domingo, 29 de outubro de 2017

DELÍRIOS

“Ainda, bem que ele acordou melhor humorado. Eu já estava farta de tanta risada! Eu não suporto quando ele está com os amigos. Fica falador, fica rico, fica até gastador! Na verdade, eu não sei o que passa pela minha cabeça em viver com esse homem. Homem nojento! Um calor desses, e só toma um banho por dia! E o pior, ganha muito mal”.

Amanheceu nublado em Tobias Barreto. O povo não via o sol. O calor abafado era intenso. As nuvens eram cinza escuro. A qualquer momento a trovoada chegaria. Na Avenida 7 de junho, o movimento era normal. Alguns iam, outros vinham, alguns paravam em algum lugar para fazer alguma coisa. O carro de som anunciava a morte de Ana ou Donana como os filhos gostavam de chamá-la. Donana era uma mulher de fibra. Criou os dois filhos com muito esmero. Clodoaldo fez o curso no SENAC e virou barbeiro. O rapaz melhorou de vida. Antes era ajudante de pedreiro junto com seu irmão, Marcio, que hoje é pedreiro “colher cheia”, um homem da construção, um mestre. Donana morreu de enfarto ontem à noite. Depois da novela ela tomou um susto com o miado de um gato no telhado de sua velha casa no Padre Pedro. Seu marido Francisco estava dormindo na poltrona ao lado do sofá.

O enterro de Donana foi muito movimentado. Veio gente da roça, na maioria parentes da finada. Francisco acompanhou sua mulher o tempo inteiro. Todos sabiam, e isso era certo, que Francisco era um homem fiel. Um homem de casa.

- Francisco, meu amigo, Deus te conforte!

- Obrigado compadre! Deus lhe pague a caridade! Francisco desceu com seus dois filhos e parentes em direção a sua casa no conjunto Padre Pedro. A família ficou conversando um pouco sobre o ocorrido na pequena sala da casa do casal antes de ir deitar.

- Francisco, quem diria que a comadre tinha o coração fraco?

- Num é comadre! Donana sempre foi forte e batalhadora, não imaginava que ia ser tão ligeiro.

- Pois, num foi homem! As pessoas ficaram um bom tempo com a morte de Donana na cabeça. O povo quando sabe a causa da morte se aquieta e entrega nas mãos de Deus.

- Deus a tenha em um bom lugar! Disse o velho Almerindo do Candial.

Depois da morte de sua mulher, Francisco nunca mais dormiu uma noite inteira. Acontecia uma coisa ou outra, e o homem estava em pé alta madrugada. Às vezes, ele conversava, por horas, com ele mesmo. Ninguém via, pois, o homem, passou a morar só. Sua idade não era tão avançada, contudo, 57 anos de luta o deixou um pouco quebrado.

- Francisco o que foi aquilo ontem a noite rapaz? A luz acessa a noite inteira, e você com o chinelo para lá e para cá pela casa inteira.

- Rapaz, depois que a mulher morreu, eu fiquei assim. Ou custo a dormir, ou acordo no meio da noite.

- Compadre, isso é depressão pós-óbito! Eu vi isso no Jornal! Procure um médico!

- Que nada, Reginaldo! Logo passa! Um ano inteiro passou e o problema de Francisco não via melhora. Agora, o homem não dormia mais. O povo já estava sabendo.

- Seu Francisco! Melhorou?

- Não!

- Rapaz, dizem que tem um pastor que reza, e o povo cai.

- Rapaz, eu num estou com coisa ruim, não!

- Eu sei rapaz! Mas, o homem é de fé! Francisco combinou com Reginaldo para ir a Igreja do Cristo Eterno. Não demorou a chegar o sábado. Segundo Reginaldo, no dia de sábado, eles chamavam o Espírito Santo, era, então, dia de Libertação.

O endereço da Igreja era na Avenida Getúlio Vargas. Um salão bem grande ao lado de uma renovadora de pneus. O lugar estava cheio de gente. Tinha gente de todo tipo, com doenças várias. Uma senhora, de meia idade, trazia um pássaro na gaiola para o pastor orar, segundo ela, Deus cura até os bichos.

- Eu num sei, mas, creio em Deus primeiramente, depois, no pastor, que está um pouco abaixo dele. Mas, Pastor Silvio é uma benção! Isso encheu a alma de Francisco.

A hora da oração poderosa havia chegado. Foram cantados três hinos de louvor. O dirigente anuncia a prece divina. O pastor Silvio se levanta. Todos olham para o homem. Seu terno era de boa qualidade e combinava muito bem com seu sapato preto de couro falso. O homem pregou trinta minutos antes de orar. Depois da oração ele perguntou quem havia sido curado. Francisco pensou consigo que só saberia mais tarde à noite. O homem chamou um auxiliar e disse: “Moço, eu só sei se fui curado a noite”. O auxiliar ao ouvir Francisco deu glória a Deus e puxou o homem para frente onde estava o púlpito. “Esse homem foi curado pela fé!” A multidão entrou em êxtase, a gritaria chamou a atenção de quem passava. Outras pessoas se declaram curadas. No outro dia Reginaldo vai a casa de Francisco.

- Tá melhor Francisco?

- Rapaz, com fé em Deus, sim!

- É assim mesmo. A razão diz que não, a fé diz que sim. E, aí, se a fé vencer! Venceu! Glória a Deus! Francisco voltou a dormir. Uma mulher da feira, uma senhora morena do Candial, amiga de Almerindo, primo de Francisco, ensinou ao viúvo o chá da folha do maracujá. O homem tomou; foi tiro e queda! “Rapaz, depois que Deus me mostrou dona Coisinha, eu durmo toda noite!” “É, meu irmão, Deus responde as orações de três maneiras: Não quero, mais tarde, ou de outro jeito”. “Como é o nome da mulher mesmo?” “Coisinha do Candial”. A igreja ficou muito alegre com a cura do homem.

- Irmã Francisco!

- Sim!

- Vai para a Igreja hoje?

- Num perco por coisa alguma! Minha igreja é sagrada! Francisco virou crente da igreja do Cristo Eterno. Com sua conversão outras pessoas se tornaram crentes também.

Um homem de 58 anos, viúvo, na Igreja não daria outra coisa. Muitas irmãs velhas que nunca casaram, e outras separadas começaram a cobiçar o pobre Francisco.

- Mulher, ele é branquinho mais num faz diferença não!

- Ave! Eu sei mulher! Mas, é que dizem que homem branco daquela idade já tá meio bichado.

- Mulher, Francisco é homem de bem. Se ele num funcionar mais, e daí? O que conta é que é um servo de Deus! Foi até curado!

