segunda-feira, 27 de junho de 2016

MIGUEL E O LIVRO

MIGUEL E O LIVRO Por Roosevelt Vieira Leite “Dizem que a magia foi ensinada pelos anjos. Reis, rainhas, príncipes e princesas tentaram por as mãos nela, mas, diz a tradição que poucos foram os homens que a entenderam, e somente alguns a usaram para o bem do próximo. O grande arcano da magia universal nos diz: A magia é a transformação da matéria por uma vontade forte e lúcida para o bem do seu semelhante”. O jovem Miguel nasceu e se criou em José Freire. A cidade de José Freire evoluiu da condição de sesmaria para povoação e vila, e logo em seguida, tornou-se cidade por força de um decreto governamental. “De hoje em diante, essa povoação será cidade”. Esta foi a vontade do, então, governador do estado, o Senhor Felipe Moura, em 1923. A suposta emancipação política de José Freire de sua antiga sede, a Grande Itabaiana agradou a muitos, no entanto, José Freire continuou devendo a alma à princesa da Serra. As pessoas de José Freire sentiam orgulho de sua terra, entre elas estava Miguel, filho de dona Amarantes com seu Bartolomeu. Este senhor era um verdadeiro descendente dos colonizadores. Bartolomeu contava para seu filho único os feitos dos antigos: “Aqui nessas terras, os índios dominavam tudo, mas, o bacamarte do colono português falou melhor”. Miguel estudou até a terceira série do ensino fundamental, e seguiu o caminho de seu pai – trabalhador braçal rural. Miguel se sentia muito feliz com a vida que tinha até que um dia o destino levou seus dois velhos: “A vida é cruel”. Pensava o rapaz sempre que se lembrava de seus queridos. A partida brusca dos seus o fez tornar-se um homem triste e de pouca conversa. Miguel era um freirense alto, branco, corpo musculoso, e olhos esverdeados que realçavam seu cabelo castanho claro. Seu finado pai dizia que ele deveria cortá-lo: “Miguel, esse cabelo num é de homem, macho, não, pois, cai toda hora em tua cara”. As moças de José Freire lutavam entre si para ter o rapaz e ele foi quem as teve quando quis, depois, o rapaz mudou o ânimo com a morte de seus pais. De fato, a partida de seus genitores mudou a cabeça do jovem freirense. Houve noites em que Miguel acordava no quintal de sua residência a conversar com o tempo. Poucas não foram as vezes que o mancebo sonhara com moedas de ouro. Todavia, o rapaz não se interessava por essas coisas. Na verdade, o que Miguel queria era viver sua vida do seu jeito – Só. O tempo, guerreiro implacável, passou; o rapaz se tornou homem e foi morar numa propriedade nas cercanias do chafariz do “Cancelão”. Este era um lugar um tanto deserto tanto de dia como de noite. Miguel gostava de lá, exatamente, por essa causa. O rapaz de seu Bartolomeu adorava as noites de lua cheia na varanda de sua pequena casa quatro águas. - Miguel, meu filho você num vai casar não? Um homem de sua idade sozinho. Isso num presta. Dona Chiquinha, mulher de seu Rocha, morava numa chácara vizinha a de Miguel; a senhora gostava de sentar em sua calçada às noitinhas. - Dona Chiquinha, melhor só de que mal acompanhado. O mundo anda louco, ninguém mais merece confiança. Na verdade, o único ser vivo que respeito e confio é minha cadela “Piabeta”. O animal ao ouvir seu nome balançou a calda na horizontal como que concordasse com as assertivas de seu dono e mestre. A senhora de idade não se conformou com o que ouviu e investiu contra o argumento do rapaz. - Quer dizer que sua pessoa não confia em mim? Ou que não confia no padre Barreto? Ou que não confia nos santos da igreja? Ou que não confia em ninguém mesmo? A senhora aumentou o tom de voz à proporção que os nomes iam lhe aparecendo na mente. - Não é isso dona Chiquinha, é difícil explicar. Chiquinha o interrompeu subitamente para