segunda-feira, 31 de outubro de 2016

ANÔNIMOS

ANÔNIMOS
Por ROOSEVELT VIEIRA LEITE

Comumente as pessoas dizem que o povo não tem rosto. Outros comentam que o povo não tem vontade; é massa amorfa. E ainda existem aqueles que são sábios e entendidos e que asseveram que o povo não diz ou que povo não tem fala...

A feira livre é um lugar em que se pode confirmar ou refutar as teorias acima. Em Parangaba, no estado de Sergipe del Rei existe uma feira que já foi cartão postal da cidade. Os mais idosos falam dos tempos idos quando o povo da capital dizia: “Vamos a Parangaba”, o povo queria dizer: “Vamos a Feira”. Clodoaldo, aos sábados, fazia feira em Parangaba religiosamente; ele e sua esposa nunca perderam uma feira desde que se casaram. Clodoaldo era funcionário público, “tinha o seu” como dizia para os amigos, mas, gostava de ajudar dona Bispo nas feiras de Parangaba. O rapaz de 32 anos, estatura média, cor morena clara, olhos claros acastanhados, e cabelos pretos como a noite havia se afeiçoado por uma dona de beleza singular. As mulheres de José Freire possuem uma beleza sem igual. São altas, brancas, olhos azuis ou esverdeados, e corpos de estrelas de cinema. Dona Bispo era uma delas. Uma jovem freirense, no começo da vida. “Eu num perco tempo não”. “De trabalho eu num corro, macho”. Dizia a feirante para seu marido.
Parangaba foi fundada em 1920. Com uma economia voltada para a agricultura, e uma localização geográfica privilegiada por estar no agreste itabaianense a terra das areias brancas cresceu e prosperou. Parangaba é um município sergipano situado no pé da Serra de Itabaiana. A cidade recebeu esse nome devido à cor de seu solo. Diz o povo, e ninguém sabe ao certo, é que Parangaba já foi mar. A povoação iniciou com a doação de uma grande porção de terra pelo senhor José Nogueira Neto, que doou uma área de lagoa seca a pessoas carentes. A povoação de Parangaba foi fundada pelos senhores Celestino Montalvão de Oliveira e Getúlio Rodrigues do Nascimento. As pessoas vieram morar na terra dada por seu Celestino no lugar onde hoje é a Igreja Matriz de São João Batista, padroeiro da cidade. A povoação passou a categoria de município em 11 de novembro de 1963.
- Clodoaldo, num estou me sentido bem. Disse dona Bispo para seu Marido enquanto apertava a cabeça. Dona Bispo havia tido um sonho com a feira. O sonho lhe dizia que a feira daquele sábado seria muito sofrida. A mulher viu o céu escurecer, e do céu caíam chamas de fogo.
- Mulher, se você num for eu num vou.
- Num diga isso não, homem.
- Meu amor sem você a feira não tem cor.
- Então vamos. Dona Bispo respirou fundo, pegou o carro e desceu para a cidade das terras brancas. Por volta das quatro e meia da manhã, o casal termina de arrumar a barraca; naquele sábado o casal tinha: Tomate, chuchu, cenoura, pimentão, cebola branca e vermelha, quiabo bem molinho, mamão, laranja, abacaxi, jenipapo, melão, coco, manga, e maracujá. Cada feirante tem seu produto e cada um tenta se virar com o que tem; agora era só esperar o povo chegar. Às cinco horas, a freguesia aparece.
Em toda feira do mundo aparecem tipos variados de pessoas. Dizem os mais velhos que a feira é um pedaço do mundo com o mundo todo dentro. De manhã cedo, não se liga som, mas, o falatório do povo parece uma melodia ritmada com diversas notas musicais. Tomezinho fala quase gritando sobre a mulher de Olegário, um amigo seu morador do povoado Rio das Pedras, que fez uma promessa para sua amada emagrecer: “E Olegário andou de joelhos até o topo da Serra do São José com uma pedra de 3 quilos na cabeça; o coitado fez isso na intenção de Santo Antônio”. O povo em voz uníssona disse que era muito amor. Contudo, nem todos viram a promessa de Olegário com essa lente: “Eu acho mesmo é que Olegário está emacumbado”. Dona Carla do povoado Jenipapo, membra da Comunidade Cristã “O Poder da Fé” clamou o sangue de Jesus na presença de todos. Entre uma conversa e outra, a vida particular das pessoas vai se tornando coisa pública. Mas, o que o povo da feira não perdoa mesmo neste prelúdio de feira é a vida dos políticos, mesmo com a mordaça do coronel; o povo quebra a norma, e abre o verbo com o vernáculo mais popular possível: “Será que vão acabar com a Bolsa Família?” “Se o tale de Temer fizer isso, vai ter guerra”. Disse um vendedor de macaxeira cujo apelido era “neguinho”. Na verdade, o homem nada tinha de negro. O apelido surgiu quando o povo descobriu o sinal de nascença que o mesmo tinha na nádega esquerda. Por muito tempo, o povo do povoado Cajaíba comentou o fato - O sinal de nascença do Senhor Evangelista Souza. Mas, a coisa ficou feia quando sua esposa questionou, no salão de beleza, como o povo descobriu a manchinha do marido. Na feira nada fica oculto, parece que nos becos e avenidas da feira, o arcano clarividente do Cristianismo se cumpre na letra: “Nada fica oculto aos olhos de Deus”, mas, na feira, é aos olhos do povo.
A conversa cessa um pouco, a freguesia acordou; o relógio do Mercado da Carne, o popular “Taio de carne” marca seis horas. Os vendedores de cds e dvds piratas ainda não iniciaram sua propaganda musical; para ser sincero, é uma verdadeira guerra santa entre os concorrentes, e a consequência de tudo isso é o povo ouvir de tudo, a feira toda. Na feira de Parangaba, o freguês pode comprar todos os sucessos do Brasil e do mundo pela bagatela de três reais. Como certa feita afirmou o sociólogo Marcos Damasceno: “A pirataria é uma contracultura, e ademais, é uma forma de democratizar o acesso à cultura oficial”. “Bem, se isso é fato, ninguém sabe, mas, que a cultura legal é cara é”. Esta foi a assertiva do vigário local, todavia, o povo da feira não gosta muito dessa figura religiosa, pois, o cidadão de fé pressionou a vossa excelência a prefeita local, dona Munique Nunes a mudar o dia da feira para o sábado. A intenção do religioso era aumentar a quantidade de fiéis na missa de domingo: “Vossa excelência tem que entender que para os católicos do mundo inteiro, o domingo é um dia santo; Jesus ressuscitou no domingo; a senhora é católica?” A mudança da feira para o sábado, segundo seu Melquizedeque, um feirante de José Freire, foi uma desgraça: “Faz trinta anos que trabalho aqui; a feira era quase a cidade toda, agora se resume a esse quadrado; tem mais vendedor de que cliente”. O desabafo de Melquizedeque expressa a opinião da maioria. De fato, a mudança da feira do domingo para o sábado afetou os negócios de forma considerável:
- Esse filho do canso é um cabrunco!
- Home num fale assim do padre, ele é um homem de Deus.
- Homem de Deus é uma peste! Comadre eu num vendo mais nada!
- Mas, rapaz quando Deus fecha uma porta ele abre uma janela.
- Pois, pra mim num teve janela, não; só se for janela de cadeia.

Em Parangaba, a feira é motivo de festa. Os mercadinhos, os bares, os restaurantes, e as pousadas das proximidades faturam com o fluxo de gente. A feira é um imã que atrai gente de todo o agreste e sertão sergipano. Por esta razão, é possível ouvir diferentes sotaques e falas que caracterizam a linguística sergipana. Uns dizem “mutxo” no lugar de muito, outros dizem “tu”, no lugar de você. Os diferentes falares não estão só na fonética ou sintática; a coisa penetra, também, à semântica; o verbo estufar, por exemplo sai de seu sentido lexical como meter em estufa, secar em estufa, ou intumescer ou inchar o peito, e assume o sentido de aparecer em um certo lugar: “Eu esperava Paulo à esquerda da Mons. Tavares, mas, ele estufou na Pedro Ribeiro”.
Na cidade das terras brancas, a feira marcha adiante, nada a faz parar; é como se fosse o imperativo da vida, ou a própria vida pulsante. As pessoas, os seus diferentes papéis como feirantes, clientes, turistas, curiosos, ou apenas gente, sim, gente que vem; gente que vai e que representam a alma de nosso povo; um povo alegre de uma terra cheia de musicalidade, de uma sociedade que não cessa de crer e esperar por dias melhores. Em Parangaba, a feira é musica, é folguedo, é trabalho, é sofrimento, é dor, é vida, sonho e som, pois, de um lado, ouve-se o acordeom, a sanfona do trovador e do repentista, e de outro, as músicas baianas fazem o show. Os botecos ao redor da feira disputam espaço com as barracas de pinga serrana. Dizem as pessoas que esta é a melhor serrana do estado. Seu Antônio, um antigo vendedor de cigarro, charuto, fumo de rolo e pinga, certa feita disse: “Num adianta lutar contra nós, eu vendo a melhor cachaça do mundo”. Os bêbados que se amontoam em torno de sua barraca concordaram unanimemente com a declaração do comerciante. Seu Antônio convive com os etílicos há muito tempo; ele conhece a alma desse povo: “Beba, meu filho, beba! Esqueça-se da mulher”. “Oxente, macho!” Deixa essa história pra lá!” “Tome uma que passa!” Foi assim que a relação vendedor e consumidor foi crescendo e Antônio se tornou o maior comerciante de cigarros e pinga da feira. “Fumo bom é com Antônio”.
A segunda maior feira do agreste sergipano, a feira de Parangaba, atrai feirantes de todo canto. O casal Clodoaldo e Bispo é prova disto. Clodoaldo e sua mulher estavam totalmente envolvidos na rotina da feira. Dona bispo havia pedido um cento de sacos plástico de um quilo, um cento de sacos de dois quilos e um cento de bolsa grossa que serve para por cocos. Dona Bispo era mais experiente de que seu marido, ela sabia a quantidade certa de tudo e podia prever, horas antes, se a feira seria boa ou não:
- Hoje, Clodoaldo, a feira será “meiada”. “Meiada” é um termo linguístico da região que quer dizer “nem muito nem pouco”. Seu marido discorda dela:
- Num vai ser meiada, não, mulher. Está todo mundo comentando que a feira de hoje é a feira do ano.
- Homem, eu conheço isso há mais tempo que muita gente aqui. De fato, dona Bispo se criou na feira. Seus pais a traziam para feira desde criança. Com isso, a menina Bispo aprendeu todos os truques e sabia de todas as mazelas da profissão de seus pais. “Pois, eu digo: ‘Muita gente num é prova de sucesso’”. Seu marido sorriu para sua mulher e pensou consigo: “Eita mulher sabida”. Os dois se amavam. O funcionário do Estado de Sergipe teve problemas com sua ex-esposa Clementes. O rapaz casou-se cedo e deu tudo de si para ser feliz com a mulher de sua mocidade. Segundo Agnaldo Ribeiro, um comerciante de Campos, a mulher de Clodoaldo era ninfomaníaca. Não poucas foram as vezes que Agnaldo avisou ao amigo que sua amada estava com o Manelão em seu motel de luxo: “Clodoaldo, amigo, Clementes acaba de chegar com o Manelão”. O marido fiel e bom ia pegar sua amada no motel e sofria por isso a execração pública. Com o tempo, Clodoaldo viu que não era só o Manelão a fraqueza de sua amada, na verdade, era Rubinho, Miguelzinho, Carlinho e outros. Um dia, a paciência acabou, e Clodoaldo deixou sua amada: “Mulher, a ingratidão tira o afeto”. Clodoaldo foi para José Freire onde conheceu dona Bispo, e Clementes continuou sua filosofia de vida. Comenta o povo da Rua Itabaianinha, em Campos, que a mulher se escafedeu pelos sertões de Poço Verde com um vendedor de novelo de linha.
- Bispo, seu Martins não veio ainda pegar os cocos.
- Rapaz, eu estava pensando nisso agora.
- Será que ele está doente?
- Num sei, mas, ele reclama muito dos problemas de coração. Seu Martins era um policial aposentado. O tempo de policia lhe deu muita sabedoria e trato com a pessoa humana. Sempre quando ele vinha, a prosa na banca Bispo era muito proveitosa. Os comerciantes das bancas próximas interagiam na conversa e a coisa crescia quando o assunto era Política sergipana e nacional. Cada um dava sua opinião. O povo da feira comentava sobre seus problemas e quase sempre culpava a classe política, e quando isso ocorria Martins ficava vermelho, coçava o bigode e levantava a voz: “Tenho 76 anos, trinta anos de policia; tratei com todo tipo de bandido, mas, igual a esses nunca. Essa classe de gente devia era pegar prisão perpétua”. O povo quando via o sargento Martins expressar seu pensamento entrava num tipo de transe: “Martins é muito sabido”. Todos gostavam dele, por isso sentiram sua falta naquela feira: “Clodoaldo, dona Angelina disse que Martins não apareceu em Parangaba”. “Eu vou limpar os cocos e por no saco, quem sabe perto das 11 ele apareça”. “Não, homem, num limpe não porque se ele não aparecer a gente toma prejuízo, apenas separe os seis”.
A feira de Parangaba continuava com o vento em popa. Contudo, os tomates, os pimentões, e outras verduras não saíam, ou seja, o povo estava achando caro o preço. O preço caro das verduras era por causa do cartel formado em Itabaiana. Na cidade Princesa da serra, os atacadistas de verdura tabelavam o preço e por isso forçavam o varejista a vender caro ou vender tudo a preço de nada. No caso do tomate e dos pimentões que boiavam nas barracas foi por causa dos feirantes que venderam o saquinho de um real em vez de vender no quilo. Essa é uma estratégia para não tomar prejuízo. No saquinho, o cliente tem a impressão que leva vantagem, e isso na feira é o que mais interessa. “Estão vendendo no saquinho, Bispo”. Clodoaldo e sua mulher prepararam a artilharia e o capitalismo local consagrou mais uma vez a lei da concorrência. Mesmo assim, a feira não estava bem ou boa. Todos se queixavam que não daria para cobrir nem as mercadorias quanto mais levar dinheiro para casa. Os vendedores de cds e dvds piratas, nesta altura da feira, vendiam seus produtos e tocavam suas músicas naquela altura típica das feiras locais: “Máximo volume”. É nessa hora que o povo sofre a hipnose coletiva que varia sua forma de acordo com a letra da música ou a melodia da mesma. Era época de São João, as músicas juninas de todos os tipos inundaram o lugar, o povo cantarolava seus sucessos enquanto esperava alguém surgir, ou quando vendia suas coisas. As barracas de carne assada e cerveja, e os restaurantes de lona adaptados ao redor da feira disputavam com a pirataria junina usando o Axé pirata. De pirata para pirata, as prostitutas que comumente prestam seu serviço social na feira dançavam ao som de “Mamãe deixa eu quicar” ou com o sucesso “Atola toda”. Isso provocou as irmãs do terço de Nossa Senhora do Bom Parto, que exatamente, naquela feira estavam vendendo os bilhetes da rifa para o evento: “O balaio de Nossa Senhora do Bom Parto”, no povoado das Flechas, em Itabaiana. O intuito das religiosas era levantar recursos para a construção de uma capelinha no dito povoado.
- Mas, é um absurdo! Em plena luz do dia, uma gente dessa estirpe se exibindo na frente das famílias! Os homens que se encontravam nos estabelecimentos discordavam das religiosas, mesmo assim, as irmãs de caridade queriam parar o show.
- Absurdo porque dona? Pergunta a menina de vida fácil, Cosminha.
- Não dirija sua palavra mim, sua pervertida!
- Mas, onde já viu uma coisa desta querendo me rebaixar! Retaliou Cosminha. A pequena multidão que se formava em torno da cena concorda com a moça.
- Uma coisa desta!!! Continuou Cosminha.
- O que sua prostituta barata? Revidou a religiosa segurando os bilhetes na mão. A religiosa era dona Pureza, a presidenta do terço do povoado das Flechas. Ela era uma senhora afro descendente, de porte alto e forte. A mulher era uma boa amostra do povo de mãe África. Cosminha odiava ser chamada de ‘puta barata’ por isso investiu mais uma vez contra a religiosa.
- Foram os perdidos que Ele procurou; seu tição do cão! Ao ouvir a palavra tição, a religiosa soltou os bilhetes e partiu pra cima de Cosminha que de imediato, num ato reflexo pulou para cima do balcão do bar adaptado. Lá de cima a mulher requebrando o corpo sensualmente dizia: “Isso você num tem, neguinha, e eles adoram”. Os rapazes gostaram da cena e aos gritos gritavam “Cosminha”; as demais moças da vida fizeram o mesmo e com isso a feira prestou atenção ao caso. Ora, as meninas dançavam e se requebravam, ora os homens diziam o que queriam a elas e o clima tornava-se cada vez mais tenso. A religiosa, não parou e continuou em coro com suas colegas: “Vamos chamar a polícia, isso é atendado ao pudor”.

