajudar?

- Claro, Bela!

- Passe esse hidratante em mim. Ela me estendeu a mão esquerda. Nela estava o pequeno frasco de hidratante. A pele da moça era macia como seda. Adorei cada centímetro umedecido pelo hidratante. Em certo ponto eu parei. Às vezes, é embaraçante um homem tocar numa mulher. Disse eu a mim mesmo: “Seria uma sensação indizível tocar nela toda, mas, devo manter mina compostura”. Com discrição a devolvi o creme. Ela o recebeu sem me dizer uma palavra, o silêncio entre nós dois falava muito. Seu peito, um pouco ofegante, clamava a mim que fazia de conta nada entender.

- Bela, vou ver se já acabou o show.

- Certo, meu cavalheiro! Essa palavra, por um instante, me causou arrependimento de não ter sido ousado. Fui novamente para a sala. Olhei para o relógio de parede; eram nove e trinta da manhã. Minha mente pensou na velocidade da luz: “Já” Passa rápido. Gritei para Bela perguntando-lhe a que horas sua tia voltaria. Bela disse com um tom sério: “Depois de meio dia”. Bela saiu do quarto e veio para junto de mim. A moça estava um tanto calada, mas, isso não lhe impediu de me fazer uma proposta maravilhosa: “Farias, vamos para o quintal deitar na rede!” Não sou cearense, todavia, depois que experimentei a rede da anãzinha me apaixonei.

Bela usava uma bermuda jeans e uma camiseta fina de algodão. Havia um pequeno desenho bem meio da mesma; era um pássaro beijando uma flor. Seu cabelo fino e bem cuidado estava preso, e o seu perfume me deixou um pouco tonto. Eu o sinto até hoje, parece que ele impregnou-se em mim. A camiseta de Bela seguia o curso dos movimentos de seu corpo franzino e esbelto. Ora, ela me dava a visão de seu umbigo bem talhado naquela tábua chamada barriga. A visão de um simples umbigo fazia meu coração cinquentão acelerar e o suor escorrer pelo pescoço como uma tênue cascata. Ora, era a pequena bermuda jeans que me permitia ver aquelas penas bem trabalhadas e que me inspiravam muitos desejos. Pensei comigo: “Aos cinquenta eu vivo um momento único!” “Mas, que mulher!” De fato, Bela era um bom exemplar da mulher sergipana.

A conversa fluía, porém, Bela nada me perguntava sobre meu passado. A jovem moça se concentrava apenas no momento presente. Para ser verdadeiro, até hoje não entendi o porquê dela se envolver com um homem bem mais velho como eu. A rede balançava e com ela ia o casal em descobertas e descobertas. Seus lábios eram doces como mel, e seu hálito aumentava em cem vezes minha libido. Parece que suas entranhas eram abençoadas. Mas, algo estava faltando: “Vê-la totalmente nua!”

O relógio da sala bateu onze e meia. O tempo passava e nós dois nem via. Bela se levantou da rede e foi preparar alguma coisa. Eu a acompanhei até a cozinha; ora ou outra eu lhe abraçava e lhe beijava. Nós dois preparamos a comida; comemos juntos, e depois voltamos para o quintal: “Bela não se preocupe, eu lavo os pratos”. Um homem quando quer impressionar uma mulher diz de tudo!

Ficamos na rede a conversar sem se preocupar mais com nada, para nós dois o tempo era aquele; juntos o tempo era nosso! Bela pegou no sono eu resolvi explorar seu corpo fazendo-lhe pequenas carícias. O sono da menina era tão profundo que descobri seu corpo em poucos minutos, minha mão ficava de vez em quando dormente tamanha era a força que eu fazia para torna-la leve como uma pluma. Agradeci a mãe natureza por conhecer aquele corpo divino. Lentamente tirei-lhe a camisa. O que é muito estranho é que não tive dificuldade para fazê-lo parecia até que a camisa sabia do próximo movimento. Depois abri os botões de sua bermuda, e lentamente fui vendo o que estava do lado de dentro: “Meu Deus!” Embora ateu, mas foi essa a palavra que eu disse. Bela era toda linda!