ouvir o carro de som que passava anunciando o falecimento de alguém: “Tomé, Paulo, Tereza, Dona Francisca e demais familiares anunciam o falecimento de seu Durval, pai, marido e amigo. A família enlutada convida a todos para o seu sepultamento, amanhã, às dez horas, no cemitério local”. Miguel ao ouvir o carro-de-som aproveitou o ensejo para sair de fininho da confrontação de dona Chiquinha, e com ele foi a cadela Piabeta. - Dona Chiquinha eu conhecia esse homem. Ele morava perto do abatedouro de frango. Eu vou passar lá agora. - Vá meu filho, depois, volta cá para a gente terminar a prosa. Miguel saiu de fininho, pegou a estrada rumo à cidade, mais na frente, entrou numa cerca e desceu com a cadela branca Piabeta pelo pasto na direção da Barragem, o rapaz dizia: “Essa lua me inspira, eu vou é ver a água do rio que eu ganho mais”. A água da barragem estava quieta, a lâmina de água refletia a cor prata pela força do brilho lunar. Aqui e ali, ouvia-se o barulho de uma tilápia que saltava da água como que quisesse abraçar a lua. Às margens daquela água, quase mineral, havia rochas metamórficas lavadas pelo tempo. Os milênios de formação geológica mais a mão humana deram um desenho inesquecível aquele lugar. Grutas e matas do agreste sergipano completavam sua beleza. O quero-quero rascava o céu aproveitando que o gavião não tinha hábitos noturnos. Nos beiços da barragem, nas suas margens, o freirense construiu seu negócio - Bares, e restaurantes dividiam o espaço com a natureza. Mas, àquela hora da noite daquele dia, não havia uma viva alma, exceto, um homem sertanejo chamado Miguel e sua cadela Piabeta. A beleza deslumbrante do lugar, a luz da lua e o som do vento forte que vinha das bandas da capital sergipana fez o rapaz recordar dos dias de ouro quando o mesmo pescava com seu pai nas águas límpidas do Rio Vaza-Barris. “Pai olha o que eu pesquei”. Miguel exibia orgulhosamente a traíra que havia pescado. “É assim, mesmo meu filho, o bom pescador num deixa a família com fome”. Aqueles foram dias de luz para todos daquela família. O pequeno Miguel aprendia a educação básica herdada dos pioneiros desbravadores do agreste sergipano. Mais não era só isso; na verdade, era a cumplicidade de um pai e seu filho único no aprendizado das primeiras coisas da vida. Miguel amava seu pai e sua mãe, a partida de ambos deixou um vazio não preenchido em sua alma, por isso, o moço se ‘amuou’ como dizem o povo dessas terras. As lembranças de Miguel foram dispersas pelo som da cadela que latia insistentemente voltada para um arbusto de macambira a alguns metros das pedras lavadas. Era uma parede enorme de pedras que beiravam as águas da velha barragem. “A cachorra cismou” pensou o moço. O rapaz queria continuar com suas doces imagens mnemônicas de sua infância, mas, a Piabeta latia e se virava na direção de seu dono como que querendo dizer alguma coisa. “Calma branquinha, calma!” O moço freirense terminou atendendo ao chamado de seu animal e foi ver o que era. Uma cobra jiboia de pequeno porte engolia quietamente um sapo. “Deixa pra lá Piabeta, deixa!” Disse o moço a sua amiga. A cadela continuou com a cisma contra o anfíbio que se escafedeu pela grota de pedras. Em seu lugar, sobre uma laje coberta de folhas de jurema preta, estava um livro grosso de capa marrom de couro curtido. O rapaz o pegou e o levou consigo ao lugar onde antes estava. O brilho lunar era tão forte que qualquer um de vistas boas poderia ler o livro. “Afinal que livro é esse, e quem o deixou aqui?”