- Clodoaldo! Armaram o “barraco” com as putas da frente.
- Como rapaz?
- Dona Bispo! Lembra-se de Cosminha aquela prostituta que faz vida nos canaviais?
- Lembro. Num lembro o que homem? Pois, ela arrumou confusão com as mulheres da rifa do terço.
- Num diga! Eita, mundo perdido! E agora?
- Já chamaram a polícia.
- Polícia! Exclamou Clodoaldo.
- Sim, Clodoaldo, e o pior é que o delegado Peixoto está de plantão hoje. Clodoaldo pediu licença a sua esposa e foi com o mensageiro ver o caso.

Embora tenha confusão na feira, ela não para de verdade, pois, o povo sempre insiste no que quer. E esse é o caso dos carregadores também. A feira tem de tudo, e os carregadores prestam um serviço sem igual. Sem eles, a feira perde seu dinamismo. Isto pode ser comprovado pelas madames; essas senhoras, não gostam de carregar peso, e por muitas razões; suas feiras são frequentemente gordas, tão gordas como suas contas bancárias, ou de seus maridos, ou dos dois, Deus o sabe. O carregador mais solicitado da feira é o Mundinho. Mundinho é um afro descendente de porte elegante. O rapaz nasceu e se criou em Laranjeiras, mas, sem estudo, e sem recursos, foi para o canavial, logo em seguida, comprou um carrinho de mão e foi fazer ‘carrego’ em Parangaba. O rapaz fez uma conta muito simples. Um carrego simples custa cinco reais, um mais pesado, ou mais distante chega a dez reais. Se fizer 10, 20 carregos por feira mais descarregar e carregar os caminhões, eu faço algum dinheiro, e depois, tenho a semana toda para fazer outros bicos. Mundinho se profissionalizou no frete de feira e se tornou no mais solicitado. Mundinho trabalhava sem camisa e de bermudas. Seu corpo era atlético, podia-se ver toda a anatomia do sistema muscular humano. As mulheres adoravam o serviço de Mundinho; naquela feira, na hora da confusão, apareceu o momento que dona Valterlene esperava ansiosa a mais de mês.
- Mundinho leve minhas coisas! Havia poucas pessoas do lado de dentro da feira. Assim, quase ninguém viu Mundinho e dona Valterlene, a galega mais volumosa da cidade. Parangaba, como as demais cidades do agreste de Sergipe teve no século XVII a influência holandesa. As marcas da passagem do povo do Norte da Europa estavam estampadas no fenótipo de muitos munícipes da terra de São João Batista. Valterlene era uma prova inconteste da história. Uma mulher de tipo e de beleza muito cobiçável. Seus cabelos ruivos mais os seus olhos verdes deixavam qualquer um de queixo caído, ou como dizia o finado Antenor, que Deus o tenha na pátria celestial: “de espada na mão”.
- Pois, não, dona Valterlene! O rapaz posicionou seu carrinho para colocar as coisas dentro; a senhora o ajudava e foi nesse instante que os dois se olharam. O rapaz a olhava como que visse um lombo de carne de boi de primeira cozido no molho madeira, e ela o via como um Anjo da Luz caído em suas mãos. No percurso, a senhora manteve-se a certa distancia do moço. “Valterlene, minha filha a aparência e a discrição são tudo para uma dama”. “Sim, mamãe”. A menina de oitos anos aprendeu a sabedoria das senhoras aos pés de sua amada genitora. “Nunca dê pistas de seus segredos, uma verdadeira dama, sempre se mantêm distante de falatórios”. “Sim, mamãe”. A casa de Valterlene distava uma distância razoável da feira, por isso, a viagem seria de uns vinte minutos. Para Valterlene seriam minutos críticos. A galega tinha seu coração acelerado, mas, Mundinho não; a galega tinha seus olhos atentos a todos e a tudo, especialmente, a dona Firmina, a velha da conversa, mas, Mundinho não; a bem de toda a verdade, Mundinho era apenas um carregador de feira; mas a Galega Valterlene tinha uma reputação a preservar. “Valterlene, lembre-se todos os dias de quem você é filha”. “Sim, mamãe”. “Valterlene, seu pai é filho de um dos homens mais ilustres do Povoado Ribeira, ele comia na casa do prefeito”. “Sim, mamãe”. Valterlene casou com um comerciante de agrotóxicos e foi morar em Aracaju. O tempo vivido na cidade grande não foi muito bom, ademais, seu amado esposo teve um aneurisma e faleceu. Valterlene vendeu o negócio para o sócio de seu amado e voltou para sua terra, desde então, a galega de Parangaba mora só, e nos finais de semana frequenta a Igreja Cristo Nova Esperança do Pastor Inácio. Os dois estavam chegando ao destino. Dona Firmina seguindo a tradição montava plantão na minúscula área de sua casa. Ela viu e ouviu quando Valterlene pediu ao rapaz para entrar: “Mundinho, tu podes me ajudar a por tudo para dentro?” “Oxente, dona, num tem problema!” O rapaz viu aquilo como algo não usual, mas, não era motivo para saliências. Sua experiência lhe dizia que esmola demais o cego desconfia. Os dois entraram na residência; dona Firmina se ergue de sua cadeira de ferro e entra para gretar melhor de sua janela da sala da frente que possui um buraquinho estratégico: “Vou ficar de olho nos dois, aí, tem treita!”
A velha Firmina era uma senhora viúva que morava com o neto Bartolomeu. Firmina aos 77 anos não fazia outra coisa, exceto, passar sua vida de aposentada observando a tudo que se passa na rua ou onde ela pode ver. A solidão, a falta de seus amados e a preocupação com o rapaz que criava a fez uma pessoa presa ao seu mundo, a única janela para fora que ela tinha era a dita janela da frente; com um banquinho de madeira, e todas as horas livres a idosa podia olhar o mundo externo e ver televisão ao mesmo tempo. “Mundinho entrou e até agora nada dele sair, aí, tem coisa estranha; oh, Bartolomeu, vá correndo chamar a comadre Nadir”. O rapaz foi num raio e voltou como um trovão: “Ela disse que vem já!” “Psiu, deixa de zoada moleque, num tá vendo que estou ocupada!” “Mas, ocupada com que, vó?” “Fique lá fora e veja se escuta o que Valterlene e Mundinho estão dizendo!” “Onde eles estão?” “Dentro de casa abestado, dentro de casa!” “Tá bom, vou ver!” O rapaz pôs o ouvido na parede que dava para um terreno baldio. A parede era a parede da cozinha de Valterlene, todavia, o rapaz nada ouviu. “Eles estão falando baixo, vó” “Oh, criatura de Deus, onde já se viu se ouvir a conversa dos outros desta forma, és retardo é?” “Entre de fininho no hall e veja o que escuta; coisa burra!” “Pera, aí, né vó; agora a senhora passou dos limites” “Caminha menino, faça o que estou mandando!” Bartolomeu abriu o portão de ferro da casa, entrou no hall de mansinho, e se pôs a ouvir a conversa dos dois.
- Mundinho, me explica aí essa vida que vives! Valterlene deu um sorriso. O rapaz envergonhado lhe responde como pode.
- Vida como? Trabalhar na feira é a única coisa que se tem aqui. Em Parangaba, ou tu trabalhas para a prefeitura, na roça e no canavial, ou na feira, num tem mais nada.
- Você deve levar cada cantada! O rapaz baixou a cabeça e nada disse em retorno.
- Tá com vergonha de dizer! Vamos Mundinho abra o jogo! Valterlene estava perdendo o rumo que sua genitora lhe ensinara.
- Não dona Valterlene, as mulheres daqui nunca me assediaram. Meu trabalho é como qualquer um.
- Qualquer um como, Mundinho! Onde se trabalha nu da cintura pra cima? Elas quando veem esse muque ficam doidas! O rapaz deixou as coisas na cozinha e caminhou na direção da porta da frente quando escuta novamente a voz de sua contratante: “Venha tomar um cafezinho, está bem quentinho e bem pretinho”. Mundinho tentou recusar o convite, mas, a dama foi mais insistente: “Senta ai moço, deixa que te sirvo”.
O delegado Peixoto chegou e encontrou a confusão feita na feira. A moça livre Cosminha discutia com a religiosa enquanto o povo dizia o que pensava sobre o ocorrido.
- Eu num acho que as meninas fizeram alguma coisa errada. Afinal, diversão é diversão. Disse o moço Ptolomeu, vendedor de nós moscada.
- Eu discordo. Disse Márcio, um cidadão de trinta anos vendedor de vassouras de palha.
- Eu acho que Peixoto vai enquadrar as duas por tumultuarem a feira. Disse seu Vasconcelos, um vendedor de baldes, bacias e artigos de ferragens.
- Eu num quero saber das opiniões de vocês. Disse o delegado Peixoto. A autoridade policial estava acompanhada de seus dois homens de confiança: O primeiro era o soldado Cruz, e o segundo era Leu, o cabo. Cruz era um moço de 35 anos, um rapaz não muito inteligente, contudo, concursado. Leu era um senhor de meia idade que entrou para policia quando tinha 23 anos. Naquela época, por meio de um trem da alegria e da influencia política entrou para as forças policiais.
Na feira, todo mundo tem alguma coisa para dizer, seja verdade ou mentira, mito ou realidade, fato é, na feira de Parangaba o povo diz o que pensa ou acha ser justo:
- Mas, sua pessoa num pode fazer assim. É abuso de autoridade! Externou seu ponto de vista, Rodrigo das maçãs.
- Mas, você num é besta para me dizer o que eu devo fazer num é rapaz. O humilde vendedor de maçãs travou os beiços e se amuou. Então continuou Peixoto.
- Bem, vamos ouvir as partes. A senhora religiosa tomou a palavra e contou sua queixa. O mesmo fez Cosminha. O delegado Peixoto tentou apaziguar as coisas, mas as duas mulheres, resistiram segundo suas convicções. “Eu quero que a lei acabe esta farra devassa!” Bradou a religiosa. “Não senhor, nós fazemos isso todas as feiras e nunca ninguém reclamou, e além do mais quem vem para cá é maior de idade, e aqui num tem mulher de família”. O cabo Leu e o soldado Cruz como por instinto, concordaram com a prostituta. A religiosa não gostou e explodiu de fúria na frente de todos: “Pois, eu vou para a imprensa de Itabaiana, e vou contar o que se passe nesta feira”. “É muita falta de vergonha!” Apoiaram a religiosa suas amigas e simpatizantes. Ao ouvir a palavra “imprensa”, Peixoto lembrou-se das rádios de Itabaiana; o homem corou as maças de seu rosto e olhou para seus companheiros. Leu franziu a testa; Cruz fez o sinal sagrado dos cristãos e depois beijou a mão. “O que é isso macho?” “Tá doido?” Exclamou o delegado. “Vamos todos para a delegacia, então”. Encerrou o assunto, pelo menos no momento, a autoridade da lei.
Enquanto isso, uma ventania forte e repentina desceu a serra de Itabaiana assobiando sobre Parangaba, e com ela nuvens negras cobriram o céu. Valterlene e Mundinho faziam amor no quarto, quando a porta da frente abriu com a força dos ventos e com ele Firmina e seu neto entram na sala da casa. “Oi!” “Tem gente?” “Mulher, eu vi a porta estufar para dentro deste jeito, e vim ver se tinha alguém em casa”. O casal se pôs quieto, cada um segurando sua respiração. A idosa prosseguiu. “Oi, ô de casa, tem gente?” Alguns minutos depois, a idosa se deu por satisfeita, virou-se para seu mancebo neto e lhe disse: “É meu filho, num tem gente não, vamos fechar a porta, quem sabe Valterlene ainda não chegou da feira”. O menino concordou com sua vó acrescentando que ela chegaria com Mundinho. O vento não dava tréguas. Nuvens escuras cobriram os céus de Parangaba. Nas barracas da feira não se comentava outra coisa: “Mundinho torou a galega Valterlene”. As opiniões eram diversas, cada um segundo seu mundo, dizia o que achava ser o certo:
- Eu acho que Valterlene e Mundinho tem todo o direito de serem felizes.
- Pois eu discordo. Uma mulher de família com um desqualificado daquele.
- Mulher, deixa de ser preconceituosa; só porque o rapaz é negro!
- Sabe de uma coisa, as coisas nem sempre são o que parecem. Isto é coisa dele, o demo.
- Bem que eu desconfiava; quantas vezes vi Valterlene pelas bandas da casa de pai Maneco.
- O Mundinho deve ter parte com o chifrudo, pois, uma mulher destes tipo num é coisa pra todo mundo não.
