domingo, 30 de outubro de 2016

ZÉ MARIA E LAMPIÃO

A vida nos traz muitas surpresas. Jorgeval era um professor da rede pública de Sergipe. Ele trabalhava no interior fazia tempo. Conhecia os sertões da fronteira de Tobias Barreto e Poço Verde como a palma de sua mão. Depois da chuva, a terra seca, e com ela vai a esperança de muita gente. No passado a coisa era bem pior. Esses sertões de caatingas e pedras grandes ainda nos contam um pouco da lida do homem que morreu em Angico, o Lampião.

Jorgeval vinha de uma escola do interior para a sede do município de Tobias. Ao seu lado, sentado, vinha um homem idoso e bem conservado beirando os 90. Com o balanço do carro Jorgeval desperta, e escuta, sem intenção, uma prosa entre o velho Cocada e um rapaz chamado de “Cosminho do jogo do bicho”. Este fazia banca na Rua Itabaianinha todos os dias, desde que sua amada mãe faleceu vítima da dengue.
- Cosminho põe um real na cabeça! Vai dar cobra! Ontem sonhei com uma jibóia que saía da Lagoa da Porta.
- Seja feito conforme sua vontade! Anotou Cosminho com dificuldade devido o balanço do carro.
- Rapaz, vocês moços de hoje vivem na moleza. Viajam para todo lugar na mordomia. Não sabem o que é poeira na cara ou o que significa andar pelas estradas desse sertão.
- Cocada como era na sua época? Perguntou curioso Cosminho.

Cocada meteu o dedo nas narinas e tirou uma meleca colocando-a no assento estofado do carro. Ajeitou-se no banco, e depois de apalpar suas genitálias, o velho tira o chapéu, mostrando a testa rosada para cosminho.

- Na minha época a coisa era muito difícil; o sofrimento era grande.
- Como assim Seu Cocada, eu não entendo?
- Vou te contar uma estória.
“Houve uma época em que Seu Virgulino passava pelo Povoado do Peba. Esse era o nome do atual povoado Monte Coelhos. Lampião tomava umas com seus cangaceiros na mercearia que ficava na esquina da praça onde está a entrada da estrada que vai para a Lagoa do Soares. O estabelecimento pertencia a Seu João. Era uma segunda feira. O povoado estava quase deserto quando as tropas de Lampião entraram no Peba.

O velho Cocada ficou com o olhar distante com o rosto voltado para a paisagem seca cheia de macambiras e juremas de todo tipo. Seus pensamentos voltaram ao passado de sua mocidade.
- Chega minha fia! Passa para dentro!
- O que foi mãe? Disse a moça Telma assustada.
- É Lampião minha fia que chegou!
- Lampião? Quem é Lampião?
- O cangaceiro minha fia.

A menina entrou em casa e correu para a janela para gretar por entre as brechas. Lampião entrava no Povoado Peba com seus homens. Eles formavam uma tropa de quarenta e cinco cangaceiros, todos armados de espingardas e facões. Não dava muito para ver porque a luz era fraca. Os lampiões de querosene não tinham tanto brilho como o cangaceiro.

- Mãe!
- Sim!
- Qual deles é o lampião?

A mãe de Telma olhou por um instante acompanhando a tropa, mas não o reconheceu. Lampião acampou três dias nos arredores do Peba na baixada entre a Rainha dos Anjos e o povoado. A água da terra era muito boa, mineral de natureza, atraía muitos viajantes, entre eles estava o famoso Zé Maria.

- Zé Maria! Que bom que você chegou! Sabe quem está na baixada?
- Não.
- É Lampião. Todo mundo está com medo, sei lá, eles podem fazer um malfeito.
- É Nestor, você tem razão. Chame por Deus, homem! Ele pode nos ajudar.

No outro dia de manhã cedo, Bartimeu, um cangaceiro de Lampião foi ao povoado pegar mantimentos para a tropa: farinha, feijão, fumo, carne seca, e outras coisas. Com ele estavam outros três homens, todos armados.