- Sei não! Ademais é quebrado, vive dos projetos sociais do Governo. As duas conversaram até perto da Igreja na Av. Getúlio Vargas. Quando entraram se calaram para ouvir o pastor pregar.

“A igreja está sentido a necessidade de mais um diácono; acho que o Senhor quer Francisco”. As pessoas olhavam uma para a outra e não entendiam o que estava acontecendo. Francisco, um diácono da Igreja do Cristo Eterno?

- É o pastor não olha se a pessoa é rica ou não.

- É verdade Carlos, nosso pastor é um homem simples. Graças a Deus pela vida de Silvio

Francisco se tornou diácono e a igreja comprou um carro velho, usado, não tão velho, bonzinho, com o dinheiro que Francisco doara da venda do terreno na Capoeira que O Senhor mandou: “Meu servo, a igreja precisa evangelizar; a pé num dá”. Agora o coitado só tinha os dois filhos. O barbeiro e o pedreiro.

- Reginaldo! Deus sabe o que faz. Colocou no meu coração doar venda do terreno, mas, tenho meus filhos, no caso, que precise me amparar.

- Pois, num é homem de Deus! Rapaz, Deus tá agindo em tua vida de forma maravilhosa. Primeiro te curou. Depois te fez diácono, e agora colaborador de missões. Num sei não, mas, você foi escolhido.

- Eu estou achando. Disse Francisco com muita alegria no coração.

Os meses passaram. Finalmente, Francisco se casou. Raimunda era uma baixinha que tinha uma lojinha na Avenida Sete. Ela vendia artigos de decoração. Francisco subiu de vida. Agora andava de carro. Raimunda se confortou do celibato de vinte anos. O casal era aparentemente muito feliz. Os dois frequentavam a Igreja do Cristo Eterno todos os cultos, não faltavam um dia. Francisco chegava e sentava à porta pelo lado de dentro do templo. Seu trabalho era atender quem chegasse. Seus dois filhos, Clodoaldo e Marcio se converteram. Reginaldo um dia disse para Francisco: “Quem crê verá a Glória de Deus!” A alegria tomou conta de todos. Num se falava noutra coisa em Tobias.

- O negócio agora é ir para a igreja de crente num instante você se ajeita na vida!

- Num é rapaz! Num foi o que Francisco fez! Macaco velho!

- Que nada rapaz! No caso de Francisco é diferente. O cara é abestalhado mal sabe falar.

Dona Raimunda assistia à novela das oito quando ouviu um miado forte no telhado. Ela se assustou e deu um ataque. A levaram para o hospital. Seu coração batia muito fraco. A mulher ficou em Aracaju internada dois dias. A pobre não resistiu às sequelas do infarto e morreu. Francisco esteve ao lado de sua mulher o tempo inteiro. Era como se fosse um servo devoto.

“Ainda bem que ele acordou bem humorado hoje. Ele me faz de burra o tempo todo. Esse homem é um cretino e ninguém vê. Agora tá rico. Cabra safado! Eu vou me vingar de você Francisco!”

Estas foram as palavras que Francisco ouviu em seu estado de sonolência antes de se levantar da cama. A cidade estava estarrecida com o sofrimento de seu filho amado. O segundo casamento, uma tragédia, mais um infarto sem misericórdia. Os negócios de Raimunda iam de vento em popa. Dona Canário, mulher de Marcio, filho de Francisco foi ajudar o pobre homem a levar a loja adiante. A família unida era um exemplo para a igreja. Pastor Silvio foi chamado para Aracaju. A Igreja do Cristo Eterno em Tobias estava sem pastor.

- Por que ninguém bota Francisco para ser pastor?

- O homem não sabe dizer nada.

- Mas, a vida é que conta!

- É, mas, é preciso conhecimento também.

- Sei não, esses pastores de teologia, sei não!

Francisco se tornou pastor da Igreja do Cristo Eterno. Seus dois filhos diáconos. Suas noras diaconisas. A igreja tinha muito respeito por Francisco. “Vamos orar para Deus dar a Francisco uma mulher santa, uma mulher de Deus!” No mesmo ano, agora Francisco com 61, conhece e se casa com uma jovem de 38. Isso provocou falatório no meio do povo. Os homens entendiam mais, as mulheres entendiam menos. “Mulher, Francisco tá enganado! Dores num é mulher para ele não! Aquela ali antes de ser crente traçou os homens da cidade toda. Ali é uma cabra desgovernada! O pobre Francisco vai ser corno!” “Mulher Deus o guarde!” Altamira sempre apelava para a força suprema. Dores poderia ser desgovernada, mas, era bonita e rica; e Francisco, velho e feio, pobre não era mais. A vida dos dois continuou, a igreja cresceu, o povo parou de falar. Os filhos e noras de Francisco se fizeram na vida. Cada um tinha seu negócio. Francisco tinha casas, terrenos, e roças. Dava para a igreja, e dela recebia.

“Sabe mulher! Esse homem ainda vai fazer mais arte. Cala boca sua peste que você se deitou com ele. Eu gostava dele. Mas, você não!”

Mais uma manhã de sol na velha Vila de Campos. A cidade estava eriçada com a aproximação das festas juninas – o Forrotobias. Este é um evento que atrai pessoas de todo o estado para a cidade. Dá muito lucro para os comerciantes locais e alegria para as pessoas em geral. Muitos rostos, muitas conversas em becos e lojas. A cidade fervia como um caldeirão de dendê. Um carro para defronte a delegacia regional. Era um Fiat uno cor branca. Nele estavam o agente da Silva e o investigador Damasceno.

- Bom dia doutor!

- Bom dia Damasceno! A investigação em Aracaju está evoluindo?

- Sim, positivo. Temos argumentos para acusarmos Francisco de homicídio. Todavia, não temos como ligar as evidências a ele, e isso dificulta tudo.

- Mas como farão isso?

- O agente Da Silva tem um plano. O rapaz coçou a garganta três ou quatro vezes antes de falar. Tremia o tempo inteiro. O delegado Antunes estava quase pedindo para Damasceno explicar no lugar dele.

- Como disse doutor eu vou me infiltrar na instituição a fim de me aproximar de seu líder e ter acesso a sua casa. Não podemos fazer com mandato porque ele goza de total confiança da população e o mandato não teria procedência.

- Entendo! Os dois saíram e foram tomar café numa pequena lanchonete na Praça do Cruzeiro.