- Na atualidade, a relações sociais são fluídas e multifacetadas. As pessoas comentavam o ocorrido e não olhavam para cima. O forro do teto da delegacia gemia com a força eólica e as nuvens se tornavam mais densas e escuras. As duas mulheres e suas acompanhantes davam seu depoimento e enquanto isso, na feira, Clodoaldo e sua mulher vendiam verduras e frutas para seus últimos clientes. O casal mal olhava para o outro; aqueles seriam os últimos minutos de mais uma feira. Nem o vento, nem as nuvens escuras desanimaram o povo; a feira marchava adiante. Os papéis voavam do chão flutuando livremente no ar, e depois caiam sobre cascas de cana, restos de quiabos, folhas de cenoura, alface, pedaços disso e daquilo. O toldo instalado sobre as barracas tremia como que quisesse dançar com a irmã ventania. Sempre foi assim, a feira resiste a tudo, pois, ela é como a alma do povo nordestino. O Brasil herdou um povo que a nada se verga. “Clodoaldo, ponha as cebolas no saco enquanto eu arrumo os tomates na caixa”. O casal Bispo pôs as coisas no caminhão e junto com os demais feirantes seguiram estrada para José Freire. A feira ficou atrás, mas, em Parangaba, o povo percebeu algo estranho no céu. As nuvens formaram um anel e dentro dele um olho enorme se formou. O olho era alaranjado, da cor de tangerina, e as nuvens variavam as cores, ora eram cinza escuro ou ora eram cinza abacate com tons de violeta. Os ventos ficaram mais agressivos e o povo temeu: “É o fim do mundo!” Gritou, o irmão Farias e acrescentou diminuindo o tom de voz: “É a volta de Jesus”. “Que nada de volta de ninguém, vai ter é um temporal”. Disse seu Tiago que comia um pedaço de melancia e cuspia os caroços no chão. No caminhão, o casal Bispo, também percebeu o céu. Clodoaldo olhou sua mulher nos olhos, apertou sua mão direita e lhe disse: “Desde o primeiro dia que te conheci, eu vi que viveríamos o melhor do mundo, te adoro”. Dona Bispo sentiu seu coração acelerar com a voz do esposo; lembrou-se do sonho que tivera antes, e pensou consigo: “Meu Deus que tempo é esse?”. Os trovões ribombaram, o céu tremeu e a feira foi para dentro do mercado de carne. Os raios rasgavam os céus desde a serra até o vale atrás da cidade. O povo ouviu sobre os toldos e telhas do mercado de carne o som de água, era como se fosse uma chuva fina, uma garoa. Tomé, um carregador de dezesseis anos olha para o céu para ver o que era; uma gota cai em seu braço esquerdo, era uma minúscula gota da chuva que principiava cair sobre a cidade. O rapaz traz o braço ao nariz, cheira e grita espantado: “É merda!” O olho, no alto do céu contraiu seus anéis que formavam um corpo com três circunferências concêntricas. Os trovões apavoram a cidade do pé da serra e certamente toda a Itabaiana via tudo. O tempo fechou por completo não havia um lugar no céu que não fosse de cor cinza escuro, as nuvens formavam uma massa grossa estacionada sobre os municípios daquela região ou, talvez do estado. Os cachorros que frequentam a feira se esconderam debaixo das barracas; os animais latiam e uivavam como se fosse noite de lua cheia. Aos poucos, o silencio foi se instalando no lugar; aquelas pessoas antes alegres e descontraídas tornaram-se caladas e pensativas. A reflexão sobre o que estava ocorrendo tomou conta das mentes. Alguns riam baixinho, outros choramingavam como que sentissem que havia algo estranho. Os céus ribombaram sete vezes, e o som dos trovões cresceu sete vezes. O povo gritou de medo e chamou por Deus. Seu Marquinho prometeu a Deus que nunca mais mentiria para sua mulher. Carlos prometeu que ia parar de beber se o mundo não acabasse; Netinha repetiu sete vezes o Pai-Nosso, e para cada um três Ave-marias.
Clodoaldo e sua mulher viram quando o céu se enrugou em torno do olho e depois se ouviu um estrondo que fez as pedras da serra caírem; depois do estrondo caiu do céu uma chuva caudalosa; era uma substância excrescente. “Mãe, é bosta!” “Está chovendo fezes do céu”. Disse o Padre Gil para sua paroquiana Margarida. A chuva caía sobre a terra; as pessoas se esquivavam do excremento humano, contudo, com o tempo, as ruas, as avenidas, as valas e tetos de casas e prédios estavam cobertos de fezes. O cheiro subiu; com isso as pessoas reclamaram. Para nada serviram as queixas; montanhas de fezes se acumulavam em todo canto, e os céus não davam tréguas. Subitamente, raios caíram em pontos específicos de toda a região; muitas pessoas foram abduzidas. Entre elas estavam: Clodoaldo e sua amada, Mundinho e sua galega, e o delegado com suas meninas encrenqueiras. Essas pessoas se viram a navegar num mar de excrementos humanos. O mar era grande, não se podia ver uma margem, ou uma ilha; mas, havia uma corrente que os levava para algum lugar: “Vamos nadar meu amor, vamos seguir a corrente”. Dizia Clodoaldo, com voz cansada, a sua amada. As demais pessoas faziam o mesmo, no entanto, todas estavam quietas e seus olhos olhavam para frente. O cheiro das águas, no princípio foi insuportável, depois de algumas horas, as pessoas notaram que não mais incomodava tanto. A densidade do líquido excrescente era muito grande. Era quase impossível alguém afogar-se, exceto se o cansaço a tomasse. Na verdade, eles estavam atolados no excremento e este os arrastava para algum lugar.
- Sejamos racionais! Iniciou uma prosa o delegado Peixoto.
- Se o liquido esta correndo, então ele deve está indo para um lugar mais baixo.
- Com certeza! Concordou Mundinho e com ele Valterlene.
- Sim! Todos foram unânimes.
- Vamos evitar fazer esforço e deixar a natureza agir. Concluiu Peixoto.
O mar de excremento tinha vida própria. Em alguns lugares, a corrente diminuí; a marcha das pessoas fica mais lenta. Nesses pontos surgiam seres estranhos; eram figuras humanas cuja alma havia sido adormecida. Essas pessoas diziam as mesmas coisas; repetiam as mesmas palavras até a exaustão. “Faça a sua parte”. “Faça a diferença”. “O mundo será melhor”. “Tente, invente, faça um futuro diferente”. “Somos todos iguais”. “Não polua a natureza”. Havia aqueles que sugavam a alma das outras pessoas e depois colocavam um fantasma dentro. Quem passasse por isso, teria sua consciência roubada. Todas as suas memorias e desejos seriam os do seu algoz. Depois disso, essas pessoas tentavam convencer as demais de que seu mundo é melhor: “Nosso mundo é bom, nosso Deus é o verdadeiro, nossa fé é legitima”. No mar de excrementos não houve outra opção para o grupo, exceto, se unir. A religiosa e a prostituta se abraçaram e as duas rezaram a Deus.
O mundo foi coberto com seus próprios excrementos e com ele a feira de Parangaba. “Vó, estão dizendo na rua que nós estamos atolados na merda”. Dona Firmina coçou os olhos e depois, pois, as mãos na boca e por entre os dedos a idosa disse para seu neto: “Disso eu já sabia há muito”. O grupo avistou ao longe uma luz forte. Parecia que a viagem estava chegando ao fim. Aos poucos, na linha do horizonte, se formava a imagem de uma baia e nela uma praia seca e ensolarada. Atrás, ao fundo, na areia da praia havia sombreiros e embaixo deles pessoas bonitas e bem vestidas a conversar, a beber e a comer. Essas pessoas diziam as mesmas coisas; cada uma tinha seu ponto de vista, no entanto, o mesmo circulava em torno de uma opinião geral: “Está tudo bem e caminha de acordo com o sistema das coisas”. As pessoas da praia repetiam palavras chaves umas para as outras: “O sucesso é uma questão de escolha”. “Todos têm direitos iguais”. “Há oportunidades iguais para todos”. Com suas mentes em harmonia com o sentimento coletivo; o povo da praia não via outro mundo, apenas o deles. Mundinho comentou com o grupo que estava com muita fome e tão logo pusesse os pés na areia ia tirar a barriga da miséria. O delegado Peixoto não esperava a hora de tomar um banho de água limpa. O casal bispo se manteve calado para ver os fatos. Dona Pureza e Cosminha, de mãos dadas, não paravam de rezar. Finalmente, o grupo está em terra firme novamente. As pessoas que estavam na areia não lhes dava atenção, parecia que não lhes via. Cada um conversava com seu amigo e amiga as coisas de todo dia ou sobre negócios ou política. Em momento algum, as pessoas comentavam sobre o ocorrido em Parangaba. Quando algum problema era levantado por alguém, era dito que em quinze dias a pessoa teria a resposta ou o problema resolvido. Quando alguém chamava seu próximo de mau caráter, a pessoa se defendia dizendo com face inocente e voz contunde: “Sou inocente, minha vida é um livro aberto”. O grupo andou por entre os frequentadores daquela praia. Não acharam suas comidas costumeiras, mas, o que comeram lhes aumentou o apetite. A cozinha daquela gente era aperiente. Ninguém conseguia parar de comer e isso lhes obrigavam a defecar e vomitar várias vezes no mesmo dia. Quando alguém queria se aliviar, a praia era o lugar certo. Todas as fezes e vômitos daquela população escorriam para praia, criando, desta forma, um oceano de fezes e dejetos de todos os tipos. “Vamos fazer alguma coisa para que essa gente note que estamos aqui”. Disse Clodoaldo para sua esposa. A questão foi posta em debate.
- Por que não chamarmos a atenção deles?
- Mas como?
- Sei não. Dona Pureza deu uma sugestão – Cantar músicas religiosas. O grupo fez assim: Enquanto Pureza cantava, eles batiam palmas e acompanhavam. As pessoas daquela baia acompanharam a canção com muito gosto, mas, não deram atenção ao grupo. Frustrados, mas, não desanimados. O grupo se reúne novamente.
- Deve ter alguma coisa que possa impactá-los. Disse Clodoaldo.
- Certamente. Concordou Peixoto.
- Então, digam! Disse dona Bispo.
- Eu acho que eles vão nos notar se jogarmos água neles, empurrarmos alguém ou quebrarmos as cadeiras, mesas, etc. O grupo com certa reserva concordou em fazer isso, exceto dona Pureza. O grupo fez o combinado. Alguns minutos depois, as pessoas da baia começaram a falar alto: “Hoje, não se tem mais paz, a violência e o vandalismo imperam em nossa terra”. Mas, logo em seguida continuaram com o seu costume de todos dos dias. O grupo insiste em mais uma nova abordagem, agora seria Cosminha. A menina livre teria que cantar e dançar “Chupa que é de uva”. A menina fez o que sempre fez nos dias de feira em Parangaba. Cosminha levava os homens ao delírio com sua sensualidade. As pessoas da paria adoraram o show da menina, mas, havia algo errado, eles não viam a jovem pobre que se tornou mãe solteira muito cedo; era como se ela não pertencesse àquele mundo. Finalmente, o delegado Peixoto traz um plano mais agressivo: “Nos meus longos anos de profissão aprendi que o ser humano tem um ponto fraco; a isso ninguém resiste”. “E o que é delegado?” “O bolso”. Respondeu a autoridade com muita convicção. O grupo roubou as carteiras de quem pode, depois, roubaram tudo que tinha valor: Anéis, pulseiras, relógios, celulares etc. As pessoas da baia, então, conduziram uma investigação. As autoridades do lugar apareceram e trouxeram o relatório policial: “Foi o povo”. Afirmou o Capitão Bicudo. “O povo?” Admirado exclamou o secretário de segurança da baia. A resposta foi imediata. O destacamento de cinquenta soldados cercou o grupo e os puseram num barco e os deixaram em alto mar. Um soldado do destacamento disse com muita emoção: “A gente suporta tudo para proteger a sociedade num é Martins?” “Como?” “Eu digo, a gente aguenta até o fedor de bosta nesta profissão”. “Ah, isso é mesmo; no cumprimento do dever o soldado passa por tudo”. O barco era pequeno para todas as pessoas do grupo, com dificuldade e sempre trocando de lugar, pois, as pessoas trocavam de lugar a cada quinze minutos. “Num aguento mais delegado Peixoto”. “Dona Pureza, num esquenta, não; Deus vai dar um jeito”. O barco navegou por sete horas até parar e não se mover mais. “E agora Clodoaldo?” “Mulher, num sei o que dizer”. De fato, ninguém sabia de nada. Suas vidas estavam nas mãos do todo poderoso. Sem comida, sem água ou garantia alguma o grupo eclético de Parangaba esperava a morte chegar.
- Pera!
- O que homem?
- veja!
- O que rapaz?
- Olha!
- Onde, macho?
- Ali! O mar formava um redemoinho; ele crescia e ficava forte. “Ah, meu Deus, em tuas mãos entrego meu espírito”. Disse dona Pureza com muita sinceridade. O redemoinho foi se aproximando. As mulheres gritavam e se abraçavam umas as outras e os homens faziam o mesmo. O barco foi engolido pelo mar de excremento.
O delegado e suas meninas despertam na delegacia. Apavorados olham para si e estão limpos, não havia mais fedor de fezes ou marca de nada. Dona Pureza e Cosminha se entendem finalmente. As diferenças foram postas de lado, e o delegado deu um jeitinho para o boletim de ocorrência não ser registrado. Mundinho volta para a feira. Os caminhões sentiam sua falta. O povo gritava: “Onde está Mundinho?” “Está na hora”. As pessoas faziam o de sempre. “Carregar os caminhões para voltarem para casa”. Parangaba era a mesma cidade de todos os dias - Um pedaço de Sergipe cravado em ouro – Um lugar de sonhos, esperança e realizações. Valterlene acorda em casa. A moça passa a mão nos lençóis da cama e suspira a palavra “Mundinho”. Clodoaldo e sua amada despertam ao chegarem a José Freire.
- Mulher, tu dormistes como eu?
- Sim, tive um sonho estranho, com muita merda.
- Eu também. Vou jogar no bicho. Sonhar com merda é bom.
- Meu amor mais uma feira.
- É, graças a Deus, mais uma feira.