- Bom dia!
- Bom dia, moço. Respondeu Zé Maria. O herói do Peba tomava a frente quando o assunto era problema.
- Viemos buscar provisão para o patrão. Disse Bartimeu com voz decidida.
- Que patrão? Perguntou Zé Maria.
- Rapaz, não seja besta! Vá chamar o dono da venda!
- O dono sou eu. Continuou Zé Maria mentindo para o cangaceiro.
- Então, moço, encha o saco de feijão, farinha, fumo de rolo, e toda a cachaça que você tiver!
- Como? Sem cachaça nós não ficamos! Reclamou o corajoso Zé Maria.
- Seu atrevido. Respondeu Bartimeu. Bartimeu não era um homem violento, embora fosse cangaceiro, tinha o moço profunda devoção pelo Padre Cícero do Juazeiro.
- Salve meu Padin do Juazeiro, vou derrubar um louco da vida! Após sua breve e fervorosa prece, o cangaceiro abaixa o fogo e tira a mão do gatilho da espingarda.

- Tá bom, moço, ponha o que tiver.

Zé Maria pôs feijão, um saco, farinha outro saco, dois rolos de fumo, e cinco garrafas de pinga serrana.

- Só isso?
- É o que temos moço.
- Que o padin te dê em dobro!

Quando algum povoado atendia bem o coronel e seus homens, eles davam proteção à comunidade. Mas, lampião não aceitava desfeita. Eram oito horas da noite de terça feira quando lampião e seu bando chegam à porta da capela onde estava sendo rezada uma missa. Os tiros estalavam aturdindo a todos. Homens, mulheres e crianças saíram em uma correria medonha. O corajoso Zé Maria foi ter com o cangaceiro.

- Meu caro Virgulino! É assim que um homem de grande coragem e bravura ameaça a capela de Maria?
- Não seu moço. Minha pessoa não veio desafiar as forças da Santa, venho em busca de Zé Maria que me fez um agravo.
- Zé Maria disse: “Sou eu”.

Sob os gritos do povo apavorado lampião leva Zé Maria amarrado pelas duas mãos até a baixada. No acampamento deixaram o homem preso e foram ver o que fazer com o coitado. O seqüestro de Zé Maria abalou não só o Peba, mas, toda a Vila de Campos. O quartel que ficava na Sete de Junho foi acionado e tropas a cavalo foram no encalço do cangaceiro. Telma, no povoado Peba, acendia velas a Santa Maria para livrar a pobre alma de Zé Maria.

- Será que Zé Maria sai dessa? Perguntou o cabo Freitas ao soldado Chico.
- Acho que não. Eu estou indo com a tropa para não descumprir as ordens, mas, não vou trocar tiro com Lampião, não, tá doido!

Naquela época ninguém ousava desafiar o grande cangaceiro do sertão. Sendo assim, o futuro de Zé Maria era incerto. Então o peba inteiro se uniu para rezar pelo corajoso Zé Maria. Havia uma rezadeira no povoado que via o futuro na borra de café. Na visão da mulher, Zé Maria seria esfaqueado. A notícia correu o povoado apavorando ainda mais as pessoas. Na manhã do dia seguinte, os sete maiores cangaceiros de lampião e o próprio formaram um tribunal sob os olhos dos outros homens para julgarem o agravo de Zé Maria.

- Quer dizer que seu nome é Zé Maria! Um homem macho com nome de mulher! Disse seu Virgulino.
- Não de mulher. De uma Santa.
- Mas, você não é santo seu atrevido. Continuou lampião.
- Sua pessoa acha certo maltratar essas pessoas?
- Deixa de ser insolente! Eu não machuco gente inocente! Agora sua pessoa vai pagar o agravo que me fez. Lampião saiu e desfez o conselho. A decisão foi amarrar um peso de trinta quilos ao pé do homem, e soltá-lo na mata, depois da estrada que vai para Olindina na Bahia. Fizeram a bola de ferro e a prenderam ao moço. Depois um cangaceiro que atende pelo nome de Junco vazou os olhos do rapaz. Nas matas de macambira com os olhos vazados, soltaram o homem preso à 30 kg de ferro. O coitado morreria em poucos dias.
“Foi uma decisão acertada, patrão. Servirá de exemplo para todos que desejarem enfrentar a força do cangaço”. Disse Corisco segurando seu punhal na mão.
A ferida dos olhos doía mais que o peso amarrado a seus pés. As correntes fizeram feridas em torno do tornozelo direito de Zé Maria, que andava mancando pelo mato entre Itapicurú e Olindina. As horas passaram e se transformaram em dias. Faminto e com fome, andando em círculos, Zé Maria se senta no chão numa fria noite e pede a morte como alívio.