Tirei sua roupa toda, depois tirei a minha. Sentei-me na rede e puxei seu corpo adormecido até mim de forma que eu ficasse entre suas pernas. Aí, a coisa pegou, meu coração batia tão rápido que parecia que ia sair pela boca. A respiração da menina ficou de imediato ofegante; a pobre moça mordia os lábios o que me fazia ficar ainda mais vivo. Alguns gemidos saiam ritmados de sua boca. E isso aumentava a quantidade de gotas de suor no meu rosto. Nós dois estávamos banhados de suor! Fizemos a mesma coisa uma; duas vezes, até eu me cansar. Devo admitir, a velhice é uma parte bonita da vida humana, mas, nada se compara a força da juventude.

A anãzinha nos pegou nus na rede. Ambos adormecidos. A mulher me pôs para fora de casa. Desde então nunca mais a vi. Dona Dulce, a vizinha, depois ao encontrar-se comigo na feira me contou que a moça me esperava. Mas, eu achei que foi o bastante para nós dois.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

LUZ

LUZ
Entre eu e a escola onde trabalho existe uma estrada de barro e cascalho. No inverno, ela é lama café com leite, e no verão, pedra quente, coisa nervosa; coisa, por vezes, trevosa.
Longos anos no sertão, lugar de barro, lugar de pedra sedimentar, ou de rocha metamórfica. Lugar de estradas desertas, lugar sem lugar algum; só um campo, ali, onde os homens disputam o chão. Para quem chega, lugar de novidade, para quem já estar, lugar, mais uma vez, sem lugar algum.
Dizem que o sertão tem muito terreno, tem lugar para todo mundo. Dizem ser o sertão um lugar como o coração de mãe. Mas, as estradas do sertão não te levam muito longe mesmo que a tua viagem seja muito comprida. Pois, aqui, tem lama, tem o velho cascalho ou um jogo de baralho no bar de Zé Ramos por não ter o que fazer.
O sertão morre no verão e renasce no inverno e nos entrementes lutam as mentes pelo idoso e novo pão. Sim, isto faz todo sentido! É luz que brilha como a lua numa bela e barulhenta quadrilha de São João.
Mas, a escola, a criançada como carne assada ao sol no quintal de seu Domingos espera a condução que nunca chega, nunca atravessa o sertão. O cascalho, a lama velha, a mulher caduca que ao mastigar os próprios dentes insiste como uma demente em contar a mesma história de boi, e de cavaleiro, e de coronéis e de velhos parceiros.
A escola está lá e eu aqui. O sertão de Sergipe é terra de gado, é terra boa, e de gente boa, contudo, falta quase tudo. O gado, a gente, o esterco e o cascalho todo mundo tira pose para retrato de turista. Quem sabe sobre algum retalho de pano limpo para limpar o suor de teu rosto. Quem sabe quem passa diga diferente, ou que aqui, realmente, tem gente. Quem sabe se aparte o gado das pessoas e se retire o arame farpado que segura a consciência antiga sempre dentro do mesmo pasto. O quem sabe não é luz; é quimera bandida, é mulher perversa, é uma criança traquina. O quem sabe é um esquina escura onde tua mão nada segura, exceto, um pedaço de papel.
Luz! O sertão precisa de luz! A escola está bem ali; é só a condução chegar lá; é só o livro chegar, e com ele um bom pedaço de pão francês. Mas, o barro pisado, a lama amolecida, as rodas atoladas, as molas desgastadas, e os homens cansados de esperar nunca alcançam o que seus olhos não conseguem enxergar.
Eis que uma cobra rasgou o massapê até o outro pasto!





terça-feira, 1 de maio de 2018

EU NEM SEI ONDE.