FIM

CABEÇAS

CABEÇAS
POR ROOSEVELT VIEIRA LEITE

José Freire é a antiga terra da família Freire. Sobre isso não vou contar, contudo, dizem os mais velhos que por aqui os homens perderam suas cabeças...

- Encontraram um corpo sem cabeça no matagal próximo do Portal da cidade.
- Hoje em dia num se sabe se se volta mais pra casa.
- Pois é, e agora a moda é matar e arrancar a cabeça. Esse é o terceiro corpo sem cabeça.
- E como foi mulher? Cortaram a cabeça como?
- Parece que foi de foice.
- Num diga?
- Num foi o que? Passaram a foice e pronto o finado perdeu a cabeça.
- Mas é uma barbárie aqui em José freire. Quem diria. Num escapa mais lugar algum do mundo.
- E a gente conhece quem foi a vítima?
- Não, mas, logo saberemos, aqui, em José freire nada fica escondido muito tempo.

A pequena cidade do agreste sergipano acordou apavorada com mais um homicídio. Os casos de corpos sem cabeça, agora, somavam três. O povo não queria mais sair de casa e a conversa se espalhava nos quatro cantos das terras de São Roque e Nossa Senhora da Boa Hora.

- E o que é que diz a policia?
- Nada.

A linha de investigação era os doentes mentais. Contudo, todos os devidamente investigados tinham álibis perfeitos nos dias dos assassinatos. Isso é o mesmo que dizer que as autoridades não sabiam coisa alguma e que mais gente, certamente, ia morrer. A cidade do vale do rio Vaza-Barris que avista de longe a serra de Itabaiana ainda não conhece o progresso nem o movimento das cidades grandes. José Freire é lugar de gente honesta e trabalhadora. Os crimes dos corpos sem cabeça estavam angustiando a todos, todavia, ao mesmo tempo, fazia a curiosidade do freirense aumentar. Quando acharam o primeiro cadáver a metade da população velou o coitado, agora, o terceiro caso, o povo todo saiu pra ver o ocorrido. A polícia de Itabaiana veio dar reforço aos colegas freirenses.

- A população está revoltada.
- Num sei se é revolta ou curiosidade.
- É revolta e curiosidade.
- Num diga amigo. Curiosidade com o que?
- Essas coisas de corpo sem cabeça só ocorre em cidades grandes.
- O crime está ficando cada vez mais especializado até nos sertões.

Com mais de 16 mil habitantes a comunidade de José freire marchava rumo ao futuro sob o trabalho sagrado de seu povo. Desde o início da colonização com as Sesmarias, o povo do agreste aprendeu que o trabalho constrói e muda realidades. O crime, então, em José freire não tinha lugar.

- Mulher quem diria, aqui, em José freire essas coisas. Mas, quem foi, hein?
- Num sei não. Deve ser gente de fora. Daqui, eu acho que num foi não. O povo daqui num faz isso, não, mulher.
- Mas, como, não, mulher? Em José Freire tem gente de todo tipo.
- Pois, eu moro aqui desde menina, nunca vi uma coisa dessas.

As pessoas diziam o que sabiam. Os comentários aumentaram pelo meio da semana. A população estava atenta ao radio que hora ou outra mencionava o ocorrido triste de José freire. Mas, o tempo acalmou a população. Aos poucos a vida voltava ao normal. A feira da sexta trouxe gente de todos os povoados. O povo se reuniu na Praça 13 de Julho para comprar e vender, e nos momentos livres, prosear.

- Num si sabe quem fez aquelas barbaridades num é seu Paulo?
- Nem vamos saber. Hoje em dia o crime é organizado.
- É, tá muito organizado mesmo. Mas, o fato é que parou.
- Graças a Deus.

Infelizmente, na noite de sexta feira, quase a meia noite, encontraram próximo ao chafariz outro corpo sem cabeça. A população, na madrugada, encheu a lugar e o ar de perguntas. Quem é? Como foi? Tá morto mesmo? Pela manhã a TV de Aracaju chegou para cobrir a matéria:

“Encontraram sentado encostado à mureta do chafariz, entre torneiras e garrafas peti o corpo de José Olegário da Silva, um agricultor residente em José Freire. Agora são quatro corpos sem cabeça no agreste sergipano. As autoridades estão trabalhando na pista de um matador em série, um serial Killer”. Quando as pessoas ouviram a expressão: “serial killer” entraram em delírio.

- Mas, aqui em José freire? Isso num é verdade, é verdade?
- É verdade, eu já sabia. Disse Thereza que corta cabelo.
- E é Thereza? Você já sabia? Então porque num me falou semana passada. Mas, num era o suspeito um doente mental? Estão matando é toda semana.
- Não, num é toda semana. É de quinze. E quem mata e corta a cabeça num é doente mental, não?
- Num faz diferença, mulher. Estão matando. Isso é fato científico.

Novamente, o povo se apavorou; desta feita, a ordem social era: “Todos em casa até que o monstro fosse capturado”. As viaturas policiais de Itabaiana e Aracaju cortavam a pequena cidade a todo instante, e isso dava certa calma as pessoas, sem, contudo, matar lhes a danada da curiosidade.

- Oxente! Oxente! Quer dizer que agora o povo num sabe de nada? Isso é cárcere privado! Esse povo de cidade grande vem pra cá e pensa que em José freire num tem gente com cabeça. Aqui, o povo também pensa! Alardeou seu Osvaldino nos microfones da radio Princesa da Serra, em Itabaiana. Era um protesto contra a política de segurança imposta pelas autoridades e pelo prefeito local Mundinho da Cajaíba. Vossa Excelência havia pedido às pessoas que saíssem de casa apenas quando muito necessário e evitassem andarem à noite sozinhas, uma vez que os assassinatos ocorriam no horário noturno; o prefeito ainda acrescentou: “Eu vos peço a compreensão em nome de São Roque e de Nossa Senhora da Boa Hora”.

Nada disso mudou o quadro funesto da pequena José freire. Os corpos continuaram aparecendo. O povo parou de conta-los, o terror se instalou no sertão do agreste. O silêncio calou a voz da cidade que se refugiava na paróquia, nos braços de seu vigário João Ernestinho.

- Pra onde tu vais moça?
- Mãe, hoje é dia de vigília pelos assassinatos dos “corpos sem cabeça”.
- E é minha filha?
- É mãe, os católicos e os protestantes se uniram para fazerem todas as sextas feiras a vigília da salvação de José freire. A igreja crer que isso é coisa do demo mãe.
- Coisa do demo o que minha filha?
- Vamos comigo, mãe!
- Vá com Deus, minha filha, eu fico aqui com minha novelinha.

Apesar de a fé ser grande as mortes continuaram. Definitivamente, nem Deus e nem a polícia sabia coisa alguma sobre o serial killer. A pequena José Freire entrava no terceiro mês de más notícias e na quarta semana de toque de recolher. As autoridades estavam na língua do povo e este não poupava o verbo para expressar sua revolta. Foi nesse balaio de gato como diz o povo da terra que surgiu um nome muito especial na comunidade de José freire. Quando o povo se desanimava da vida, pois, nem nas calçadas andava mais apareceu um herói freirense: “Maximiliano”. O rapaz nascido e criado na Serra das Minas entrou em José freire, em plena Rua João Pessoa e Avenida José Carlos Ribeiro de Oliveira dizendo que a culpa dos crimes é da República.