. Pensou o rapaz com o livro nas mãos. O misterioso livro tinha um pantáculo geral de Salomão gravado na capa de couro. Esta foi a primeira coisa que lhe chamou a atenção. O rapaz pensou novamente: “Que é isso?” Na capa interna do grimórium havia o desenho sinistro do famoso “Bode de Mendes” com o seguinte dizer: “Solve e depois coagula”. Miguel começou sua leitura às 8 horas da noite daquela segunda feira dia de Saturno. Dizem os mais sabidos que no dia e hora de Saturno os bruxos evocam os espíritos da referida esfera e estes são seres do mal. Quanto mais o rapaz lia o livro, mais a vontade de chegar ao fim da história era forte. O livro era um mistério para Miguel, e isso o prendeu até o brilho da lua fenecer. Quando a escuridão da noite tomou conta do céu, Miguel retornou com o livro para sua residência, mas, encontrou-se no caminho com uma mulher vestida de preto e vermelho que falava com sotaque de cigana. A mulher perguntou ao rapaz se o mesmo desejava uma noite de amor: “O moço deseja a cigana?” “Como senhora?” “A propósito como uma senhora como você se embrenha nestes pastos?” “Perigoso sabia?” A mulher deu uma risada alta e arrumou os cabelos do lado esquerdo e com a outra mão na cintura direita olhou direto nos olhos de Miguel: “Menino, a vida é curta, não perca tempo”. Miguel pôs o livro sobre um toco de mangueira e chegou para mais perto da “Senhora da Noite”. O seu cheiro entrou em suas narinas. A fragrância que irradiava de seus cabelos encheu os pulmões do moço. A mulher era de formosura impar. Os dois se deitaram na relva baixa do agreste de José Freire. Em certo momento, Miguel percebe que os dois não estão sós. Vozes e gemidos de mulheres são ouvidos pelo moço; o rapaz se ajeita; se recompõe, e deixa a moça deitada ao seu lado enquanto olha para todos os lados. “Mas, o que é isso?” Perguntou Miguel a sua parceira estranha. A mesma diz: “Dentro de uma mulher estão todas”. Miguel se ergue e toma suas roupas consigo. A mulher o fita mais uma vez e como que por um passe de mágica a “Senhora da Noite se multiplica em sete outras mulheres, todas diferentes da outra e com beleza sem igual. As mulheres investem no rapaz que sede aos encantos das meninas sinistras. A orgia continua até as doze horas da noite de Saturno. O rapaz não se recorda de como chegou a sua casa, apenas, tem a consciência de voltar à leitura do livro nas primeiras horas da terça feira, dia de Marte. Miguel, ainda tonto e confuso com a noite que teve e sem saber como chegara a sua residência, e quem foi que o trouxe, retoma, mesmo sem comer nada forte a leitura do Grimórium de Gottam. Piabeta não parava de latir; a cadela amada de seu dono não saia de perto dele e quando Miguel se levantava para ir ao banheiro ou beber água ou tomar um cafezinho, o animal investia contra o livro estranho. “Quieta Piabeta!” “Quieta!” “Cismou foi?” “É só um livro”. O sono não veio, o dia era claro, e Miguel concluía sua primeira leitura da obra enigmática. “Rapaz, quer dizer que os anjos caíram?” “Quer dizer que meu nome é de um anjo, um dos príncipes do Paraíso?” O livro continha, no final, as seguintes palavras escritas na forma cursiva, e a assinatura do autor: “Eu, conde Jorsse Van Gottam, escrevi esse grimórium com sangue de morcego em pele de cabra virgem, no dia e hora de Mercúrio. Dedico-o a qualquer afortunado que o encontrar, pois, se você o encontrar saiba que foi ele quem te encontrou. O conteúdo dessa obra é para os iniciados e não deve ser passado ao incauto”. A pouca leitura de Miguel não foi problema para decifrar o conteúdo do livro que foi lido e relido por ele diversas vezes na mesma semana. O rapaz perdeu alguns quilos, cerca de dezesseis quilogramas naquela semana. Seu corpo esbelto ficou mais esbelto e seu rosto, sim seu rosto passou a brilhar como sol ao meio dia, no entanto, o jovem Miguel não fazia a menor ideia do que estava acontecendo consigo. Foi numa quarta feira, dia de Júpiter, que ele viu e sentiu que