A investigação em Aracaju levantava a suspeita que as duas mulheres haviam sido assassinadas. Ambas carregavam elevados níveis de potássio no sangue. A suspeita é que as mulheres receberam injeções de alguma substância contendo esse sal que provoca infarto fulminante. Mas não havia nada material que relacionasse isso a Francisco, no entanto, a pessoa mais próxima às vítimas era Francisco. Se elas receberam alguma coisa, Francisco seria a testemunha. Os homens da lei fizeram perguntas e investigaram a vida do Pastor. Mas nada foi encontrado. Nem o rapaz que se infiltrou na igreja descobriu nada. Ele apenas juntou provas que Francisco se beneficiou nos dois casamentos. A justiça se deu por satisfeita. O falatório cessou.

- Tá vendo rapaz, como o homem era inocente. Só serviu para o povo gostar ainda mais de Francisco. Coitado, perdeu as mulheres e ainda levou nome ruim.

- Rapaz, num foi.

- Foi.

Reginaldo nunca largava seu amigo e irmão na fé. Uma noite ele foi vê-lo.

- Rapaz, graças a Deus que tudo ficou esclarecido. Há males que vem para o bem. Mais uma vez eu digo para o amigo, Deus tem uma obra muito grande em sua vida. Francisco baixou a cabeça e a balançou como se dissesse eu não sei.

- Amigo; essa vida de evangélico é muito complicada. Acho que vou ficar no meu cantinho. Estou quase com setenta. Entrego a igreja para os filhos e fico visitando no fim de semana.

- Num diga uma coisa dessa não que Deus lhe castiga! Disse Reginaldo com muita sinceridade.

- Rapaz; é porque você não está no meu lugar. Igreja é coisa pesada. Francisco estava mesmo querendo se afastar do púlpito, ou seja, do olhar do povo. Queria viver sua viuvez com sua nova esposa Dores mais a vontade. Era assim que ele dizia: “Minha viuvez com Dores”.

“Mulher! Ele se sente no direito de descansar! Veja que cara de pau! Você nunca desconfiou?” “Não! Mas uma vez eu percebi que ele estava aplicando algo em mim de noite. Era uma pontada muito fina. Isso por dias. Mas eu não conseguia reagir. Estava muito mole”.

Francisco nunca deixou de ouvir os sussurros no ar. Ele sentia em seu sistema nervoso que havia pessoas o acompanhando o tempo inteiro. Ele não sabia quem eram as pessoas, mas, desconfiava. Muitas vezes, ele procurou ajuda na psiquiatria. O diagnóstico era o mesmo: Ele tinha delírios psicóticos pelo uso prolongado de remédios controlados. Por causa disso, ele não dava muita atenção às vozes baixas. Inúmeras foram as noites que ele foi ao portão atender alguém e ninguém estava lá, a voz e o barulho, lá fora, não era ninguém. Ele se acostumou com as coisas. Dona Coisinha do Candial fechou o corpo do crente no início de sua fé. Na verdade, Francisco nunca se afastara de Coisinha. Isso era muito curioso, mas, ninguém sabia. Dores sua mulher não viveu com seu marido. O homem não dava no couro, como dizem. A sonolência e o cansaço tiraram o vigor de Francisco.

- Dores! Faça uma gemada!

- Pra que Francisco?

- Rapaz eu acho que hoje tem festa. Se Deus quiser!

- Dores fez uma gemada forte de ovo de galinha de capoeira e trouxe para seu marido.

- Francisco bebeu a gemada e aguardou o resultado. Por volta das onze horas, sua mulher o pega cochilando na preguiçosa da área da frente. Sua revolta foi tanta que ela foi embora e nunca mais voltou. Dores viu Francisco a última vez no Fórum, no dia em que foram assinar o divórcio.

- Coitado de Francisco! Eu num disse que ele é abestalhado!

- Abestalhado sortudo!

- E corno também. Eu tenho prova que Dores saía com Claudinho do lava jato!

- Deixa de estória rapaz! O homem é de bem!

Marcio ficou no lugar do pai. A igreja sempre dizia quando Marcio era chamado para pregar: “Quem vai pregar hoje é Marcio, é? Então o Senhor vai derramar fogo!” Quando Marcio recebeu do pai a Igreja, o povo disse que Deus apareceu a irmã Cleonice. “Eu vi, irmã, quando aquele homem de branco deu o cajado para Marcio”. Francisco, agora com 66 anos, muito tranquilo, foi morar numa roça depois da Bela Vista. Um terreno bom de tudo. Nascia todo tipo de verdura. A vizinhança era gente boa, todo mundo gostava de Francisco. Nos finais de semana ele vinha a Tobias para ver a família e visitar a igreja. O povo seguia sua religião com muita fé em Deus.

- Francisco, vida de rei agora. Na rocinha, muita paz, e no final de semana com Deus. A gente não pode se afastar dos caminhos do Senhor.

- Não Reginaldo, isso nem pensar. Mas, agora recomeço minha vida e estou velho. Deixa a nova geração fazer, e eu dou o suporte.

Na verdade os anos que seguiram foram assim mesmo. A igreja continuou na Getúlio Vargas. Ela crescia, e a família de Francisco melhorava. Até chegou a criar filiais, uma no Conjunto Irmã Dulce, e outra no Padre Pedro; esta última era a predileta de Francisco. “Onde abundou o pecado superabundou a graça”. A coisa só não virou um paraíso porque as vozes estavam aumentando. Em vez de uma vez por dia, agora era uma vez a cada duas horas, intercalado com presenças, e sustos noturnos. Francisco dormia muito pouco a noite. Durante o dia, ele dormia e comia.

- O irmão Francisco está precisando de uma companheira. Disse Marivalda. Uma viúva de um vereador. A mulher tinha muito dinheiro. Comenta o povo que, em Aracaju, ela tinha dois apartamentos, e um, em Salvador. Em Tobias ela tinha uma vila de casas para aluguel. O marido se foi e ela ficou com tudo. A pobre nunca tivera filhos. Seu útero era infantil. Fez de tudo. Até macumba, e não teve sucesso.

- Também acho! Falou com muita convicção dona Rosinha proprietária da Casa das Sucatas – onde você compra tudo abaixo do preço. A mulher encheu a boca de água quando tocou no nome de Francisco.

O velho Francisco escolheu Marivalda. Com o casamento ele voltou para a sede do município, mas, não se metia no trabalho do filho pastor. A igreja era uma coisa, Francisco era outra. Os anos se abreviaram, parecia que o tempo criara asas e saiu voando. A igreja cresceu e mudou de endereço – uma divina revelação alertou a Marcio que cada vez mais perto do Suti melhor. Construíram um templo enorme ali. Os pobres se afastaram por falta de transporte, contudo, Marcio nada percebeu, pois, hoje em dia, em igreja grande, todo mundo tem carro.