- República é a mãe dele, filho da peste! Tá mangando do povo, eh?
- Pois, num é! Essa criatura é doidxa. Onde já se viu?
- A República deve ser as quengas dele. Estou sabendo que Maximiliano é chegado a uma rapariguinha.
- E é Rosalvo?
- Num é o que! Maximiliano saiu das Minas porque deixou duas buchudas.
- Mas, rapaz num conte! E agora anda dizendo que ver a Deus?

Na pracinha onde tem o churrasquinho no esperto mais gostoso de Sergipe, Maximiliano parou para seu primeiro discurso ao povo de José freire. O rapaz branco de seus trinta anos se vestia como um frei franciscano e carregava uma cruz de madeira de quarenta centímetros por setenta. Ele a pendurou num pé de Juá e fez o sinal da cruz:

“Monarquia! Monarquia! Eis a solução do sertão! Quando veio a República o povo do sertão foi abandonado, e isso porque o Deus que coroa todos os reis se apavorou com a maldade humana. A república só cuida de cidade grande já dizia meu antecessor Antônio Conselheiro. Vejam Aracaju! Vejam suas avenidas, seus prédios, sua beleza! Tudo está perto do rico e da propriedade privada. O pobre que é o sertanejo nas terras da praia só tem esgotos fétidos e roubalheira. A culpa das mortes é da República, não duvidem!”

O povo ouvia a fala de Maximiliano com um pé atrás. Houve momentos de tumulto e isso chamou a atenção da polícia. Mais uma vez a paz reinou na avenida mais importante do município. E o profeta freirense continuou sua fala sob a vigilância atenta da lei.

“Monarquia! Eis a vossa salvação! Qual o regime político do céu? Pergunte a vossos sacerdotes! Pois, eu vos digo: ‘No céu tem um rei, e ele ama o sertão’. Colocaram nas vossas mentes que todo homem tem uma cabeça. De onde vem o dito popular: ‘Cada cabeça, seu guia’. O senhor Jeová me deu os olhos do Conselheiro e eu vi com eles. E vi que nas terras do agreste as mulas não tem cabeça. Aqui é terra de mula sem cabeça, de lobisomem e de sacis. Digam vocês a vocês mesmos! A República os fez acreditar que essas terras são vossas e que todos são iguais perante as leis. Eis a causa de perderem as vossas cabeças”. O céu fechou, as nuvens ficaram pesadas e a chuva caiu caudalosamente sobre o povo. O profeta de José freire continuou na praça e segundo populares não se molhou: "Não caiu nele, uma gota d’água”.

A notícia de que um novo Antônio Conselheiro aparecera no sertão se espalhou rápido pela região do agreste sergipano. Logo as caravanas e romarias foram organizadas para a cidade de José Freire, e com isso, o povo se esqueceu das mortes.

- Comadre, ontem, mais um corpo foi encontrado. Mas, num é de gente daqui não.
- Por quê?
- É por que é preto.
- Como assim criatura?
- Aqui, em José freire num tem preto.
- Tem, sim, senhora, em José freire há lugar para todos.

Os comentários eram poucos e miúdos. O que estava na alta na pequena cidade de José freire eram as falas e os feitos de Maximiliano.

- Você sabia que ele curou dona Raimunda da padaria?
- Não, eu sabia que ele é meio doido.
- Doidxo o que? O homem é lido, estudado. Hoje ele só falava no tal de latim.
- Latim! Ah, e isso é coisa de se falar? Quem entende isso aqui em José freire?
- Só o padre Ernestinho.
- E por sinal, o que é que Ernestinho diz desse tal profeta?
- Ernestinho anda muito calado. Até agora nada disse desse homem. Com os relatos dos milagres e prodígios de Maximiliano as autoridades decidiram ouvir a estranha personagem da Serra das Minas.

- Maximiliano como vai seu pai e sua mãe, tão bem?
- Meu pai e minha mãe é a monarquia. Meu Deus e meu rei têm seus súditos. O prefeito Mudinho da Cajaíba coçou a barbicha depois o saco escrotal e piscou o olho esquerdo para o Tenorzinho como que dissesse: “Olha o doido aí”. A conversa foi pouca. O prefeito entendeu que se tratava de um débil mental. “Mas, o senhor vai deixar esse cara solto?” Tenorzinho insistiu com vossa excelência para tirá-lo das ruas. “Se preocupe não companheiro, o rapaz é um coitxado”.

Maximiliano, o coitado, reunia todas as tardes na praça uma boa quantidade de gente. Depois da reza do terço, o profeta do agreste falava suas ideias antirrepublicanas. Seis meses depois, eram 20 ônibus das mais diversas localidades do agreste, a notícia havia de fato se espalhado pelo sertão: “Antônio Conselheiro voltou”. Contudo, sua volta não impediu que as mortes continuassem.

- Etelvina, mulher! Acharam mais um sem cabeça.
- Foi? Foi na estrada da barragem, foi? Esse era filho da terra e vai dar o que falar.
- Por que mulher?
- Ele é parente dos Macaíbas.
- Num diga!
- É mulher; os macaíbas que foram políticos daqui nos anos quarenta!
- Como era o nome dele mesmo?
- Dizem que o finado achado acéfalo era José Sobrinho Macaíba Neto. Tataraneto do finado Juvêncio Macaíba, um dos primeiros prefeitos de José freire.

A morte do Macaíba alvoroçou o município inteiro. O delegado plantonista de Itabaiana solicitou um destacamento de 10 viaturas para José Freire. A comunidade estava alarmada e com medo, entretanto, a igreja lotava as noites e as tardes a praça do churrasquinho. A polícia entendeu que Maximiliano não podia mais reunir pessoas devido à precariedade da situação. Maximiliano, então, subiu a Serra do São José: “Foi no monte que o mestre pregou, assim, será comigo”. Disse consigo Maximiliano, o profeta do agreste. A polícia pensou ter se livrado de um problema, o tempo, no entanto, revelou que um problema maior havia surgido. Multidões subiram a serra para ouvir Maximiliano:

- Padre Ernestinho, o tal Maximiliano está tirando o povo da missa.
- Não senhora, minha paróquia nunca esteve tão cheia, dona Cosmerina.
- E é, sua santidade?
- Sim, senhora. É nos momentos de dificuldades que o povo busca a Deus.
- Mas, esse rapaz fala mal da igreja!
- Bem, cada um diz o que quer. Mas, afinal, quem é esse jovem senão mais um coitado do mundo, carente de juízo e de Deus?
- É sim senhor.

Os crimes, apesar do forte aparato policial continuavam. O serial killer do agreste não temia a ninguém. Desta feita foi o filho do dono do “Mercadinho Pague Nada”. A psicosfera de José freire fechou. O pânico, o medo, a curiosidade de alguns, e a devoção de outros tornaram a cidade frenética e movimentada. E isso preocupava o prefeito e o delegado que insistentemente diziam nas rádios de Itabaiana que o povo ficasse em casa. Mas, nada como a pulsão religiosa para tirar o povo de casa. Quanto mais Mundinho da Cajaíba pedia a comunidade calma e cautela o povo saia de casa em busca de Deus. Um grupo de Jovens decidiu subir a serra e passar sete dias com o profeta. Seus pais ficaram apreensivos, mas, a fama de Maximiliano entorpecia o povo. No final dos sete dias os jovens relataram o seguinte:

“Nós entramos em estado de transe depois que Maximiliano riscou um pentagrama com carvão sobre uma lápide ao lado da capela. O céu estava escuro e cheio de estrelas. Vimos no transe que a cidade de José Freire era uma cidade do Império Colonial. Nela havia poucos estabelecimentos comerciais, e a maioria dos empregos era de funcionários públicos. O povo costumava sentar às tarde na calçada enquanto seus poucos escravos faziam o trabalho pesado. À Tardinha desfilavam na rua principal os carros que vinham da roça. Uns traziam milho, outros amendoim, e outros qualquer coisa. Havia, próximo onde hoje é a Igreja da matriz uma construção de madeira, era uma guilhotina. Nela, todos os que discordassem das crenças comuns teriam suas cabeças cortadas fora. Foi assim, segundo o transe, que todos passaram a acreditar nas mesmas coisas. A voz uníssona, segundo, Maximiliano é conquistada a força”. O fato mais estranho testemunhado pelo grupo de jovens conselhenses foi o episódio do grupo escolar. Segundo eles, em José freire só havia um grupo escolar. Nele, as crianças ao terminarem o ensino fundamental, tinham suas cabeças cortadas fora e no lugar era posto a cabeça de seu parente falecido mais próximo. Dessa forma, os educadores pensavam construir mais uma geração. O relato dos jovens chocou a nata social. Maximiliano foi acusado de anarquia e uso de drogas entorpecentes. “É preciso prender esse rapaz o quanto antes”. Disse o professor doutor Oviêdo Dias Sobral. “Esse rapaz passou dos limites”. Disse o Padre Ernestinho com um tom de decepção. “Maximiliano tinha tudo pra da certo”. Afirmou o prefeito Mundinho da Cajaíba em discurso na Assembleia Legislativa.

De profeta Maximiliano da Serra das Minas passou a bandido. A polícia fez diligências nas grotas da Serra do São José e nenhum vestígio de sua contraditória pessoa foi encontrado. Um jovem cujo nome era Macdonald Pereira, também discípulo do Conselheiro comentou em casa que Maximiliano havia afirmado que o assassino poderia ser encontrado no prédio velho da antiga prefeitura de José freire. Esse é um prédio fechado de alvenaria que não vê gente há quase um século. As pessoas comentaram o fato por um tempo, depois, o povo se calou. A história chegou aos ouvidos do subdelegado Macedão, mas, o mesmo alegou não dar ouvidos à asneiras de fofoqueiras. As investigações do serial killer já tinham um suspeito o qual seria revelado tão logo o DNA do mesmo fosse comprovado. Segundo o cabo Ximenes, o suspeito era natural da Boa Vista e tinha uma longa ficha psiquiátrica com passagens pela São Marcelo (Manicômio e Hospital psiquiátrico de Aracaju) e pelo CAPS de José Freire. O nome não seria difícil de concluir-se, mesmo assim, o povo de José Freire estava sem conhecer o maníaco assassino das cabeças.

- Roberto, Roberto.
- Sim, Germano, fale logo, num tá vendo que essa roda tá me dando trabalho. O mecânico de autos mais famoso de José freire estava atento ao radio e a seu trabalho na oficina São Miguel Arcanjo onde você tem seu carro cem por cento protegido.
- Encontraram mais um cadáver, e desta vez além da cabeça cortaram a genitália.
- Como?
- Rapaz, encontraram o bilau do homem na boca da cadela Lupita. A danada estava ao lado do chafariz do Celão.
- Rapaz, foi mesmo! É o fim do mundo em José freire. Mais uma vez a população se trancou em casa. Os homens não queriam mais sair. Suas mulheres lhes diziam: “Tá vendo o fim do mundo chegou. Agora vocês aquietam o facho, ou fazem assim, ou txau bilau”. A revolta, no entanto, era muita. O comercio caiu setenta por cento. As escolas fecharam as portas, somente a igreja e o grupo fiel ao Conselheiro Maximiliano se reuniam nas noites frias do inverno freirense.

Foi numa noite de segunda feira que o caldeirão estourou de vez. A polícia cercou a pequena José Freire. Houve uma denúncia que o serial killer estava na cidade. O DNA do moço da Boa Vista foi negativo, a polícia baseava se, agora, na denúncia de uma senhora que viu uma movimentação defronte ao prédio velho da antiga prefeitura. Segundo a denunciante, um homem de cor entrou no prédio pulando o muro, depois se ouviu gritos dentro do imóvel. A tropa de elite do município de Itabaiana foi acionada. Logo o prédio velho foi cercado. A televisão de Aracaju cobria toda a empreitada policial, a cinquenta metros de distância separados por uma faixa amarela estava o povo que falava de tudo e sobre tudo:

- Até que fim meu Deus essa história chegou ao fim!
- Será mesmo?
- Ah, o homem tá cercado ai dentro, e tem polícia pra todo lado. É o fim mesmo desse vagabundo!
- E como é que você sabe que é ele mesmo? Você o viu?
- Não! Mas, tá todo mundo dizendo que ele está ai.
- ah, sim.