não era mais o mesmo. A comida havia estragado na geladeira, o rapaz foi ao mercadinho comprar alguma coisa, pois, a fome havia decididamente se instalada no moço. Ao chegar ao estabelecimento de seu Peixoto Hora as moças do lugar o olhavam como que embevecidas com sua beleza, seu rosto transmitia além da beleza muita paz, até os homens viram e creram que o jovem homem do Cancelão havia mudado. Todos queriam um dedo de prosa com ele, contudo, Miguel manteve-se como sempre, calado, e afastado do povo. O rapaz retornou para sua residência e dedicou-se a ler o livro. Aquela era a décima sétima leitura do livro sinistro; mas, cada vez que ele lia o Grimórium de Gottam, mais a vontade de ler aumentava. Miguel, então, pensou consigo: “Vou mostrar a alguém, que tal o padre Barreto?” O rapaz foi à casa paroquial onde o referido padre residia. Mostrou-lhe o livro com muito entusiasmo, mas, se deparou com uma coisa que não esperava: “Você sabe holandês Miguel?” Perguntou sua santidade. “Não”. Respondeu o trabalhador braçal rural Miguel. “Que pena”. Continuou o vigário. O livro estava escrito em holandês antigo, todavia, Miguel entendia tudo, e isso lhe atiçou a curiosidade. “Como eu leio o holandês?” No dia 26 do mês de julho, dia de Nanã Buruquê, Miguel realizou o primeiro conjuro, e o primeiro exorcismo contidos no estranho Grimórium de Gottam. A lua estava de nova para crescente, era lua boa para feitiços positivos. Miguel adaptou seu quarto para ser uma sala de evocações. Construiu seu triângulo de evocações de acordo com o rito ensinado pelo grimórium, depois, riscou o pentagrama. Miguel evocou as forças do ar, do fogo, das águas, e da terra e Seu pentagrama resplandeceu como a luz do sol na superfície lunar. Contudo, infelizmente, a estrela celeste do Grimórium tinha sua cabeça voltada para o cardeal sul. Em poucos meses, aquele que nada tinha passou a ter; comprou uma casa cara na principal Avenida de José Freire, comprou um carro de luxo, e isso fez o povo falar: “Será que Miguel está vendendo drogas?”. O rapaz não perdia um jogo de bicho nem a quina da loteria, ganhou os prêmios sistematicamente por meses até que se satisfez e disse para si mesmo: “Vou parar um pouco para não chamar a atenção”. Não se comentava outra coisa em José Freire. Miguel era o assunto do dia. Até as raparigas da avenida perderam a primazia dos comentários locais. Miguel estava na boca de todos. - Miguel, meu filho que diabo é isso? Disse assustada dona Chiquinha ao encontrar-se com seu antigo vizinho. - Que diabo o que dona Chiquinha? Eu tive muita sorte. - Vai ser sortudo assim na casa da peste homem! Tu eras nada e agora parece milionário. Continuou a sexagenária. O rapaz coçou a garganta, segurou, com a mão direita, a genitália e cuspiu na calçada ao dizer: “Deus é bom comigo dona Chiquinha, e sua pessoa precisa de alguma coisa?” A velha vizinha disse, então: “Não senhor, fica com Deus meu filho”. Nos interiores ou do sertão ou do agreste sergipano é muito comum as pessoas constituírem modelos de vida. Miguel tornou-se um deles. “Miguel não usa jeans, sabia?” “Não, e é rapaz?” “Miguel não frequenta a noite”. “Pois, não é; ele é muito é sabido”. As pessoas passaram a usar o social e a se recolherem cedo. Com isso a violência diminuiu em José Freire, mas, os donos de bar tomaram um grande prejuízo, pois, até os bêbedos haviam parado de beber. Miguel costumava frequentar a missa no final de semana no domingo pela manhã. Essa missa tornou-se a mais frequentada e padre o Barreto agradeceu a Deus pelo que houve com Miguel: “Meus paroquianos, senhores e senhoras, cristãos em geral. Quando Deus faz um milagre, a coisa acontece mesmo, pois, Ele é Deus de grandes coisas, logo sabemos, logo percebemos. A