A novela das oito começa às nove, às vezes depois das nove. Tobias estava coberto de neblina, era final do mês de julho. Marivalda coberta com panos grossos estava no sofá da sala. A morena de olhos claros e feições afiladas sentia muito frio; principalmente, nos pés. Por volta das dez horas, um gato mia forte no telhado da casa. Embora a casa fosse forrada o miado assustou a viúva, e a mulher passou mal. Segundo ela, o coração parecia que ia sair pela boca. Suas têmperas latejavam fortemente, seus olhos pareciam pular das órbitas, o sangue queria esguichar das artérias dos braços, das pernas e do pescoço.

- Corre, corre que a mulher está morrendo!

- Francisco e os filhos levaram a mulher para a Casa de Caridade. Em pouco tempo, o povo comentava nas calçadas.

- Mulher! Que homem azarado é esse? Eu num caso com ele de jeito nenhum! Todo mundo morre!

- É assim Cremilda. Os caminhos do Senhor parecem tortos, mas, no final é tudo para a glória Dele.

“O safado aprontou de novo Raimunda! É Donana! Está na hora de dar um basta nisso!”

Marivalda morreu na madrugada de terça feira, no mesmo dia que a finada Donana bateu as botas. Seu enterro foi rápido porque o corpo cheirou mal cedo. O caixão fechado irritou amigos e parentes que queriam dizer adeus a “Mari”- como a pobre era conhecida. No velório e enterro uma presença estranha engrossava a massa humana que tinha ido se despedir da finada. Era o investigador Damasceno. O homem observava todos os movimentos de Francisco, suas expressões faciais, suas palavras, etc. Tudo era rigorosamente anotado. As perguntas eram feitas sem levantar suspeitas. Pouquíssimas pessoas em Tobias sabiam da investigação.

- Vossa excelência estranhou, então?

- Sim, investigador Damasceno.

- O Ministério Público deseja respostas coerentes. Assim não dá! Todas morrem enfartadas e com a pressão artéria lá em cima? Não dá! Estamos falando de gente rica que tem plano de saúde.

- Sim, e Francisco sempre termina como herdeiro de tudo. O homem era pobre que nem Jó, e hoje é rico? O negócio dele é casamento seguido de óbito, será? Questionou Damasceno.

- Seu Promotor, posso entrar na propriedade dele no Candial? Continuou o investigador.

- Por quê?

- Tenho a intuição que ele guarda alguma coisa lá.

- O que?

- Agulhas especiais. Elas podem injetar substâncias e a marca é quase microscópica.

- Rapaz, o homem seria capaz disso? Ele num é abestalhado, analfabeto? Perguntou o Promotor Alex.

- Todo mundo é capaz de qualquer coisa. Filosofou o investigador.

- Vá! Mas, não me envolva, pois, estamos fora da lei, não há mandato!

Para não chamar a atenção da Silva e damasceno vestiram roupas semelhantes a dos nativos da terra. O chapéu de palha os protegia do sol da Bahia e cobria suas feições de gente da capital. Com certa dificuldade, sem serem vistos, entraram na propriedade pela cerca dos fundos. Passaram lá mais de uma hora. A casa foi toda revirada. Os dois agentes da lei nada acharam. Da Silva viu os coqueiros de Francisco. Todos estavam carregados. Os cocos pareciam bons. O desejo de beber água de coco os levou para o coqueiral do sítio. Seu tamanho não era grande uns cinquenta metros de cumprimento por trinta de largura. A areia branca, fofa e fria alimentava aquela beleza de saúde e vida e que matava naquele instante a sede dos homens sedentos.

- Da Silva vem aqui!

- Aqui a terra é branca, e aqui ela é amarela. Vamos cavar só pra ver se a gente tem sorte? Os homens levaram mais vinte minutos cavando o chão do Candial. No final do serviço, a terra era preta. De dentro do buraco tiraram um baú de madeira de uns quarenta centímetros de frente e trinta de largura. O móvel estava enrolado em lona e saco plástico para não molhar. Um cadeado lhe garantia a segurança.

- Rapaz, quem diria que o crente tem segredo! Exclamou Damasceno com ar ofegante. A barriga do policial não permitia mais tanto esforço.

- Pois, num é colega! Vamos abrir! A chave universal provocou um clique no cadeado que saltou longe das mãos de Da Silva. Dentro do baú havia papéis velhos, quase todos amarelados, fotos antigas, seringas hospitalares, um capuz preto com uma figura em relevo, a figura parecia um garfo torto, e uma caixa de agulhas de costura e outra de alfinetes. Os dois levaram o conteúdo do baú para dentro da casa para periciá-los.

Os papéis eram cartas endereçadas a uma pessoa que morava em Aracaju. A residência ficava no bairro Bugio. O conteúdo das mesmas era relatos de problemas e pedidos de ajuda. Uma das cartas dizia: “Meu marido bate em mim todas as vezes que bebe; mostra a rapariga para todo mundo no bairro; e agora deu para pegar dinheiro. Por favor, faça alguma coisa. Esse é o número de meu telefone”. Em outra carta a mesma diz: “O safado bateu as botas terça à noite; quase que os olhos caíam no chão; o cheque estará na sua conta amanhã”. Cartas como essas e outras enchiam o fundo escuro do baú centenário. “Mas para que serviam aquelas seringas?” “E as agulhas?” “O capuz?”Fotos foram tiradas e feito um relatório para a promotoria. Alex, o jovem novo promotor de Tobias após lê-lo chama os dois detetives.

- Quer dizer que vocês dois me envolvem em um arrombamento de propriedade e o que temos é isso?

- O exame cadavérico atesta que as mulheres sofreram perfurações na epiderme. Elas eram tão pequenas que não foram levadas a sério.

- Mas, isso nos liga a Francisco?

- Sim e não! Precisamos de um mandato para levar o conteúdo da caixa para a polícia científica.

- Mas como eu vou expedir mandato para Francisco se o homem é de bem na sociedade, nada temos contra ele?

- Então vamos roubar a caixa!

- Alex pensou por um instante. Sua carreira estava em perigo e o nome de seu pai Desembargador Vieira também. Mas, o rapaz era corajoso.

- Sigam em frente!

Os policiais entraram novamente na propriedade à noite. O céu estava cheio de estrelas, a lua era pequena, somente uma banda no céu. Os dois tiveram que arrastar o baú por dentro do mato por mais de 5 minutos para não chamar a atenção da vizinhança. De repente, da Silva escuta o gemido de uma criança que saía de uma moita de samba caitá. A moita era fechada, e a luz da lua não era o bastante para iluminar.