- Mãe! Sonhei com Zé Maria.
- Foi minha fia?
- E como foi?
- Ele estava vindo para a casa. Dois homens o segurava, pois, ele estava muito ferido.
- Que bom minha menina! Que Nossa Senhora o proteja!

A volante formada pelos soldados da Vila de Campos não alcançaram a tropa do cangaceiro que desaparecera como fumaça. E não sabiam do paradeiro de Zé Maria. Buscas foram feitas, mas, nada de acharem o corpo ou evidências de seu estado.
Amanhece o dia. Os pássaros cantam alegremente na mata fechada do Norteste da Bahia. Dentro dela, um pobre herói sergipano, filho legítimo da Vila de Campos, padece de fome e de infecções por todo o seu frágil corpo. Por acaso o homem ouve barulho de água corrente. Por intuição percebe que há um riacho por ali. Tenta selevantar, contudo, é inútil. O rapaz se arrasta com dificuldade até ouvir mais forte o barulho das águas. A sede era grande, a dor nos olhos maior ainda. Zé Maria bebe água com cuidado, lava suas feridas. Ele sabia que não tinha muito tempo, suas forças estavam indo embora. O barulho das asas dos urubus que voavam pelo local era um mau presságio. A morte estava chegando. Deitado à beira do riacho, Zé Maria invoca a Santa dos sertanejos:

“Salve minha mãe! Ave Maria!
Sou pobre pecador preso ao ferro do cangaço.
Não tenho muita virtude e mal sei escrever meu nome.
Não fiz muita bondade, mas, também não fiz muita maldade.
Rogo-lhe seu socorro, se for de sua vontade.
Não me deixe morrer sem ser enterrado!”

A prece lhe tirou mais energia fazendo-lhe cair inconsciente.

- Telma! O que foi?
- Num sei mãe. Sinto uma dor no peito muito forte.
- Acho que deve ser coisa de moça que está virando mulher. Disse sua mãe.

Em pouco tempo, o povoado não lembrava mais de Zé Maria nem de Lampião. Todas as segundas as pessoas desciam a feira de Tobias para fazer seus negócios. É assim a vida, quem vai, foi; quem foi não está mais aqui. E o resto, todos nós sabemos”.

- Mas, Seu Cocada; e Zé Maria, morreu? O velho sertanejo marejou os olhos de lágrimas e tremeu os beiços.
“A lua estava alta no céu quando Zé Maria despertou de seu passamento. O vento frio do sertão não mais o incomodava. Ele olhou para os lados e viu que via. Pegou em sua perna e não havia peso preso. Ao seu lado, estava uma figura de uma sereia que havia saído do riacho. Ela era toda dourada. A luz da lua fazia o dourado ficar mais brilhoso. Ela estava deitada à beira do riacho. De sua boca saía um cântico lindo, lágrimas caíram de seus olhos. O rapaz via tudo atônito, sem nada entender. A mulher sereia, calmamente, desce às águas formando um redemoinho; dele pululavam peixes muitos. Alguns caíram no colo de Zé Maria. “Zé, mate e coma!”
- Quem fala comigo?
- Sou eu. Você não percebe a fumaça do cachimbo?
- Sim, tem cheiro de alfazema.
- Volte ao Peba!
- Para que meu veio, aqui, tá tão bom!
- Telma espera por você.

A viajem de volta foi muito rápida. A estrada estava boa e o rapaz com novos olhos conhecia aqueles caminhos como a palma de sua mão. Numa manhã de sábado, Zé Maria chega ao Povoado Peba e é recebido como um herói. Telma vem ao seu encontro trazendo em suas mãos um prato cheio de cocadas que ela mesma fizera. As pessoas deram risadas. Daquele dia em diante, Zé Maria, se tornou em Seu Cocada. Um homem que nunca mais enfrentou Lampião, entretanto, ninguém daquele lugar conheceu rezador mais poderoso e amoroso como ele. Vinham pessoas de todos os lugares falarem com Cocada. A luz de sua vela e a fumaça de seu cachimbo ficaram conhecidos por toda a antiga Vila de Campos”.