mudança na vida desse senhor Miguel é evidente; ela demonstra a ação do Todo-poderoso”. As pessoas passaram a olhar Miguel como um santo, como alguém verdadeiramente agraciado por Deus. Agora, o homem se tornou um modelo, um paradigma em José Freire. Quando Piabeta faleceu houve uma verdadeira comoção no município. Miguel não entendeu o que houve com sua estimada cadela. Segundo relata o mago freirense, ele encontrou o animal cheio de dentadas de diversos tipos e seus dois olhos arrancados. O povo quando encontrava o então ilustre Miguel lhe dava as condolências pelo falecimento de sua amiga. A admiração pelo mais novo nome bem-sucedido de Freire era visível. - Num viu, Miguel, Toninho viu? Rapaz, deixa dessas coisas bestas! Veja como Deus mudou a vida dele! É isso; é chamar por Deus e tudo muda! O rapaz olhou pra frente como que visse alguma coisa além da parede amarela parda de seu quarto e disse respondendo a sua genitora. - É mesmo mãe, é mesmo! O rapaz mudou da água para o vinho! Quando alguém queria explicar alguma coisa, a referência era Miguel. Miguel faz assim, Miguel não faz isso. Miguel faria desse jeito, e isso ele jamais faria. Seja como Miguel, veja o exemplo dele. A cidade de José Freire passou a ser a cidade de “Miguel”. Antes, tudo era da Boa hora, ou de Roque, agora era de Miguel. Farmácia São Miguel, Padaria Miguel de Freire, Pousada Miguel e Amigos, etc. Mas, nem tudo era benção, havia uma classe de pessoas que não engolia essa febre miguelina. Eles eram os políticos locais. “Esse cara está dando trabalho”. O Senhor prefeito de José Freire, numa sexta feira, às quatro da tarde, reúne seus assessores e vereadores aliados; ao mesmo tempo, do outro lado da cidade, a oposição faz o mesmo e com um tom mais revoltado: “Esse filho da peste quem é?” A vida de Miguel passou a ser alvo de várias investigações, mas, nada era encontrado, excerto, o fato de ele ter o hábito de ler todos os dias o mesmo livro e ganhar sucessivamente na loteria e no bicho. Ficou sabido que o padre sabia sobre o livro. A classe política, em fila indiana, se dirigiu a residência paroquial: “Padre Barreto, boa tarde. Estamos pesquisando um nome para ser o cidadão do ano de José Freire. O que o senhor sabe sobre o Miguel?” O velho sacerdote respondeu apenas o que sabia: “Nada que o povo não saiba. Ele é um rapaz sofrido que teve muita sorte”. “E sobre o livro que ele ler, o que senhor tem a dizer?” O velho padre entendeu a malícia dos homens e respondeu o que sabia: “Ele não ler holandês”. A resposta do vigário de José Freire deixou a classe política local de orelhas em pé, afinal, como um semianalfabeto pode ler um livro em holandês, e que livro seria esse? Agora, o foco dos políticos era descobrir a natureza do livro. Mas, sempre tem alguém para dar uma ajudinha. O senhor prefeito de José Freire foi visitado por uma pessoa ilustre – O professor Adalberto. Adalberto era estudioso dos ritos goécios há mais de dez anos, e quando soube do Grimórium procurou seu velho e ilustre amigo: - Se for o que eu estou pensando, ninguém segura o rapaz! - Como Adalberto? - É isso mesmo que sua pessoa ouviu. O portador desse livro tem o poder de Lilith. Ela vai encantá-lo, o livro vai seduzi-lo e se ele se dominar ele será o homem mais poderoso do Agreste. - Bem, até aqui, sabemos que é um tal grimórium de Jorsse Van Gottam e que está escrito em língua estrangeira. Adalberto se levantou da presença de vossa excelência, acendeu um cigarro e concluiu sua visita dizendo: “De acordo com meus estudos, os grimóriuns procuram bruxos reencarnados e seus intentos é despertá-los na magia dos mesmos”. Numa segunda feira, dia dos pretos velhos, um senhor de idade avançada, de etnia negra e cabelos brancos como