- Damasceno! Damasceno! Você ouviu?

- Sim, ouvi. O investigador segurava a arma com a mão direita. Sua pistola nunca foi usada. Damasceno era um investigador, por isso nunca trocou tiro com ninguém.

- E agora?

- Seja o que Deus quiser! Os dois avançaram de arma em punho rumo à moita. Com a mão esquerda ambos afastaram as galhas da planta milagrosa do sertão. No chão entre os galhos e folhas estava um gato preto que gemia como criança. Os policiais viram que o gato estava ferido. O pegaram e o examinara. Em seu corpo encontraram 21 agulhas de costura. Seu ventre fora aberto, pois, estava raspado e costurado. O gato dá o último suspiro nas mãos de Damasceno.

- Vamos abrir o gato, vamos!

- Sim vamos! Damasceno pegou a lanterna no fundo do carro e uma faca de caça e abriram o felino negro. Em seu ventre estava um pedaço pequeno de papel de caderno comum, nele estavam escritos três nomes: Alex, Da Silva e Damasceno. O susto foi grande.

“O filho da peste sabe e faz bem feito. Maldito! Que o inferno te leve, safado!”

As vozes mal pararam de soar no ouvido esquerdo de Francisco quando o radio dá uma notícia urgente. Um Fiat branco uno virou e capotou na curva do “S” na estrada vindo de Itapicuru. Não havia sobrevivente. Os corpos foram encontrados carbonizados. Francisco reuniu a igreja por meio de seu filho para orar por Tobias Barreto. O diabo estava solto na Vila de Campos. Na mesma semana o promotor Alex foi comer comida japonesa. Um pedaço do peixe cru agarrou na goela do magistrado provocando asfixia mecânica. Seu corpo foi sepultado em Aracaju. O baú ninguém mais ouviu falar dele. As mortes foram esquecidas por um tempo.

- Coisinha! Coisinha! O portão da casa estava aberto. Era um portão de ferro enferrujado. Coisa do temo passado. Todo aquele Candial havia sido fazenda de gente grande. Francisco entra no terreiro da casa de dona Coisinha do Candial. A casinha que ficava na entrada estava no mesmo lugar. Mas, tinha tempo que não era alimentada. As plantas sagradas e ervas formavam o jardim e farmácia de dona Coisinha. Contudo, ninguém respondia a voz do homem de Deus. Francisco se calou e entrou na casa. Não havia sinal de luta. Nada estava quebrado ou arrombado. O corpo de Coisinha estava na cama. Seus olhos estourados. E uma mancha enorme de sangramento interno na altura do pescoço. Ao seu lado na cabeceira de sua cama um bilhete escrito em um português quase ilegível. “Ajudei enquanto pude. Agora te cuida!” Nem a polícia; nem ninguém, sabia de alguma coisa sobre a morte de Coisinha. O povo dizia que foi morte bem morrida. “Morte bem morrida o povo num sabe a causa não”. “Cada povo tem sua ciência”.

Os setenta anos de Francisco não demoraram a chegar. Sua família o abençoou com uma grande festa cheia de amigos e parentes. O culto de ações de graças foi filmado;. Francisco disse no dia: “Vivi para ser filmado”. Reginaldo aproveitou a frase e disse: “Lembra Francisco que eu disse que você era escolhido?” O tempo passou. Ele sempre passa quer queiramos ou não. Nele estão as forças da natureza.

Francisco continuou a ouvir vozes. Elas ficavam mais nítidas com o passar do tempo. Agora ele conversava com elas. As vozes faziam parte de sua vida social.

- Francisco! Vou te mostrar que você vai morrer a mesma morte da gente.

- Mulher, eu estou arrependido! Tenha piedade!

- Num sei por que ele ainda não caiu! Mal dorme, mal descansa, mal come!

Acharam Francisco morto na preguiçosa da área da frente onde ele gostava de ficar. Francisco estava com a boca aberta. As mãos e os lábios estavam melados de sal. Os oitenta e sete anos trouxeram fardos pesados ao protestante do Padre Pedro. A igreja chorou sua morte. A cidade falou um tempo. As mortes das mulheres nunca foram esclarecidas. O caso estava encerrado.

“Mulher! Num te disse que hoje ele embarcava? Filho da peste aguentou foi muito!”

“Agora você pode se acertar com ele, num é Donana?”

“Sim! É!”

A MALA

- Estamos quase chegando a Aracaju meu bem calce os sapatos!

- Tá bom! Você sabe mesmo do endereço da casa de Firmina?

- Sei meu bem. Rua Bahia 79.

- Então está tudo bem. Num quero é ficar rodando a cidade à toa.

- Não se preocupe chegaremos à casa de tia Firmina em paz.

O ônibus estava lotado. Era o último que vinha de Tobias com destino a Aracaju. O casal tobiense estava visitando um parente doente na capital sergipana. Os dias e noites estavam muito quentes em Aracaju. Não ventava e as pessoas reclamavam do calor.

- Meu amor Aracaju é quente, né?

- Num é o que!

- É quente mesmo! Olha a rodoviária!

Sidinei levantou a cabeça da cadeira e ajeitou os óculos de lentes grossas.

- É grande, né?

Sair do Jacaré direto para a Aracaju foi a experiência do casal que veio socorrer a tia que estava para se operar de câncer. Eles não sabiam muito sobre Dona Firmina. O que estava acertado era Tereza dar o amparo à mulher após a operação. O resguardo não seria longo, esperavam eles, pois, hoje em dia, é tudo ligeiro.

- Meu bem quando tia vê a gente ela vai recobrar coragem.

- É, mas deixamos os bichos tudo na mão dos outros. E sei lá num que vai dar essa história.

O casal desceu do ônibus e foi direto para o ponto de taxi. Um taxista de meia idade se aproximou dos dois e disse: “Vão querer um taxi?” “Vocês vão para onde?” Eles disseram que iam para Rua Bahia. O motorista partiu para a Avenida Oswaldo.

- Demora muito moço?

- Não. Indo por aqui é rápido. Artíles era um motorista competente e honesto, pelo menos, a maioria das pessoas comentava isso. Ele foi o homem que encontrou uma bolsa cheia de euros no banco do passageiro de seu carro e devolveu. Artíles era um brasileiro honesto até que se prove o contrário.

- Meu amor num queres comprar nada não?

- Moço quando passares por uma padaria pare que eu quero comprar pão.

- Tudo certo amigo.

O taxi parou e Sidinei desceu para comprar pão e outras coisas. Não demorou muito. O motorista do taxi se vira para o casal e pergunta: “Onde é mesmo?” “Na Rua Bahia”, Respondeu os dois em coro.