Os passageiros do ônibus se calaram. O veículo passa por um riacho de águas cristalinas perto da entrada da Rainha dos Anjos. Ouve-se um assobio vindo de lá. E logo depois o barulho de água corrente. Cocada põe o chapéu de volta a sua cabeça branca, baixa a mesma, e agradece a Deus por tudo. Ninguém quis perguntar nada. A viagem prossegue tranqüila; cada um desce em seu ponto; cada um com seu destino...
Jorgeval desceu em Tobias Barreto. E de lá foi para Aracajú.

LEMBRANÇAS DA FRANCISCO HOLANDA

Por Roosevelt Vieira Leite

A Rua Francisco Holanda sempre ficará nas minhas lembranças. Lembranças de uma criança que viveu o bom da vida sem temê-la. A palavra medo não estava em seu dicionário nos idos anos 60. Recordo-me de um menino que pegava a areia marrom nas mãos e a apertava para sentir a sensação gostosa de terra quente ao meio dia e fria pela tardinha. Havia no peito daquele pequeno ser a certeza de que, ao retornar para casa, mamãe e papai estariam lá como dizia a rotina, a rotina boa de sua vida infante.
Sinto o cheiro dos cajueiros e mangueiras que reinavam por toda a velha Aldeota, que na época se tratava ser mais um bairro promissor da capital do sol. O menino caminhava livremente por todas as latitudes e longitudes daquele lugar. Do cocó a beira mar, se estendia seu reino de muitos sonhos e fantasias.

- Gildo, quero que você saiba de uma coisa.
- O que Neném?
- Eu sou o Zorro.
- O Zorro?
- Sim, mas, num diga nada a ninguém. Ninguém sabe disso. Hoje vou aparecer na casa de Carlos Alberto. Gildo deu uma olhada desconfiada e disse: “Vamos ver”.

Aquela manhã passou não muito rápida. O sol não se escondeu nem por um segundo atrás de uma nuvem qualquer, era o mês de novembro, o litoral do Ceará fervia e tremia ao olhar do visitante. Na terra do Dragão do Mar, saibam todos – O sol é Rei! E minha humilde pessoa – O Zorro!

Esse Zorro de minha infância trajava bermuda craque, uma mascara de pano preto com dois buracos mal cortados nos olhos, e um lenço velho para esconder a coroa de cabelos preto no topo da cabeça com os rodapés bem raspados. Esse Zorro tropical não usava camisa, pois, no Ceará o calor é em abundância. De vez em quando, ele usava uma capa preta que, na verdade, era a saia de sua irmã mais velha que estava para ir para João Pessoa. “Pare!” “Eu sou o Zorro!”
A tarde chegou; o pequeno menino magro e moreno escuro, quase preto, após o almoço costumava deitar-se no chão frio de cerâmica azul nos fundos de sua casa. No quintal, um muro que separava seu palácio de um terreno baldio. A sua frente, um pé de mamoeiro, que quase superava a altura de sua residência. O menino olhava para cima para ver as nuvens brancas a viajar no céu azul. Era uma sensação maravilhosa que escondia a imaginação pueril de uma vida que fazia das coisas objeto de suas brincadeiras. “Por que elas se movem?” “Pra onde elas estão indo?” A frieza da cerâmica acariciava sua pele fina dando-lhe o conforto necessário para que ele se entregasse a mais uma de suas quimeras. “Zorro veio do céu”. “Ele vai salvar a todos e quem sabe a irmã dela olhe pra ele com olhar diferente” Esse “ela” era a irmã da namorada do irmão de Neném, o temido “Macaúba”. Essa era uma pessoa que falava com fluência, tamanha fluência que ninguém conseguia traduzir seu vernáculo. “Macaúba, vamos brincar de pião?” A resposta era tão rápida que o pequeno Neném intuía que tudo aquilo era: “Vou”.
O chão frio estava ficando mais frio e o sono tomava o pequeno mancebo sobralense. Agora, no mundo onírico, o menino da Aldeota dialogava com seus demônios interiores. Ele tentava mexer seu frágil corpo lânguido, mas, era em vão. Uma senhora idosa aparecia em sua vidência sonambúlica. “Menino, que fazes aqui?” A senhora aparecia irritada, e com uma pequena faca na mão direita, e na esquerda algo semelhante a uma lata de leite o ameaça com gestos e palavras duras. O jovem Neném tenta acordar, mas, em vão, suas pálpebras pesavam mais que um saco de cimento. A mulher o ameaça novamente: “Menino, vou te levar para a terra dos pés juntos!” De súbito, Neném desperta com o chamado de sua irmã Ana perguntando-lhe sobre o paradeiro do doce de goiaba que estava na dispensa. O pequeno jovem metropolitano não sabia o que dizer, na verdade, sua boca conservava os vestígios de sua mais recente transgressão na forma de pequenos fragmentos avermelhados. “Tu não deixa nada pra ninguém!” “Quando papai chegar contarei pra ele!” A moça Ana estava, de fato, com raiva, e com toda razão. O pequeno Neném não resistia uma goiaba, nem se contentava com pequenas quantidades do referido doce.