neve, bate à porta de Miguel. O rapaz responde da sacada da casa: “Perdoe”. O velho, com dificuldade levanta a cabeça na direção de Miguel. Seu corpo apoiado numa bengala de madeira de pau-ferro experimenta as mazelas da idade avançada: “Meu filho, desça aqui, quero falar com vossamercê”. Miguel sem entender, obedece ao velho e o recebe no hall de sua casa suntuosa. - O senhor se lembra da cobra que engolia o sapo no pé da grota onde estava o livro de Gottam? Miguel ficou embaraçado por um instante. Ele ficou atônito em ao ver que alguém o havia visto naquele início de noite. - O senhor estava lá? Perguntou Miguel em resposta a pergunta do velho. O velho tirou do bolso da camisa branca de algodão um cachimbo de madeira. O acendeu e deu três baforadas para o lado esquerdo. - Sim, senhor. Eu vi a cobra sumir na pedra. Você viu também, num viu? Miguel continuou sem saber o que dizer e por educação responde ao idoso negro que sim. - Então, meu filho, todos que leram esse livro sumiram como aquela cobra. O filho sabe para onde ela foi? Miguel um pouco irritado, mas, com a educação que seus pais lhe deu o responde com mais uma pergunta. - Como vou saber meu senhor? - Então, meu filho, esse é o caminho dos que fizeram o que o velho Gottam ensinou. O filho tem um cafezinho? Miguel se ergue da cadeira de ferro onde estava e vai pegar café na cozinha para o estranho e esquisito visitante. Ao voltar, o lugar estava vazio, apenas a fumaça do cachimbo e o cheiro de essência de crisântemos enchia o lugar. Miguel meditou nas palavras do velho por sete dias, ao final do período, sentiu náuseas e ânsia de vômito. Na noite deste mesmo dia, Miguel teve um sonho bizarro. O homem que lhe visitara aparece em pé na cabeceira de sua cama. O ancião com voz mansa lhe diz: “Moço, vamos comigo”. Miguel estava sem roupa. O rapaz sente a brisa do vento do agreste soprar em seu rosto e depois ele estava chegando a uma esfera cor de violeta. Saturno é mais um planeta do nosso sistema solar, na verdade, é o segundo maior planeta. O diâmetro de sua linha equatorial é de 120.536 km. A órbita de saturno está localizada entre as órbitas dos planetas Júpiter e Netuno. O planeta lilás tem densidade muito baixa, e ao seu redor existem anéis formados por restos de meteoros e cristais de gelo. Ainda no espaço Miguel viu a certa distancia algumas luas dentre as 60 luas que constituem a totalidade de seus satélites naturais. A princípio, Miguel temeu, pois, nunca vira uma coisa como essa - viajar no espaço. O rapaz não sabia se estava no corpo ou fora dele, pois, a sensação que sentia era de leveza absoluta. O velho que estava com ele lhe confortava sempre e lhe dizia: “Num se preocupe, você não vai cair, pelo menos aqui”. Antes de entrar na zona gravitacional do planeta, Miguel foi alertado pelo ancião que ele sofreria algumas alterações. O rapaz ficou tonto, sentiu náuseas novamente. Segundo seu guia, era um ajuste no períspirito, pois, a atmosfera daquela esfera era muito diferente da terra e seu períspirito precisava de doses maiores de hidrogênio, hélio, metano, amônia, etano, fósforo, e água na forma de vapor. Os dois homens foram descendo pelo lado claro do planeta onde havia uma pequena vila dirigida por antigos babalaôs africanos e todos os que vestiram a roupa fluídica dos velhos sábios. À porta estava o ancião Hórus. Hórus os recebe e os adverte que a visita duraria apenas sete minutos. Miguel andou, viu e ouviu na terra dos “Pretos Velhos”. Ali, gente de todas as partes do mundo faziam terapias intensas para saberem lidar com suas vidas passadas. Muitas pessoas não aceitavam o fato de terem passado, e viviam todos os dias os mesmos traumas que lhes fizeram infelizes. Entre eles estava Jorsse Van Gottam. Após