- Sidinei, ela disse que se ela não tivesse em casa, a chave estaria no vaso de comigo ninguém pode perto do portão.

- Psiu! Sua idiota! Como é que você diz uma coisa dessas?

- Desculpe Sidinei, é o costume! Terezinha, ou Nininha como muitos a chamavam falou baixinho. O taxi entrou na Rua Bahia pela Rua Alagoas. Dobrou a direita e subiu a rua. O casal estava ansioso para conhecer a casa da parenta. A Rua Bahia, muito conhecida em Aracaju, estava escura. Não havia ninguém nas calçadas. Esse costume está morrendo no Siqueira. Antigamente, o hábito era por as cadeiras na porta, conversar e tomar uma fresca.

- Qual é o número mesmo? Perguntou Artíles.

- É 79. Depois de subir e dá ré a procura da casa, Artíles para o carro e diz:

- Num tem nenhum 79 não. Tem certeza que é 79?

- Tenho sim. Terezinha passa um papel de caderno com o endereço e o número da casa. Artíles o lê, desce do carro e sai a procura a pé. Finalmente, ele encontra a casa. Estava tudo fechado. Sidinei pega a chave no caqueiro e abre o portão depois a porta. Ali mesmo, eles pagam o taxista e se despedem. O interior da casa era sereno. Após acenderem a luz o casal sentiu que estava em casa. Ligaram a televisão. Estava passando o jornal.

- Meu bem!

- Sim!

- Tá com fome?

- É claro né Tereza!

- Não precisa ser ignorante.

O casal passou a noite. A manhã veio animada. Os dois foram à feirinha do Siqueira fazer umas comprinhas. Voltaram antes das doze horas comeram e foram ver televisão.

- Tereza, num tá estranho não?

- Tá. Onde está minha tia?

- Num é? E a gente nem sabe para quem ligar. Firmina era uma mulher só. Depois que deixou o Jacaré amadureceu na selva de pedra. Sua parenta que restou foi Tereza. O casal não sabia que Firmina era rica. E nem imaginava como ela ficou assim.

- Meu amor corra aqui!

- Que foi mulher? Estou vendo televisão!

- Venha aqui rapaz! Sidinei foi. Tereza estava sentada na cama no quarto de empregada. Ao lado dela estava uma maleta de couro marrom legítimo. A mala tinha detalhes em ouro. Dentro dela ouro, dólares, e francos. Joias e diamantes completavam o pequeno tesouro. Tereza a encontrou em uma caixa debaixo da cama. Tereza e Sidinei eram agricultores no Povoado Jacaré em Tobias Barreto. Foi a primeira vez que eles viram aquilo – o dinheiro estrangeiro e as joias e pedras brilhantes.

- Rapaz Firmina é cheia da grana!

- Como foi que ela ficou rica?

- Sei não.

O casal ficou na casa a espera da tia quinze longos dias. Todos os dias, Sidinei pegava naquelas pedras. Depois as guardava no mesmo lugar.

- Tereza, já pensou se a gente levasse a mala? Ela não ia saber. Ninguém viu a gente aqui!

- A vizinhança viu besta! Mesmo assim nós somos gente honesta.

- Estou só brincando com você!

O casal se cansou de esperar. Firmina não apareceu nem mandou recado. Era muito estranho, a tia desaparecer. Os dois decidiram retornar para Tobias e aguardar um sinal da tia. Uma carta, um telefonema. Sidinei e Tereza voltam para o Jacaré.

- Tereza, a gente com aquele dinheiro. Já pensou?

- Rapaz você tá pecando!

Um mês passou muito rápido. E nada de Firmina dá sinal de vida. Ninguém sabia de seu paradeiro. Tereza apenas sabia que sua tia ia se operar por causa de um câncer. Aquilo era muito estranho. O casal decidiu voltar a Aracaju.

- Meu bem, vamos mexer nos papéis dela para ver se a gente acha algum endereço, alguma coisa para a gente começar a procurar?

- Sim. Deus vai nos ajudar! Mas, que está estranho está. O casal do Jacaré encontrou a chave no mesmo lugar. A casa estava no mesmo lugar. Ou seja, Parecia que ninguém havia entrado ali. Uma pegada, um cigarro acesso, nada. Definitivamente, Firmina não havia estado ali. Ninguém havia estado ali. Sidinei vai ao quarto de empregados em busca da mala de couro. O rapaz deu um grito de susto quando meteu a mão debaixo da cama e nada encontrou. Sim, a mala sumiu.

- Tereza. A mala sumiu! Bem que eu disse para levarmos conosco! E agora vão pensar que foi a gente!

- Vamos embora logo!

- Mas agora não tem ônibus.

- Então vamos amanhã de manhã.

O casal se preparava para se deitar. Tereza usou o banheiro e foi por o lixeiro no quintal. Acendeu a luz; caminhou uns dois metros na direção do muro dos fundos. Havia cimento até a metade da área do quintal. O resto eram plantas e grama. O vaso de metal para o lixo estava no pé do muro. Ao seu lado sobre um monte de areia, um gato cavou o chão. Tereza viu o gato e foi até ele. O gato percebeu e fugiu deixando um dedo humano sobre areia. Tereza deu um grito abafado. Sidinei foi ao encontro.

A visão do cadáver de Firmina chocou a ambos. Primeiro o dinheiro, depois um corpo enterrado. Roubo e homicídio. Eles, agora, estavam em maus lençóis. Enquanto os dois decidem sobre o que fazer, se chama a polícia ou não, o telefone toca: “Alô, sim!” “Aqui e do serviço de taxi. Vocês pediram um taxi?” “Não!” “Então foi um engano”. A voz do homem, segundo Tereza, era conhecida, mas, ela não recordava de quem. O casal foi para Tobias no outro dia.

Uma semana depois, o jornal anuncia que acharam um cadáver no Siqueira. A polícia investigou o caso. Três meses depois, o casal foi preso por roubo e homicídio. Artíles comprou uma frota de taxi. O homem ficou rico. Parece que Deus o recompensara por todo o serviço prestado naquele automóvel. O casal foi condenado por assassinato premeditado seguido de roubo e ocultação de cadáver. A sentença para ambos foi 17 anos de reclusão em regime fechado, no entanto, isso não aconteceu, pois eles passaram para o regime semiaberto em pouco tempo, depois eles ficaram livres. Foram apenas seis anos e meio de cadeia. Eles eram réus primários. Com saída da cadeia, o casal vendeu tudo e foi para a Bahia. Ninguém sabe onde eles moram atualmente, assim como eles não sabem quem pegou a mala e matou Firmina. A chave da casa de Firmina continua no caqueiro. De vez em quando as pessoas veem um taxi parado na porta...