As pessoas munidas de uma certeza inabalável começaram a gritar a uma só voz: “Justiça”. Alguns arruaceiros quiseram invadir o prédio com pedras a paus nas mãos. Mas, a polícia os prendeu mesmo antes que cruzassem a rua. Para todos os fins aquela noite seria o desfecho de uma história que muito assustou a pacata cidade de José Freire no estado de Sergipe.
Finalmente, o delegado de Itabaiana chega. Era o momento da invasão. O delegado usa o megafone pedindo que o meliante se retire em paz da propriedade. Nenhum som é ouvido exceto os gritos do populacho: “Entra e mata logo esse filho da peste”. Os ânimos estavam alterados. O delegado Edir resolve, então, dar a ordem de invasão. O povo se afasta, e com fuzis e metralhadoras na mão a polícia põe abaixo a porta selada com alvenaria. Um trator bulldozer da prefeitura fez o serviço para a polícia. À porta ficaram três policiais, e a tropa entrou no imóvel escuro.

O prédio velho da prefeitura foi construído no século vinte. Foram muito bem construídos seus compartimentos. O tempo tem seus meios e o velho prédio fora isolado para reforma e essa nunca aconteceu. A saleta de entrada estava cheia de teias de aranhas e poeira no chão. Alguns sacos de lixo e papeis velhos faziam a recepção da mesma. O escuro fora vencido pelas lanternas dos policiais. De súbito, do escuro ouve-se vozes e sons de pisadas. As pisadas eram aceleradas nas quatro direções dentro da casa. Os agentes militares acharam que era uma reação e responderam com fogo. Os buracos nas paredes da saleta e a fumaça de pólvora dividiam o espaço com a sombra do escuro sinistro ao fundo. Pelos buracos das paredes escorria uma liquido vermelho, os policiais entenderam que era sangue. Os agentes da lei em número de quatro entram numa sala maior com um balcão do lado oeste e atrás do mesmo, mesas e armários de escritório. Mais a frente ao sul um pequeno corredor leva o olhar para o fundo. Pequenas esferas de luz vêm de lá e iluminam o lugar. Por volta de 1600, onde hoje é o José Freire, viveram índios, negros e brancos em paz. Durante mais de cinquenta anos as três raças viveram em perfeita harmonia naquela região. Até que chegaram os carros-de-boi e com eles as cercas, depois, as tropas de Salvador para garantir a ordem da nova sociedade. As esferas de luz assustaram os policiais que se esconderam com as armas na mão. As luzes iluminaram o prédio e isso assustou Ximenes e seus colegas. O cabo Ximenes usa o radio para falar com o delegado:

- Edir, a coisa aqui está muito estranha. Acertamos em alguém tem sangue pra todo lado. Mas, não vimos corpos ainda. Tudo aponta para mais de um meliante.
- Certo, entrem e revistem tudo. O prédio está cercado. Ninguém sai dai.
- Agora, tem algo muito estranho.
- O que?
- Não acendemos luzes, contudo, o prédio encontra-se iluminado, e as luzes andam por todo o estabelecimento.
- Como assim?
- Num sei doutor. Os homens estão assustados. Antes que Edir retomasse a palavra para continuar a conversa os policiais ouvem um som agudo como se fosse um gemido. Era um carro-de-boi com dois bois, um preto e outro pardo. O primeiro era conhecido como “Pai Preto”, e o segundo “Pai Caeté”. Atrás do carro de boi pessoas saiam das salas da prefeitura velha de José freire. Todos eram loiros e altos. Eles traziam um globo na mão. As crianças que acompanhavam seus pais cantavam canções que lembravam a terra deles. Aqueles eram os que deixaram a velha terra para conquistarem o novo mundo. Animais e homens acampam-se no salão de reunião do prédio. Houve um silencio sepulcral. Os policiais de olhos arregalados observavam tudo. Ximenes pergunta a si mesmo: “Mas, o que é isso?” “Será o fim do mundo”. O soldado Wilson, filho do Povoado Vermelho urinou nas calças. Seu líquido excrescente correu pelo chão tornando-se visível aos demais.
- Que é isso macho? Tá com medo de que?
- Homem, tu num vê não, é? Tudo isso ai é alma do outro mundo.
- Que nada, isso é efeito visual. Tem alguém muito inteligente ai dentro. Os seriais killers são mentes patológicas muito espertas.

De súbito, tropas de cariris entram na sala e começa a matança. A policia se assusta e atira sem direção, as balas atravessam as pessoas e furam mais buracos nas paredes. O liquido vermelho aumenta. A cena some como fumaça e os agentes da lei se escondem no almoxarifado do prédio. Mais uma vez, Ximenes reporta as condições a seu superior. O delegado Edir envia mais soldados. O povo estava excitado demais, algumas pessoas gritavam: “Deixa eu entrar pra mim matar esse filho da peste”. Outros diziam: “A policia tá com medo de um bandido, isso é um absurdo”. Algumas mulheres rezavam em voz alta para Nossa Senhora da Boa Hora. Já outros, acharam melhor cantar a canção evangélica: “Deus forte”. O povo estava à beira de tomar o controle da situação em José freire, mas, alguma coisa os impedia.

- Ximenes, tá vendo o que eu estou vendo?
- Não.
- É bem ali, rapaz!
- Onde?
- Vindo do lado esquerdo do corredor.
- Sim, estou vendo. E quem é?
- É mais de um, está vendo não?
- São vários. Eram Jesuítas que chegaram da Cajaíba. A princípio o aldeamento Cajaíba viveu momentos de muita paz. Mas, quando a nova ordem foi imposta além mar, os índios curumins tiveram que deixar os padres cortarem suas línguas. As margens do Rio das Traíras ficou cheia de línguas de criança. As crianças não podiam mais falar de seu mundo com sua língua, quando precisavam dizer alguma coisa, um padre lhes emprestava a língua lusitana. Mas, isso não foi tudo. Os policiais assistiram a cena com as armas arraiadas. Foi o dia em que as cabeças das crianças foram exigidas. “Toda criança indígena da Cajaíba deve dar sua cabeça a Cristo”. Os padres aguardavam a fila de meninos e meninas voluntariamente arrancarem suas cabeças e as depositarem aos pés dos sacerdotes de Cristo. “Pra que índio com cabeça?” Questionou o vigário Santos. O costume de arrancar cabeças desceu a Cajaíba e se espalhou por todo o vale entre as serras. Não havia mais índio ou negro com cabeça, e com o tempo até os brancos perderam as suas.

- Precisamos de liberdade! Gritou o vigário do Povoado José freire. Antes de 1919, a cidade de José Freire era povoado de Itabaiana. O vigário Antenor decidiu abraçar a causa da emancipação política de José Freire. Em seu palanque, o sacerdote bradava que os problemas de José Freire era a dependência de Itabaiana.
- Em José freire, nada se resolve! José Freire num tem nada! Estamos à mercê da boa vontade dos políticos itabaianenses! Os polícias que chegaram, mais os que estavam no almoxarifado ouviram os gritos de Antenor, e da multidão que se reuniu no salão da velha prefeitura. Os foguetes estalavam no céu. O povo de José Freire estava em êxtase. Era a hora da libertação.

Os policiais decidiram usar uma estratégia. Era preciso chegar até aos fundos do prédio. Segundo Ximenes e Edir, o bandido, ou os bandidos estavam certamente controlando todo o show de efeitos especiais de algum lugar no fundo do prédio. Ali, havia um quarto anexo.

- Vamos sair daqui atirando. Ai num tem ninguém são somente imagens holográficas. Disse Ximenes em tom baixo.
- Eita, o cabo está bem informado. O bandido, então, quer humilhar a lei. Disse o soldado Mateus, filho do povoado Rio das Pedras. Os policiais, em número de sete, saíram atirando para todo canto. A fumaça de pólvora subiu e ofuscou a visão dos mesmos. Após a investida os homens da lei ouviam gemidos cuja fonte não era localizada. Os gemidos eram semelhantes aos dos feridos na guerra. Uma voz forte e grossa ecoa pelos compartimentos da prefeitura: “Dai-me meus filhos de volta, dai-me suas cabeças e suas línguas; seus sonhos e esperanças”. As paredes, de seus buracos feitos pelas armas de fogo, sangravam sem parar. Os soldados estavam banhados de sangue. “É sangue mesmo”. Disse o soldado Martins ao cabo Ximenes. O líquido vermelho não parava de jorrar. O mesmo começou a sair da prefeitura, e o povo do lado de fora se desesperou.

- Vamos entrar, os soldados estão mortos.
- Está doido rapaz? Eu num entro ai nem a pau!
- É o canso, mataram Ximenes. Uma mulher baixinha morena com cara de índio disse veementemente: “Recebeu o que merecia o safado”. A mulher estava gestante de quatro meses. Outros diziam: “Bem feito”. No meio do tumulto Olegário Mariano, natural de José Freire um rapaz muito bem estudado toma a palavra e fala ao povo:

“Vocês estão enganados. O que acontece é que a policia ainda não encontrou os bandidos. Vejam que as armas ainda estão em posse dos policiais, e se os marginais tivessem o controle delas nós não estaríamos mais aqui”.

Um baixinho de voz fina e semblante de anão gritou de detrás, do povo: “Cala a boca abestado, você sabe de nada”. Com isso o povo rumou na direção do prédio. Os policiais defronte ao mesmo barraram-no com armas em punho. O prefeito Mundinho toma a palavra: “Não se faz justiça com as próprias mãos, calma gente, calma!” “Cala a boca Mundinho, onde está o dinheiro de merenda escolar?” Gritou uma senhora, magra alta, de voz rouca que usava uma peruca vermelha. “É isso, esse povo pensa que a gente a besta”. Mais uma vez a turba tenteou invadir o prédio. O policial Galindo do Amarante, um afro descendente deu um tiro para o alto. O homem esbugalhou os olhos determinados a conter a multidão. Dona Dindin, uma senhora muito conhecida na feira de José Freire, disse ao povo: “Gente o rapaz fala muito serio, vamos esperar mais um pouco”. Um lado da rua gritava eufórico “Eu estou com Mundinho”. O outro lado dizia: “Mundinho coisa nenhuma, vamos entrar”.

Os policiais do lado de dentro do prédio municipal chegaram ao quarto dos fundos. Era um espaço de seis metros de cumprimento e quatro de largura. O piso do lado externo, entre o fim de um corredor e o quarto era antigo. O anexo seria a resposta para a policia. O ar estava ameno, nenhum sinal de movimento. O vento suave vindo do lado de fora refrescava os policiais que estavam um pouco tensos e confusos. A pintura cinza do prédio entorpecia as pessoas. Os policiais entraram no anexo e foram direto para a parede dos espelhos. Nos espelhos eles se viam sem cabeça. Todos os soldados estavam sem cabeça nos espelhos da parede. Eles olhavam entre si, e se viam com cabeças, mas, nos espelhos toda a tropa estava sem a parte de cima.
- O que isso quer dizer?
- Quem sabe estamos enfeitiçados?
- Onde estão nossas cabeças?
Uma voz do fundo frio e escuro do quarto que ficava atrás de um estante de livros antigos disse: “Venham aqui!”
Os soldados foram até a voz. No lugar, ao lado de pilhas de livros, revistas e jornais estava um monte de ossos; eram restos de esqueletos humanos com vários crânios de diferentes tamanhos. “As cabeças foram encontradas; agora, os corpos têm cabeças. Já adiantamos alguma coisa”. Pensaram os policiais ao ver as caveiras.

Não havia mais ninguém, nenhuma alma, nenhum som, nenhum movimento; parecia que não havia pessoas agitadas do lado de fora. Os soldados baixaram as armas e evitaram olhar para os espelhos. “De quem são essas cabeças?” Perguntou Ximenes à tropa.
- São das pessoas que foram assassinadas.
- Não, a quantidade de caveiras é maior que a quantidade de corpos.
- Não havia notado isso. Sim, isso é certo. De fato, a quantidade de caveiras era mil vezes maior que o numero de vítimas do serial killer. “De quem são as inúmeras outras?” Ximenes não entendia o ocorrido. Os soldados e seu líder estavam sem explicação. As paredes produziram um som como um arroto e derramaram mais sangue. Com o cheiro das hemácias as caveiras rangeram os dentes. Os soldados se apavoraram e começaram a atirar e feriram uns aos outros com armas pesadas. Os soldados da tropa de fora entraram em socorro aos seus amigos. Encontraram-nos muito feridos. O povo aproveitou a situação e invadiu o prédio. Ninguém foi encontrado. Nenhum assassino, somente as caveiras. As pessoas foram orientadas a não se olharem no espelho, pois, os espelhos davam náuseas. A multidão voltou para casa. As pessoas falavam sobre o problema, cada um tinha sua teoria, todos falavam de tudo e ninguém sabia, na verdade, de nada. Afinal, e o serial Killer onde estava?