A noite estava chegando, o seriado “Perdidos no Espaço” era um sucesso para toda a criançada. Neném não perdia um. A velha televisão ‘preto e branco’ anunciava o início da série americana: “Perdidos no Espaço” As cinco e quarenta e cinco o seriado terminava; Neném e seus amigos iam para a calçada reprisar as cenas do filme ou comentar alguma coisa. Na verdade, Neném tinha sua própria nave espacial – uma caixa de ovo branca feita de isopor, e os seus tripulantes eram palitos de fósforo. “Leite, cadê o fósforo?” “Tá na cozinha!” “Não, aqui, não!” O menino Neném foi intimado a depor no quarto grande, ou, o quarto do papai e da mamãe: “Não minta, onde está o fósforo, foi você quem o gastou?” Neném espremia os beiços na forma de uma flor vermelha e chorava ante a ameaça da chinela de couro de seu amado genitor. Uma, duas, três lapadas foram deferidas contra seus lombos franzinos. O menino se amua no canto do quarto próximo a porta. O choro cessa após alguns minutos. A lembrança do Zorro toma conta do menino novamente, era hora de salvar aquela menina das garras de seu vilão. Neném pula a janela do quarto de seus pais e sai pela lateral sem ser visto por ninguém. O portão da frente bate e com sua batida o cheiro de café no fogo toma conta do rapaz. Mas, ele não podia esperar mais; o horário era aquele, seu amigo Gildo o esperava. Zorro teria que salvar aquela moça. Neném se lembra da mascara e da capa. Ele precisava improvisar uma espada urgente. “Se não der pra ser o Zorro, eu apareço como Durango Kid”. “Mas eu disse que era o Zorro!”. Neném teve uma ideia brilhante. A vassoura da casa era guardada no quintal, perto da casa dos cachorros. “Eureka”, “é só tirar a cabeça e a vassoura se torna uma boa espada”. O serviço foi feito. A televisão anunciava a próxima programação “Vila Sésamo”. Neném sente um desejo enorme de assisti-la, mas, seu compromisso com o oprimido era maior. “Eh, mas, herói é herói”.

Entre pés de mamonas e muricis surge o Zorro de Fortaleza. Um herói destemido, na verdade, decidido a salvar qualquer moça vítima de um vilão qualquer. Aquela missão seria decisiva para ele, pois, agora, alguém sabia de sua identidade. Gildo vê o Zorro e se espanta. “Gildo, eu num disse que eu era o Zorro?” Gildo se rende a verdade incontestável. Os dois meninos seguem bravamente rumo à única mansão das redondezas – a casa de Carlos Alberto, filho de um bancário bem sucedido. Era uma casa enorme de muros altos, exceto, na frente que ostentava orgulhosamente um hall de cerâmica de lei que vez ou outra se transformava numa quadra de esportes para a criançada. O jardim da frente da casa era protegido pelas grades pretas que serviam de muros para aquela mansão de muita paz. Era mais uma casa da Francisco Holanda, mais um cenário das aventuras do moleque Neném.

- Neném como é que você vai atacar.
- Diga você!
- Você é quem é o Zorro!
- Então, vamos por cima do muro.