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

DESCULPE-ME, MAS, NÃO DEU DESTA VEZ!



Conheci um homem que se orgulhava de seus amigos.
Dizia o mesmo, alegremente, de sua vida amigueira;
De suas amizades verdadeiras – “a amizade é tudo”
O homem não entendia que na terra nada é definitivo. Dizem que tudo vira pó.
Está no pó a prova do que dizemos ou ouvimos, ou vemos.
O pó é a coisa mais sincera entre os homens.
Nossos amigos em nada diferem do pó. Cada um deles é poeira que vira poeira.
Meus amigos se escondem quando é preciso.
E eu faço a mesma coisa quando eu necessito.
Se tu és um amigo ali é porque eu sou um amigo aqui.
Cada um em seu lugar e a amizade no meio.
O melhor amigo; aquele que parece um irmão, aquele que diz o que não quero escutar é joia rara; é peça de museu, é um ente histórico; é um carro velho na contramão.
Ontem, vi o melhor amigo no centro da cidade.
Ele fazia compras; paquerava as moças; lutava por seus direitos; mas, quando em pé, defronte a prefeitura, o rapaz se calou.
O melhor amigo foi trabalhar no município; aprendeu a lição da repartição.
Ele fez amizade com todos. Dizem que nem o gato escapou.
- Estamos à disposição.
- Ele é tão bom!
- Ela é tão boa!
Nós somos um manancial de bondade;
Nós somos a falta de verdade;
Nós somos a afirmação de toda contradição. O meu espelho reflete uma multidão de faces e eu não conheço nenhuma; eu nego todas elas.
Existe uma face minha que ninguém resiste.
Existe uma face tua que também é minha que ninguém contesta.
Não temos nada escrito na testa!
Não se sabe nada do coração!
“As aparências, ó aparências!”
Nisto eu encontrei muita ciência.
O melhor amigo passou por aqui.
Deixou um bilhete; era um pedido de desculpas:
“Desculpe-me, mas, não deu desta vez!”





CADAVERES

CADAVERES

Hoje encontrei você. O horizonte estava perdido entre teus olhos. A saudade, essa cobra danada, ardia no meu peito pela moça que outrora era senhora deste coração.
Nem percebi se havia luzes na casa, e em silêncio fui ao teu encontro nas cinzas do passado.
Pois, hoje, no agora, no calor da hora; estava a menina deitada sobre seus excrementos; sua pele era pus e seu fígado era tormento.
Seus olhos eram duas azeitonas banhadas por lagrimas de conserva.
Para minha surpresa, quando eu vinha na estrada, vi o rosto de um mancebo que chorou por ti. O rapaz parecia um fugitivo apressado a descer a serra.
Ah, que triste lida de dois corações que fizeram confissões!
Ah, que saudades de tua boca mesmo tendo sido beijada por um estranho!
Ela era uma moça jovem de corpo bem talhado e fala suave; a menina que me roubou o fôlego e me levou os sonhos jazia morta naquela sala escura.
Pus-me a refletir sobre o tempo de carinho, as horas de afago, os dias e noites de felicidades, e, a peleja da falência de uma doença sem cura.
- Você não é mais o mesmo!
- Como meu amor?
- Isso que ouviste! Por favor, não comece com esse tom de pureza!
É difícil entender o coração das pessoas. É difícil antever o destino das mesmas.
Ela sumiu como sombra na noite logo depois do açoite que me deu.
Ela não deixou rastro, nem fragmentos de nada seu. Seu rumo foi sinistro; a moça, simplesmente, se foi, se escafedeu. Mas não de mim; quem sabe de si. Parece que minha pessoa para ela era como uma vela sem o mastro.
Seu cadáver inerte e fétido estava ali, bem diante destes olhos atormentados por tudo que não pode ver, ou, pelo que viu, malgrado o persistente engano da miopia.
- É só um cadáver! Todo cadáver tem uma história; tem uma prosa, e um vazio de palavras, e a ausência do ser. Todo cadáver nos lembra que somos iguais; veja, eu não sou melhor que você. Todo cadáver é quieto, manso, sossegado que nem os retratos da parede. Todo cadáver deve ser bem tratado, pois, é a última pose no mundo, entendeu? Eu entendi!
Ela estava lá e eu também. Nós estávamos lá tão juntos como sempre apesar das diferenças ou crenças.
Passamos a vida inteira em litígio, mas, naquela hora, naquela sala a demanda se cala.
O cadáver da moça necrosou, o meu também.
Os vermes nos devoraram até os ossos.
A poeira foi soprada pelo vento da rua que entrava pelas venezianas das janelas e frechas das portas.
Mas, se eu tivesse sido melhor!
Mas, se eu não tivesse dito tanta asneira!
Mas, se eu não tivesse namorado fora, e não tivesse feito tanta besteira!
Mas, se ela tivesse me perdoado!
Mas, se ela não tivesse ido embora!
Mas, e, mas; e, é, sempre, mas.
E o tempo passou...





domingo, 15 de outubro de 2017

SENTIDO

Na espera por ele;
Ela perdeu-se num pesadelo repentino.
Os anjos não cantaram como de costume;
O fim da missa não teve amém.

A crença forte tornou-se vaga;
Os homens acordaram de um sonho:
Júpiter pediu ajuda a Alá.

As idéias são muitas.
Os crentes se multiplicam nas ruas.
Do telhado das casas se ouve o mesmo barulho: Cristo passa.

Meninos e meninas juntam-se para dançar com o Mestre.

Onde estavas ontem?
Para onde fostes no verão?
Por que não fostes à África?
Por que foges da miséria?

O sol amanhã nascerá e com ele levantam-se as questões.
O sentido está no peito do viajante, escondido em suas fibras.
São os olhos que enganam; a miopia é secular.
Não espere boas novas, pois a calçada é testemunha da rua.
Não se tem em quem fiar;
Nossa pele está nua;
Nossa razão ainda crua, não dá para digerir.

Ele estava no campo.
Chovia muito.
O raio abateu-lhe as esperanças;
Um corpo na grana, um crente na eternidade.
Uma mulher a chorar.

Que vaidade!
Desperta consciência de teu delírio.
Acorda amiga minha até que beijes o bom senso.
Parece que o sentido está nas fezes.
Excrementos de meu dia a dia.
Minha eterna lembrança pastosa da infância...