O tempo passou e a prefeitura ficou sobre proteção policial. No entanto, isso não impediu o povo de dar uma olhadinha nos espelhos da prefeitura antiga. “Freitas; toma cinquentinha!” “Pois, não, doutor, entra aí”. O povo foi se olhar nos espelhos da velha prefeitura e se encontraram lá sem cabeças. A febre dos sem cabeça tomou conta de José Freire. Por isso, o povo passou a ter duvida se tinha cabeça. Curiosamente, depois do ocorrido no prédio velho da prefeitura, as mortes cessaram, o serial Killer sumiu e a paz voltou à pequena cidade de José Freire...



FIM

domingo, 30 de outubro de 2016

ZÉ MARIA E LAMPIÃO

A vida nos traz muitas surpresas. Jorgeval era um professor da rede pública de Sergipe. Ele trabalhava no interior fazia tempo. Conhecia os sertões da fronteira de Tobias Barreto e Poço Verde como a palma de sua mão. Depois da chuva, a terra seca, e com ela vai a esperança de muita gente. No passado a coisa era bem pior. Esses sertões de caatingas e pedras grandes ainda nos contam um pouco da lida do homem que morreu em Angico, o Lampião.

Jorgeval vinha de uma escola do interior para a sede do município de Tobias. Ao seu lado, sentado, vinha um homem idoso e bem conservado beirando os 90. Com o balanço do carro Jorgeval desperta, e escuta, sem intenção, uma prosa entre o velho Cocada e um rapaz chamado de “Cosminho do jogo do bicho”. Este fazia banca na Rua Itabaianinha todos os dias, desde que sua amada mãe faleceu vítima da dengue.
- Cosminho põe um real na cabeça! Vai dar cobra! Ontem sonhei com uma jibóia que saía da Lagoa da Porta.
- Seja feito conforme sua vontade! Anotou Cosminho com dificuldade devido o balanço do carro.
- Rapaz, vocês moços de hoje vivem na moleza. Viajam para todo lugar na mordomia. Não sabem o que é poeira na cara ou o que significa andar pelas estradas desse sertão.
- Cocada como era na sua época? Perguntou curioso Cosminho.

Cocada meteu o dedo nas narinas e tirou uma meleca colocando-a no assento estofado do carro. Ajeitou-se no banco, e depois de apalpar suas genitálias, o velho tira o chapéu, mostrando a testa rosada para cosminho.

- Na minha época a coisa era muito difícil; o sofrimento era grande.
- Como assim Seu Cocada, eu não entendo?
- Vou te contar uma estória.
“Houve uma época em que Seu Virgulino passava pelo Povoado do Peba. Esse era o nome do atual povoado Monte Coelhos. Lampião tomava umas com seus cangaceiros na mercearia que ficava na esquina da praça onde está a entrada da estrada que vai para a Lagoa do Soares. O estabelecimento pertencia a Seu João. Era uma segunda feira. O povoado estava quase deserto quando as tropas de Lampião entraram no Peba.

O velho Cocada ficou com o olhar distante com o rosto voltado para a paisagem seca cheia de macambiras e juremas de todo tipo. Seus pensamentos voltaram ao passado de sua mocidade.
- Chega minha fia! Passa para dentro!
- O que foi mãe? Disse a moça Telma assustada.
- É Lampião minha fia que chegou!
- Lampião? Quem é Lampião?
- O cangaceiro minha fia.

A menina entrou em casa e correu para a janela para gretar por entre as brechas. Lampião entrava no Povoado Peba com seus homens. Eles formavam uma tropa de quarenta e cinco cangaceiros, todos armados de espingardas e facões. Não dava muito para ver porque a luz era fraca. Os lampiões de querosene não tinham tanto brilho como o cangaceiro.

- Mãe!
- Sim!
- Qual deles é o lampião?

A mãe de Telma olhou por um instante acompanhando a tropa, mas não o reconheceu. Lampião acampou três dias nos arredores do Peba na baixada entre a Rainha dos Anjos e o povoado. A água da terra era muito boa, mineral de natureza, atraía muitos viajantes, entre eles estava o famoso Zé Maria.

- Zé Maria! Que bom que você chegou! Sabe quem está na baixada?
- Não.
- É Lampião. Todo mundo está com medo, sei lá, eles podem fazer um malfeito.
- É Nestor, você tem razão. Chame por Deus, homem! Ele pode nos ajudar.

No outro dia de manhã cedo, Bartimeu, um cangaceiro de Lampião foi ao povoado pegar mantimentos para a tropa: farinha, feijão, fumo, carne seca, e outras coisas. Com ele estavam outros três homens, todos armados.

- Bom dia!
- Bom dia, moço. Respondeu Zé Maria. O herói do Peba tomava a frente quando o assunto era problema.
- Viemos buscar provisão para o patrão. Disse Bartimeu com voz decidida.
- Que patrão? Perguntou Zé Maria.
- Rapaz, não seja besta! Vá chamar o dono da venda!
- O dono sou eu. Continuou Zé Maria mentindo para o cangaceiro.
- Então, moço, encha o saco de feijão, farinha, fumo de rolo, e toda a cachaça que você tiver!
- Como? Sem cachaça nós não ficamos! Reclamou o corajoso Zé Maria.
- Seu atrevido. Respondeu Bartimeu. Bartimeu não era um homem violento, embora fosse cangaceiro, tinha o moço profunda devoção pelo Padre Cícero do Juazeiro.
- Salve meu Padin do Juazeiro, vou derrubar um louco da vida! Após sua breve e fervorosa prece, o cangaceiro abaixa o fogo e tira a mão do gatilho da espingarda.

- Tá bom, moço, ponha o que tiver.

Zé Maria pôs feijão, um saco, farinha outro saco, dois rolos de fumo, e cinco garrafas de pinga serrana.

- Só isso?
- É o que temos moço.
- Que o padin te dê em dobro!

Quando algum povoado atendia bem o coronel e seus homens, eles davam proteção à comunidade. Mas, lampião não aceitava desfeita. Eram oito horas da noite de terça feira quando lampião e seu bando chegam à porta da capela onde estava sendo rezada uma missa. Os tiros estalavam aturdindo a todos. Homens, mulheres e crianças saíram em uma correria medonha. O corajoso Zé Maria foi ter com o cangaceiro.

- Meu caro Virgulino! É assim que um homem de grande coragem e bravura ameaça a capela de Maria?
- Não seu moço. Minha pessoa não veio desafiar as forças da Santa, venho em busca de Zé Maria que me fez um agravo.
- Zé Maria disse: “Sou eu”.

Sob os gritos do povo apavorado lampião leva Zé Maria amarrado pelas duas mãos até a baixada. No acampamento deixaram o homem preso e foram ver o que fazer com o coitado. O seqüestro de Zé Maria abalou não só o Peba, mas, toda a Vila de Campos. O quartel que ficava na Sete de Junho foi acionado e tropas a cavalo foram no encalço do cangaceiro. Telma, no povoado Peba, acendia velas a Santa Maria para livrar a pobre alma de Zé Maria.

- Será que Zé Maria sai dessa? Perguntou o cabo Freitas ao soldado Chico.
- Acho que não. Eu estou indo com a tropa para não descumprir as ordens, mas, não vou trocar tiro com Lampião, não, tá doido!

Naquela época ninguém ousava desafiar o grande cangaceiro do sertão. Sendo assim, o futuro de Zé Maria era incerto. Então o peba inteiro se uniu para rezar pelo corajoso Zé Maria. Havia uma rezadeira no povoado que via o futuro na borra de café. Na visão da mulher, Zé Maria seria esfaqueado. A notícia correu o povoado apavorando ainda mais as pessoas. Na manhã do dia seguinte, os sete maiores cangaceiros de lampião e o próprio formaram um tribunal sob os olhos dos outros homens para julgarem o agravo de Zé Maria.

- Quer dizer que seu nome é Zé Maria! Um homem macho com nome de mulher! Disse seu Virgulino.
- Não de mulher. De uma Santa.
- Mas, você não é santo seu atrevido. Continuou lampião.
- Sua pessoa acha certo maltratar essas pessoas?
- Deixa de ser insolente! Eu não machuco gente inocente! Agora sua pessoa vai pagar o agravo que me fez. Lampião saiu e desfez o conselho. A decisão foi amarrar um peso de trinta quilos ao pé do homem, e soltá-lo na mata, depois da estrada que vai para Olindina na Bahia. Fizeram a bola de ferro e a prenderam ao moço. Depois um cangaceiro que atende pelo nome de Junco vazou os olhos do rapaz. Nas matas de macambira com os olhos vazados, soltaram o homem preso à 30 kg de ferro. O coitado morreria em poucos dias.
“Foi uma decisão acertada, patrão. Servirá de exemplo para todos que desejarem enfrentar a força do cangaço”. Disse Corisco segurando seu punhal na mão.
A ferida dos olhos doía mais que o peso amarrado a seus pés. As correntes fizeram feridas em torno do tornozelo direito de Zé Maria, que andava mancando pelo mato entre Itapicurú e Olindina. As horas passaram e se transformaram em dias. Faminto e com fome, andando em círculos, Zé Maria se senta no chão numa fria noite e pede a morte como alívio.

- Mãe! Sonhei com Zé Maria.
- Foi minha fia?
- E como foi?
- Ele estava vindo para a casa. Dois homens o segurava, pois, ele estava muito ferido.
- Que bom minha menina! Que Nossa Senhora o proteja!

A volante formada pelos soldados da Vila de Campos não alcançaram a tropa do cangaceiro que desaparecera como fumaça. E não sabiam do paradeiro de Zé Maria. Buscas foram feitas, mas, nada de acharem o corpo ou evidências de seu estado.
Amanhece o dia. Os pássaros cantam alegremente na mata fechada do Norteste da Bahia. Dentro dela, um pobre herói sergipano, filho legítimo da Vila de Campos, padece de fome e de infecções por todo o seu frágil corpo. Por acaso o homem ouve barulho de água corrente. Por intuição percebe que há um riacho por ali. Tenta selevantar, contudo, é inútil. O rapaz se arrasta com dificuldade até ouvir mais forte o barulho das águas. A sede era grande, a dor nos olhos maior ainda. Zé Maria bebe água com cuidado, lava suas feridas. Ele sabia que não tinha muito tempo, suas forças estavam indo embora. O barulho das asas dos urubus que voavam pelo local era um mau presságio. A morte estava chegando. Deitado à beira do riacho, Zé Maria invoca a Santa dos sertanejos:

“Salve minha mãe! Ave Maria!
Sou pobre pecador preso ao ferro do cangaço.
Não tenho muita virtude e mal sei escrever meu nome.
Não fiz muita bondade, mas, também não fiz muita maldade.
Rogo-lhe seu socorro, se for de sua vontade.
Não me deixe morrer sem ser enterrado!”

A prece lhe tirou mais energia fazendo-lhe cair inconsciente.

- Telma! O que foi?
- Num sei mãe. Sinto uma dor no peito muito forte.
- Acho que deve ser coisa de moça que está virando mulher. Disse sua mãe.

Em pouco tempo, o povoado não lembrava mais de Zé Maria nem de Lampião. Todas as segundas as pessoas desciam a feira de Tobias para fazer seus negócios. É assim a vida, quem vai, foi; quem foi não está mais aqui. E o resto, todos nós sabemos”.

- Mas, Seu Cocada; e Zé Maria, morreu? O velho sertanejo marejou os olhos de lágrimas e tremeu os beiços.
“A lua estava alta no céu quando Zé Maria despertou de seu passamento. O vento frio do sertão não mais o incomodava. Ele olhou para os lados e viu que via. Pegou em sua perna e não havia peso preso. Ao seu lado, estava uma figura de uma sereia que havia saído do riacho. Ela era toda dourada. A luz da lua fazia o dourado ficar mais brilhoso. Ela estava deitada à beira do riacho. De sua boca saía um cântico lindo, lágrimas caíram de seus olhos. O rapaz via tudo atônito, sem nada entender. A mulher sereia, calmamente, desce às águas formando um redemoinho; dele pululavam peixes muitos. Alguns caíram no colo de Zé Maria. “Zé, mate e coma!”
- Quem fala comigo?
- Sou eu. Você não percebe a fumaça do cachimbo?
- Sim, tem cheiro de alfazema.
- Volte ao Peba!
- Para que meu veio, aqui, tá tão bom!
- Telma espera por você.

A viajem de volta foi muito rápida. A estrada estava boa e o rapaz com novos olhos conhecia aqueles caminhos como a palma de sua mão. Numa manhã de sábado, Zé Maria chega ao Povoado Peba e é recebido como um herói. Telma vem ao seu encontro trazendo em suas mãos um prato cheio de cocadas que ela mesma fizera. As pessoas deram risadas. Daquele dia em diante, Zé Maria, se tornou em Seu Cocada. Um homem que nunca mais enfrentou Lampião, entretanto, ninguém daquele lugar conheceu rezador mais poderoso e amoroso como ele. Vinham pessoas de todos os lugares falarem com Cocada. A luz de sua vela e a fumaça de seu cachimbo ficaram conhecidos por toda a antiga Vila de Campos”.

