quarta-feira, 9 de novembro de 2016

AS ESCURAS SOMBRAS DO DIA

Elizabete saiu cedo esta noite. Recordo-me do barulho da porta da sala de estar quando ela deixou a casa. Depois sobre todos nós veio um estranho e forte silêncio. O vento da praia soprava pelas janelas trazendo o gemido das ondas na beira do mar. As velas da sala e da cozinha estavam acesas. Do lado de fora, um rapaz com cara de sulista descasca uma laranja com as unhas calmamente. A porta da cozinha batia para lá e para cá pelo vento que soprava dos fundos. Recordo que voltei para o meu canto e lá fiquei. Mas, saibam que embora fora do problema, eu o vi acontecer bem defronte meus olhos.
A meia noite veio logo. Pensei que era uma brincadeira pueril assustar uma pessoa com histórias de coisas do outro mundo. Esta meia noite foi fria e silenciosa. A família se reuniu e todos contaram de si e alguma novidade. Por isso que fui para meu canto. Não suporto mais quando ele conta aquelas histórias de lampião. “Nego veio, Lampião matou muita gente, mas, era um homem bom; esse lado da história o povo não conta”.
De fato, ele estava velho e cansado. A despeito da velhice e do cansaço ele estava muito lúcido. Elizabete dissera: “Pai, volto logo, é um tapa!” O velho coçou a cabeça e disse com voz rouca: “Deus te abençoe, filha!” Elizabete saiu para visitar uns amigos que moravam do outro lado da cidade. Eu vi quando ela entrou em um carro preto. Elizabete saiu com os amigos.
Retornei para a casa do velho na madrugada. Umas três horas eu ouvi o ronco de Guilherme. Foi o rapaz da laranja que caiu no sono após ouvir o jogo de futebol no radio velho. A casa estava solitária. Darci e Pedro dormiam no chão. Achei muito estranho aquilo. No entanto, o que é que eu tenho a ver com isso? Não é assunto meu! Andei pela casa até me cansar. Então sentei em frente à televisão e fiquei vendo os programas. Repentinamente, eu apaguei, entrei numa viagem mental pelas formas e cores que fluíam daquela tela...

Eu estava em Campos de Rio Real. Era época de muita chuva. O mês de julho entrou molhado. A cidade respirava eleição. Uma grande disputa em Campos estava ocorrendo. Do lado dos Cabaus, os Ferreiras respondiam; e do lado dos Pebas, Os Gonçalves davam a última palavra. A briga estava feita. E Robertinho no meio! Esse era um rapaz de ouro, o único problema segundo sua namorada era ele ser filho de um Peba, o doutor Aristóteles – o médico de sua família, como ele gostava de dizer. Amélia amava Robertinho, e Robertinho amava Amélia.
A duas famílias não apoiavam o amor deles, por isso eles foram morar em uma casa de praia para as bandas do mosqueiro. O pequeno sítio tinha coqueiros, laranja, e até um pé de jaca. A casa era confortável e com quatro quartos espaçosos com guarda – roupa e todo o conforto. O problema era que naquela época não tinha luz ali. As velas e candeeiros iluminavam a casa durante as noites. Por muito tempo aquele foi um lugar que muita gente boa gostou de visitar.
- Se sente melhor agora? Perguntou ao moço um homem com jaleco branco.
- Claro doutor! Eu parei onde mesmo?
- Deixa para lá, Gumercindo!
- Mas, olha que moço bonito! Uma senhora de meia idade entra na conversa subitamente. O estranho rapaz para o diálogo com o médico para examinar a pessoa diante de seus olhos.
- Ela é quem mesmo? Perguntou o moço quase gaguejando. A mulher olha para o médico com o olhar de desconfiada e desesperança.
- Lamento Deusita, mas, o caso é esse. A senhora de meia idade cujo nome era Deusita deixa médico e paciente a sós de novo.