A TORNEIRA

No teu olhar, o olhar do outro, a presença minha se oculta em tuas conjecturas.
Silencia o coração do solitário fabricante de ilusões.
Pergunto, e o caos atende-me quando clamo.
As sombras são pessoas que passam por aí.
E, o doce da manhã, amarga ao meio dia, no meio fio de uma calçada quente.
Cuspiram lá.
Deixaram a poeira de suas preocupações.
Estamos perdidos na razão Pós-Moderna.
Invertemos as coisas?
Criamos outro homem?
Não!
As baratas habitarão o mundo e o encherão de baratinhas.
Os escorpiões farão suas casas em nossas camas.
Se não acordarmos do anátema de sermos humanos exageradamente.
Tente!
Juntamos pedras e delas fizemos naves espaciais.
Somos senhores das máquinas.
Mestres sobre a vastidão do planeta.
Empolgados pelos nossos delírios megalomaníacos, nos esquecemos de fechar a torneira.
A água se foi, e morremos de sede...

sábado, 14 de outubro de 2017

EDITORIAL DO BLOG OUTUBRO

Permitam-me um dedo de prosa....
Quando falamos em intervenção militar a sociedade logo reage como se uma intervenção desta natureza abrisse precedentes a instalação de uma nova ditadura das espadas brasileiras. Intervenção é um recurso institucional e constitucional quando o país entra em condições de ingovernabilidade e caos social e moral. Não podemos continuar assistindo televisão de braços cruzados enquanto o senhor presidente da República comprovadamente envolvido em coisas ilícitas compra sua liberdade com o dinheiro do povo na forma imunda de emendas legítimas. A suprema corte fez seu papel, mas, os recursos daqueles que legislam em causa própria os torna acima da lei e isso fere o princípio constitucional da igualdade. Assim, sem medo ou hipocrisia, minha humilde pessoa acredita ainda que uma intervenção militar constitucional sob auditória internacional é o caminho para apurar, julgar e prender os corruptos não importando seus partidos de origem.

SOCIAL

Às vezes, sinto falta do meu rosto cravado no espelho da consciência;
Às vezes, sinto náuseas quando ouço o sopro das palavras;
Às vezes, prefiro a hipocrisia de dizer que sou hipócrita; isso me faz bem, sim, muito bem.
Há momentos que me basto; não preciso de ninguém. Qualquer ser humano seria expulso de minha sala.
Sala por vezes escura;
Sala por vezes úmida;
Sala por vezes calada;
Sala por vezes feliz.
Sala fétida, nojenta, ciumenta, assassina, cândida, cheirosa, dengosa, santa - profana sala d’alma!
Eu sou o centro da sala onde todos falam e se calam; onde o meu viver é o refino de minhas tripas.
- Ah, que saudade de minhas amigas, minhas raparigas!
- Dane-se o mundo inteiro!
- Eu sou eu!
Ando nas ruas com meus pés; não preciso do teu.
Ando nas ruas com meus olhos; a luz do dia não te imploro.
Ás vezes alegro me com o teu sorriso.
Às vezes recordo-me das canções da infância.
Às vezes aperto tua mão e sinto paz n’alma.
Isso me acalma;
Isso me faz bem.
É como os sinos de Belém, à meia noite, tocados na Igreja dos Jesuítas perto da Francisco Holanda.
Vejo um rio que corre para todos; vejo almas que se unem-cada uma trás uma flor na mão; todos tem uma esperança; todos tem uma criança.
Às vezes sinto falta do meu rosto infante cravado no espelho das horas...

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O HOJE E O ABISMO SEM FUNDO


Hoje, caminho trôpego; os passos me são difíceis embora necessários.
O sol ainda quente do dia me dizia da noite que se aproximava, e minha alma, às vezes, calma esperava a estrela que me mostrasse o norte.
Essa é a nossa sorte - a crença de que não sabemos pra onde vamos, e a tristeza, mesmo, diante da beleza de sermos humanos, tão humanos quanto a pedra ou a água que corre fria sobre ela.
Tem coisas que não posso, e tu também.
Tem vento que gela meus ossos, o teu também.
Tem dia que a manhã é escura, e o sol não tem ternura pra te dar. É apenas um dia, seja de noite ou de dia; são apenas minutos, horas ou um relógio apressado cheio de covardia.

O meu passo perdeu o seu ritmo. Não há simetria, nem maestria na estrada escorregadiça cheia de certezas como flores sobre mesa. O teu calo é teu e o meu só meu, contudo, a dor é nossa; ela é a herança de nossos pais. É a verdade que coagula como o sangue em sua poça.

Ah, verdades mil!
Ah, conselhos que nos chegam e não cessam!
Ah, que mundo sabido cheio de seres combalidos, simplesmente, pela dor de ser!

Hoje, o que sei é que o ser espera ser a cada dia um pouco mais de um pouco de si mesmo. Um pouco aqui, um pouco ali, ajeita isso ou aquilo; espera mais, ou mínimo de alguma outra coisa que nem sabemos onde estar e o que é. É assim que somos, e nossos sonhos vão a marte, mas, também, nos trazem à morte.
No entanto, dizes tu que és forte. Tua carreira parece a primeira da terra, e desta forma, pensas tu que és mais que os homens, sim, aqueles que como tu são pó na cova; essa deve ser a tua prova, somente tua, pois cada um se recolhe como pode.

Ontem, eu sabia de tudo sobre meu mundo. Conhecia minha rua, minha velha vizinha que me espreitava à porta nas horas da ida e da chegada, e à mesa após a ação de graça a velha cuspia a baba repugnante de seu cachimbo. Ontem, eu era jovem, ou criança; a pressa era minha amiga e a paciência um caduca rabugenta. Ainda no meu mundo só há a viagem, ou uma mistura de paisagens sem a lembrança da parada final na rodoviária.

Oh, que tédio morrer assim!
Oh, que morte ruim! É verdade que o óbito é um sapo costurado na boca com tua foto dentro.
Não adiante, a fatalidade não tem idade quanto mais a segurança da necrose quando o sangue não circula.
Mesmo assim, eu sou um tolo! Continuo acreditando que amanhã eu suarei ao sol do sertão de Campos. Que todos os meus sonhos vão estar lá, sim, lá, bem perto de mim. Isso deve ser e continuar sendo, pois, mesmo morrendo eu quero viver.

Hoje, eu quero viver o hoje, o agora, sem focar o ir embora; viver como dizia o poeta Drummond “sem sofisticações, simplesmente, viver”. Mas, isso não me é, plenamente, possível! A fome de meu estômago nunca cessa, nem a vontade dizer se aquieta, nem O movimento das calçadas perde a pressa. O ser é um complexo de vozes que o atormenta, o ser é um abismo sem fundo, só queda...