Os passageiros do ônibus se calaram. O veículo passa por um riacho de águas cristalinas perto da entrada da Rainha dos Anjos. Ouve-se um assobio vindo de lá. E logo depois o barulho de água corrente. Cocada põe o chapéu de volta a sua cabeça branca, baixa a mesma, e agradece a Deus por tudo. Ninguém quis perguntar nada. A viagem prossegue tranqüila; cada um desce em seu ponto; cada um com seu destino...
Jorgeval desceu em Tobias Barreto. E de lá foi para Aracajú.

LEMBRANÇAS DA FRANCISCO HOLANDA

Por Roosevelt Vieira Leite

A Rua Francisco Holanda sempre ficará nas minhas lembranças. Lembranças de uma criança que viveu o bom da vida sem temê-la. A palavra medo não estava em seu dicionário nos idos anos 60. Recordo-me de um menino que pegava a areia marrom nas mãos e a apertava para sentir a sensação gostosa de terra quente ao meio dia e fria pela tardinha. Havia no peito daquele pequeno ser a certeza de que, ao retornar para casa, mamãe e papai estariam lá como dizia a rotina, a rotina boa de sua vida infante.
Sinto o cheiro dos cajueiros e mangueiras que reinavam por toda a velha Aldeota, que na época se tratava ser mais um bairro promissor da capital do sol. O menino caminhava livremente por todas as latitudes e longitudes daquele lugar. Do cocó a beira mar, se estendia seu reino de muitos sonhos e fantasias.

- Gildo, quero que você saiba de uma coisa.
- O que Neném?
- Eu sou o Zorro.
- O Zorro?
- Sim, mas, num diga nada a ninguém. Ninguém sabe disso. Hoje vou aparecer na casa de Carlos Alberto. Gildo deu uma olhada desconfiada e disse: “Vamos ver”.

Aquela manhã passou não muito rápida. O sol não se escondeu nem por um segundo atrás de uma nuvem qualquer, era o mês de novembro, o litoral do Ceará fervia e tremia ao olhar do visitante. Na terra do Dragão do Mar, saibam todos – O sol é Rei! E minha humilde pessoa – O Zorro!

Esse Zorro de minha infância trajava bermuda craque, uma mascara de pano preto com dois buracos mal cortados nos olhos, e um lenço velho para esconder a coroa de cabelos preto no topo da cabeça com os rodapés bem raspados. Esse Zorro tropical não usava camisa, pois, no Ceará o calor é em abundância. De vez em quando, ele usava uma capa preta que, na verdade, era a saia de sua irmã mais velha que estava para ir para João Pessoa. “Pare!” “Eu sou o Zorro!”
A tarde chegou; o pequeno menino magro e moreno escuro, quase preto, após o almoço costumava deitar-se no chão frio de cerâmica azul nos fundos de sua casa. No quintal, um muro que separava seu palácio de um terreno baldio. A sua frente, um pé de mamoeiro, que quase superava a altura de sua residência. O menino olhava para cima para ver as nuvens brancas a viajar no céu azul. Era uma sensação maravilhosa que escondia a imaginação pueril de uma vida que fazia das coisas objeto de suas brincadeiras. “Por que elas se movem?” “Pra onde elas estão indo?” A frieza da cerâmica acariciava sua pele fina dando-lhe o conforto necessário para que ele se entregasse a mais uma de suas quimeras. “Zorro veio do céu”. “Ele vai salvar a todos e quem sabe a irmã dela olhe pra ele com olhar diferente” Esse “ela” era a irmã da namorada do irmão de Neném, o temido “Macaúba”. Essa era uma pessoa que falava com fluência, tamanha fluência que ninguém conseguia traduzir seu vernáculo. “Macaúba, vamos brincar de pião?” A resposta era tão rápida que o pequeno Neném intuía que tudo aquilo era: “Vou”.
O chão frio estava ficando mais frio e o sono tomava o pequeno mancebo sobralense. Agora, no mundo onírico, o menino da Aldeota dialogava com seus demônios interiores. Ele tentava mexer seu frágil corpo lânguido, mas, era em vão. Uma senhora idosa aparecia em sua vidência sonambúlica. “Menino, que fazes aqui?” A senhora aparecia irritada, e com uma pequena faca na mão direita, e na esquerda algo semelhante a uma lata de leite o ameaça com gestos e palavras duras. O jovem Neném tenta acordar, mas, em vão, suas pálpebras pesavam mais que um saco de cimento. A mulher o ameaça novamente: “Menino, vou te levar para a terra dos pés juntos!” De súbito, Neném desperta com o chamado de sua irmã Ana perguntando-lhe sobre o paradeiro do doce de goiaba que estava na dispensa. O pequeno jovem metropolitano não sabia o que dizer, na verdade, sua boca conservava os vestígios de sua mais recente transgressão na forma de pequenos fragmentos avermelhados. “Tu não deixa nada pra ninguém!” “Quando papai chegar contarei pra ele!” A moça Ana estava, de fato, com raiva, e com toda razão. O pequeno Neném não resistia uma goiaba, nem se contentava com pequenas quantidades do referido doce.

A noite estava chegando, o seriado “Perdidos no Espaço” era um sucesso para toda a criançada. Neném não perdia um. A velha televisão ‘preto e branco’ anunciava o início da série americana: “Perdidos no Espaço” As cinco e quarenta e cinco o seriado terminava; Neném e seus amigos iam para a calçada reprisar as cenas do filme ou comentar alguma coisa. Na verdade, Neném tinha sua própria nave espacial – uma caixa de ovo branca feita de isopor, e os seus tripulantes eram palitos de fósforo. “Leite, cadê o fósforo?” “Tá na cozinha!” “Não, aqui, não!” O menino Neném foi intimado a depor no quarto grande, ou, o quarto do papai e da mamãe: “Não minta, onde está o fósforo, foi você quem o gastou?” Neném espremia os beiços na forma de uma flor vermelha e chorava ante a ameaça da chinela de couro de seu amado genitor. Uma, duas, três lapadas foram deferidas contra seus lombos franzinos. O menino se amua no canto do quarto próximo a porta. O choro cessa após alguns minutos. A lembrança do Zorro toma conta do menino novamente, era hora de salvar aquela menina das garras de seu vilão. Neném pula a janela do quarto de seus pais e sai pela lateral sem ser visto por ninguém. O portão da frente bate e com sua batida o cheiro de café no fogo toma conta do rapaz. Mas, ele não podia esperar mais; o horário era aquele, seu amigo Gildo o esperava. Zorro teria que salvar aquela moça. Neném se lembra da mascara e da capa. Ele precisava improvisar uma espada urgente. “Se não der pra ser o Zorro, eu apareço como Durango Kid”. “Mas eu disse que era o Zorro!”. Neném teve uma ideia brilhante. A vassoura da casa era guardada no quintal, perto da casa dos cachorros. “Eureka”, “é só tirar a cabeça e a vassoura se torna uma boa espada”. O serviço foi feito. A televisão anunciava a próxima programação “Vila Sésamo”. Neném sente um desejo enorme de assisti-la, mas, seu compromisso com o oprimido era maior. “Eh, mas, herói é herói”.

Entre pés de mamonas e muricis surge o Zorro de Fortaleza. Um herói destemido, na verdade, decidido a salvar qualquer moça vítima de um vilão qualquer. Aquela missão seria decisiva para ele, pois, agora, alguém sabia de sua identidade. Gildo vê o Zorro e se espanta. “Gildo, eu num disse que eu era o Zorro?” Gildo se rende a verdade incontestável. Os dois meninos seguem bravamente rumo à única mansão das redondezas – a casa de Carlos Alberto, filho de um bancário bem sucedido. Era uma casa enorme de muros altos, exceto, na frente que ostentava orgulhosamente um hall de cerâmica de lei que vez ou outra se transformava numa quadra de esportes para a criançada. O jardim da frente da casa era protegido pelas grades pretas que serviam de muros para aquela mansão de muita paz. Era mais uma casa da Francisco Holanda, mais um cenário das aventuras do moleque Neném.

- Neném como é que você vai atacar.
- Diga você!
- Você é quem é o Zorro!
- Então, vamos por cima do muro.

Estava sendo construída a malha de esgotos da capital do Ceará. Havia, na época, montanhas de barro espalhadas por toda a Aldeota. Isso armou os inimigos do bem. Neném e Gildo foram recebidos a bala pelos os inimigos que se escondiam além dos muros. Neném sobe o muro e Gildo pelas grades, os dois tentam resistir desviando-se das balas de barro. O herói puxa sua espada e grita: “Eu sou o Zorro!” Isso fez a turma de lá atirar mais balas de barro. A luta era renhida, até então, a vitória estava para os soldados do mal, quando de repente ouve-se uma buzina de carro à porta da mansão. A meninada corre, Zorro e seu amigo descem do muro e se enfiam por entre as mamonas. Era hora de tomar café. Petrônio gritava o nome do irmão e eu fui com ele e meu amigo Gildo. Minha mãe queria saber o paradeiro da vassoura. “Foi você de novo nego velho?” O menino melado de barro até os cabelos da cabeça diz com sua gagueira emocional: “Foi, eu, eu, eu só queria salvar ela...”

As areias da Francisco Holanda escondem segredos que ficarão para sempre ali, e enquanto houver sonhos eles continuarão por lá. Pela manhã as areias são quentes como sol de minha terra, e pela tardinha, elas são frias como o vento que sopra do mar, do mar dos jangadeiros, dos verdes mares do Ceará.

A SÍNTESE

A SÍNTESE POR ROOSEVELT VIEIRA LEITE

Não foi eu quem fez o mundo; eu, mal consigo terminar meu dia. Minhas forças carregam meus fardos ladeira acima ou abaixo, pois, o destino dos meus passos é feito pelas escolhas de meus olhos. Olhos que não se cansam de ver; Olhos que se enganam com as miragens da alma; Olhos que brilham com o prazer; Olhos que se fecham quando há dor; Olhos que se escondem nos cantos das órbitas oculares, olhos que são uma metáfora. Sou uma alma que grita, chora, rir, celebra; se encanta, se atormenta, se espanta, se quebranta; Alma que crer, e descrer; alma que é alguma coisa só minha mesmo sendo uma comunidade de sujeitos. Eu, que me sinto alma vivente agradeço ao divino o dom de não ser. Não sou nada além de mim, e tudo que sou é alguma coisa tentando, desesperadamente, ser qualquer coisa. Ser o sentido do vento; Ser o sentido do tempo; Ser a poesia declamada, que afaga alma do mundo. Ser o não-ser, ser a constante crise de ser não sendo, e não ser sendo quase alguma coisa na terra. A terra que separa as almas, A terra que as junta em abraços de afeto, ou as distancia pelas intrigas do dia. A terra que brota vida, A terra que é morte, e a morte é a minha última sorte. Ai de mim se eu não viver vida. Ai de mim se eu esquecer da vida. Ai de mim se eu não amar a mim mesmo, mesmo odiando-me por não ser o ser ideal. Vi um homem que criou para si um homem melhor do que ele. Soprou em suas ventas sete sopros de vida. Depois, o moço criador sentou-se para aguardar. A terra rodou, rodou, e seu boneco ficou tonto. Parecia um bêbado com mãos trêmulas solto no mundo. O homem caminhou o que pode; A ideia de nada adiantou, Todos são o que são ou pensam que são, pois, o não ser é mais sincero que o ser ideal. Entre a ideia e a pedra, reina a pedra. Entre a pedra e a alma, reina a alma; Entre a ideia e a alma, reina a ideia. Eu sou uma alma cheia de ideias, Sou uma caixa de surpresas, Sou uma víbora dentro de uma gaveta. Sou um pingo de nada na imensidão do tudo. O tudo que não é meu e nem teu. Não foi eu quem fez o mundo; Nem o mundo me fez. Sigo minha trilha sem saber onde vou; sem saber onde parar. Não há possibilidades de negociar com as fatalidades, O acaso é um absurdo, porém, é tão duro quanto a rocha. A rocha que fere a carne, a carne que a terra come. A terra come os homens, os homens comem da terra. Não foi eu quem fez isso! Sou apenas alguém que quase sempre está errado sobre tudo. E quando acerto alguma coisa, logo, percebo que o que disse já foi dito por outro antes de mim. Assim, o meu dizer é de todos e os deles é meu também. Viva o mundo! Viva a saga chamada vida! Viva enquanto podes, pois, mais tarde quer queiras ou não será apenas uma peça de necrotério. Essa é tua benção mais sincera, Essa é tua hora derradeira; Esse é o verdadeiro sentido de tudo, a tua síntese, o depurar de tuas horas. Não te apresses, quer queira ou não tu vais embora....