Estava sendo construída a malha de esgotos da capital do Ceará. Havia, na época, montanhas de barro espalhadas por toda a Aldeota. Isso armou os inimigos do bem. Neném e Gildo foram recebidos a bala pelos os inimigos que se escondiam além dos muros. Neném sobe o muro e Gildo pelas grades, os dois tentam resistir desviando-se das balas de barro. O herói puxa sua espada e grita: “Eu sou o Zorro!” Isso fez a turma de lá atirar mais balas de barro. A luta era renhida, até então, a vitória estava para os soldados do mal, quando de repente ouve-se uma buzina de carro à porta da mansão. A meninada corre, Zorro e seu amigo descem do muro e se enfiam por entre as mamonas. Era hora de tomar café. Petrônio gritava o nome do irmão e eu fui com ele e meu amigo Gildo. Minha mãe queria saber o paradeiro da vassoura. “Foi você de novo nego velho?” O menino melado de barro até os cabelos da cabeça diz com sua gagueira emocional: “Foi, eu, eu, eu só queria salvar ela...”

As areias da Francisco Holanda escondem segredos que ficarão para sempre ali, e enquanto houver sonhos eles continuarão por lá. Pela manhã as areias são quentes como sol de minha terra, e pela tardinha, elas são frias como o vento que sopra do mar, do mar dos jangadeiros, dos verdes mares do Ceará.

A SÍNTESE

A SÍNTESE POR ROOSEVELT VIEIRA LEITE

Não foi eu quem fez o mundo; eu, mal consigo terminar meu dia. Minhas forças carregam meus fardos ladeira acima ou abaixo, pois, o destino dos meus passos é feito pelas escolhas de meus olhos. Olhos que não se cansam de ver; Olhos que se enganam com as miragens da alma; Olhos que brilham com o prazer; Olhos que se fecham quando há dor; Olhos que se escondem nos cantos das órbitas oculares, olhos que são uma metáfora. Sou uma alma que grita, chora, rir, celebra; se encanta, se atormenta, se espanta, se quebranta; Alma que crer, e descrer; alma que é alguma coisa só minha mesmo sendo uma comunidade de sujeitos. Eu, que me sinto alma vivente agradeço ao divino o dom de não ser. Não sou nada além de mim, e tudo que sou é alguma coisa tentando, desesperadamente, ser qualquer coisa. Ser o sentido do vento; Ser o sentido do tempo; Ser a poesia declamada, que afaga alma do mundo. Ser o não-ser, ser a constante crise de ser não sendo, e não ser sendo quase alguma coisa na terra. A terra que separa as almas, A terra que as junta em abraços de afeto, ou as distancia pelas intrigas do dia. A terra que brota vida, A terra que é morte, e a morte é a minha última sorte. Ai de mim se eu não viver vida. Ai de mim se eu esquecer da vida. Ai de mim se eu não amar a mim mesmo, mesmo odiando-me por não ser o ser ideal. Vi um homem que criou para si um homem melhor do que ele. Soprou em suas ventas sete sopros de vida. Depois, o moço criador sentou-se para aguardar. A terra rodou, rodou, e seu boneco ficou tonto. Parecia um bêbado com mãos trêmulas solto no mundo. O homem caminhou o que pode; A ideia de nada adiantou, Todos são o que são ou pensam que são, pois, o não ser é mais sincero que o ser ideal. Entre a ideia e a pedra, reina a pedra. Entre a pedra e a alma, reina a alma; Entre a ideia e a alma, reina a ideia. Eu sou uma alma cheia de ideias, Sou uma caixa de surpresas, Sou uma víbora dentro de uma gaveta. Sou um pingo de nada na imensidão do tudo. O tudo que não é meu e nem teu. Não foi eu quem fez o mundo; Nem o mundo me fez. Sigo minha trilha sem saber onde vou; sem saber onde parar. Não há possibilidades de negociar com as fatalidades, O acaso é um absurdo, porém, é tão duro quanto a rocha. A rocha que fere a carne, a carne que a terra come. A terra come os homens, os homens comem da terra. Não foi eu quem fez isso! Sou apenas alguém que quase sempre está errado sobre tudo. E quando acerto alguma coisa, logo, percebo que o que disse já foi dito por outro antes de mim. Assim, o meu dizer é de todos e os deles é meu também. Viva o mundo! Viva a saga chamada vida! Viva enquanto podes, pois, mais tarde quer queiras ou não será apenas uma peça de necrotério. Essa é tua benção mais sincera, Essa é tua hora derradeira; Esse é o verdadeiro sentido de tudo, a tua síntese, o depurar de tuas horas. Não te apresses, quer queira ou não tu vais embora....