Eu me lembro daquele tempo que todos nós sentávamos ao redor da fogueira para comer milho assado e soltar fogos. Oh, tempo bom meu Deus! Sabe, Carla era tão bonita, eu me lembro dela. Mas, aposto que ela já casou! As pessoas são assim, casam e vão embora deixando um pedaço de suas vidas para trás. As coisas pareciam ser assim com Gumercindo.

- Seu Gumercindo dá licença! A mulher afro descendente levanta a camisa do rapaz e injeta uma substância em suas veias. “Pronto!” “Doeu?” “Não me diga isso!” o homem tornou a falar.

“Bem, eu estava mesmo era me lembrando de Campos quando nós chegamos por aqui”.

- Ele fica assim o dia quase todo.
- E o que é isso doutor?
- É um tipo de esquizofrenia muito delicado.
- Tem jeito?
- Todo mundo fala só, não é?
- É, mas, esse é diferente.

Levaram Gumercindo para o quarto. A injeção estava fazendo efeito. O pobre homem foi levado na mesma cadeira que sentava. “Todas as vezes que ele falar assim compulsivamente aplique nele a mesma quantidade de hoje”. Calaram Gumercindo novamente. Naquela clínica a paciência era muito pouca. Sua esposa Deusita o visitava todo final de semana, mas, quando ele enganchava na conversa, ela se retirava. Ela pediu a clínica para sedá-lo em situações como essas. Afinal, quem suporta escutar uma conversa partida?

Gumercindo adormecendo em seu leito solitário, por um instante, muito breve por sinal, olha para os lados para ver se alguém o via. Gumercindo levanta-se da cama e segue em direção ao banheiro. O banheiro era um dos melhores lugares para o pobre Gumercindo, pois, era um lugar quase seu. Ele puxa a porta do armário e retira de dentro umas anotações que ele andava fazendo aquelas noites. O paciente da Clínica Repouso Seguro folheia seus escritos. Dia 21 de março de 1998:

“Mais uma vez a segui depois do horário de trabalho; seu telefone foi às 17:58 para me avisar que chegaria por volta das seis da tarde. Ela estacionou o carro no shopping center e entrou no recinto; me contive permanecendo no estacionamento; ela logo apareceu; meu Deus eu não acredito nisso? Isso não é possível; até você Deusita!” Gumercindo lia o texto e repetia tudo novamente. Ele queria encontrar um nexo lógico para tudo que vivera, mas, parece que o mundo era agora algo muito difícil de ser entendido. “Eu digo as pessoas e elas me dizem: ‘É impossível’” “Será que enlouqueci?” “Acho que devo ir fundo nessa história”.

De fato Gumercindo pagou uma investigação privada para esclarecer os fatos de vez. Em pouco tempo, ele tinha nomes, endereços e horários. Gumercindo passou a ser a sombra daquela mulher. Ele alugou um quarto no motel onde ela se encontrava com seu amante. Por uma câmera ele acompanhava tudo que ela fazia. Depois de um determinado tempo, Gumercindo percebe que seus pensamentos estavam, digamos, um pouco fora do usual. Depois as dores de cabeça vieram, e com elas algumas alucinações.

- Mulher teu marido está louco!
- Que é isso gente!
Deusita internou Gumercindo. Desde então ela vive de sua pensão e de alguns trocados que ela ganha como técnica de informática.

Gumercindo sai de seu lugar favorito e volta para sua cama. O sono estava tomando conta dele. O homem nordestino acostumado com uma vida dura para ter conforto se rendia ao efeito do calmante. Seus olhos se fecham como janelas de uma casa solitária. O sono se apodera do homem. Seu rosto mostra as contrações que criam rugas, ora de alegria e prazer, ora de dor e sofrimento. Sua respiração e os seus batimentos cardíacos compunham uma sinfonia a parte. O enredo da trama que se desenvolvia em sua mente; ninguém jamais soube.