EU NEM SEI ONDE
Parece que dizemos de nós mesmos o que não sabemos. É como sair de casa e não sabermos se voltamos ou não. As incertezas povoam nossas mentes assim como as estradas estão cheias de gente. Parece que ir a algum lugar é um deslocamento de massa na matéria que também é massa. Parece que a massa age sobre si mesma; as duas coisas se tornam uma no cenário exposto nas coordenadas do tempo. O tempo que eu não sei ao certo.
Parece que não sou sendo eu mesmo alguma coisa ou alguma inteligência no meio de tudo isso que eu quase nada sei dizer. Na verdade, as minhas verdades são, apenas, hipóteses que eu ouvi alguém dizer em algum lugar. Contudo, eu digo, orgulhosamente, que eu sou o dono de meu destino e de minhas escolhas. Na verdade, sem dúvidas alguma, eu sou, eu sou rei.

Agora, eu digo, a manhã eu me calo e depois de a amanhã eu digo, novamente, as mesmas coisas que eu sempre digo pois sou um viciado nas palavras. Eu estou, definitivamente, certo em tudo que eu digo, contudo, no íntimo, eu não tenho certezas de nada.
Mas, ela me cala e me silencia. Mas, ela me encanta, me seduz; e faz-me dizer o que eu nunca disse ou o que eu acho ter nunca dito, desde que as palavras vistam as emoções da alma que se inclina para ti como menina apaixonada. Eu sou um fogo que arde num pira desconhecida
Mas, você é muito mais que carne, muito mais que prazer. Você me faz ver o meu tamanho tão pequeno diante de tanta coisa muito maior do que eu. Sim, essa chama que clama o teu sorriso ou teu abraço, esse laço mais forte que o aço me levam sem embaraço a teus braços seguindo o ritmo do meu coração.

Então, agora, eu grito: Amo-te! Tu me fizestes ver o que eu não sou com a toda a tua doçura. Agora vejo que na terra tem candura. Agora acredito no que sinto e me lanço ao mar como nau segura. Sim, segura de que eu encontrei a face que traz sem algum disfarce a verdade do peito que se aquieta com teu hálito ou, simplesmente, um beijo.

Parece que somos ou estamos sendo. Parece que a individualidade é uma forma de vaidade. Parece que todas as minhas afirmações são questões que faço no silencio calado de meu solitário quarto.

Mas, tu ocupas o meu espaço. Sim, tu és o meu poema, ou, minha trama na estrada até que eu encontre o que eu nem sei se busco. Dizem que busco viver, mas nem sei o que é isso. Sou um iletrado, um espantalho na urbes agitada. Para ser honesto, eu só quero viver.
Mas, tu alteras o compasso de meus passos e o modelo que me inspira se dilui na vastidão dos campos cheios de vagalumes solitários sem luz ou voo. Eu me derreto como graxa velha que nem lubrifica mais. Sou tão solúvel ou volátil como as coisas da terra. Sou uma quimera consciente de meu sonhos e que é este o estado puro de todas as formas que habitam a terra.

Todavia, eu sei que morro. Todavia, eu sei de meu dia ou de minha hora. Todavia, não existe razão que explique tantas questões que faço sobre mim mesmo. Mas, sossego no teu colo. Mas, sossego no teu aposento repleto de retratos de finais de semanas e aniversários. Todavia, a única via possível é continuar vivendo mesmo sem nada saber sobre mais ou menos nada. Portanto, a verdade máxima é você.

É você que me faz ver além da forma. É você que me deforma e me faz entender que esta é a maior ilusão de todas as criaturas do mundo. A metáfora dos minutos, ou o soluço do silêncio, ou a ordem das ruas, ou a fé da comunidade, ou os monumentos das praças são tudo como traças que comem o bom senso. Sim, o meu bom senso! Aquele que guardo dentro de mim e ajuda a ver a diferença na aparência de tudo que se apresenta pra mim. Mas, ele é só meu!

Mas, aqui dentro, e nem sei onde é, eu digo – esse mundo é só meu!
Mas, aqui, nem sei se é dentro mesmo, você é só minha, moça linda, de rosto raro, e olhos de água doce.
Mas, eu continuo duvidando. Crendo, me calando, e falando, ou dizendo o que penso ser. Desde que você não saia de perto; desde que você coma churrasco comigo nos finais de semana. Desde que você seja bacana e me trate como rei. Desde que você seja honesta ao que sentes e ande comigo até ali. Desde que você esteja, aqui, mesmo que eu nem saiba onde...