algumas centenas de anos, o velho mago deixara o lado negro da esfera e estava na unidade de terapia intensiva. A sala 05 da unidade de Intensive Care abrigava as mais sofisticadas máquinas já produzidas pelos engenheiros do Astral Crístico. Ali, com muito técnica se reprogramava as mentes debilitadas pelos vícios provocados pelo mau uso da magia, ou a prática da magia negra, mas, isso não aliviava ou atenuava a pena dos transgressores, era apenas a caridade agindo para que surgisse uma oportunidade das pessoas recomeçarem suas vidas sob novo nome, nova forma, e em uma nova realidade. O simulador de realidades era um microprocessador de realidade humanas que fornecia aos técnicos dados sobre uma nova existência na esfera terrestre. No banco de dados desse superprocessador estavam todos os arquétipos da humanidade, e todas as infinitas possibilidades de produção de sentidos. Assim, novas realidades poderiam surgir; realidades com novos desafios, e novas propostas de vida. Miguel viu que o destino das pessoas começava ali. O velho que acompanhava Miguel parou próximo a uma tenda espiritualista. Lá, estava um senhor idoso de cor branca e chapéu de palha. “Oi, amigos, que bom que vieram”. O velho que estava com Miguel perguntou ao homem da tenda se ele podia adotar Miguel: - É meu filho, as coisas nem sempre são como esperamos. Você sabia que os ventos dessa esfera chegam a dois mil quilômetros por hora, e que a temperatura da matéria planetária chega, na superfície, a 170 graus célsius negativos? Cada esfera tem seu jeito, e assim é com as pessoas. - Isso, mas, converse com o moço, temos ainda alguns minutos. Miguel recebeu as ondas telepáticas de Pai Tomé. O velho, então, lhe perguntou: - Que fazes moço? - Nada. - Como assim nada? - É nada mesmo. Hoje, só me ocupo com o estudo do grimórium de Gottam. - Vocês estuda o livro negro de Gottam? - Sim, senhor? - Num teve náuseas, nem ânsia de vomito, não? - Sim, senhor, mas, logo me acostumei. - Mas, num era para ter se acostumado. - Por quê? Questionou o moço. - É por que esse livro fora consagrado a Deusa lunar chamada Lilith. Ela, no início dos tempos, ensinou a Caim a magia do sêmen, e graças a ela os homens passaram a fazer o mau uso do Fluido Universal. Uriel fez de tudo para fazer o moço Caim mudar de ideia, mas, o homem tornou-se o primeiro mago negro da raça ariana. Miguel continuou apático ao discurso do ancião. No entanto, o velho insistiu: - Oi, meu filho, jogue o livro no fogo, na hora de Mercúrio e chame pelo Mestre Jesus que o livro te deixará. Caso você insista, o aviso é que o livro te controlará até você ser engolido por ele. O velho se ergueu de onde estava. O ancião trabalhava uma roda de oleiro e fazia vasos de barro e depois os colocava para assar no forno. O guia de Miguel o chama a parte e lhe diz que agora seria preciso ir ao lado negro de planeta Saturno. As esferas possuem inteligências e seres. As inteligências constituem o lado iluminado do planeta e os seres, em sua totalidade, são as criaturas trevosas das esferas celestes, assim disse Salomão, assim é a tradição das ordens ocultas universais. O lado negro da esfera saturniana tem em seu portal o pentagrama do Bode Mendes. O pentagrama é riscado com a cabeça para baixo, ou seja, para o caos. O portal é de bronze puro com rostos de pessoas em alto relevo. Dizem que cada bruxo negro tem seu rosto gravado no portal. Todas as madrugadas, os guardiões fazem a ronda pelo extenso vale do Umbral de Saturno. No vale existem cavernas e cada uma conta uma história da terra. Miguel ouvia gemidos e ranger de dentes. As pessoas eram torturadas por seus próprios pensamentos, e sentiam agonias indizíveis. “O Universo é mental meu filho”. Disse o velho ao seu protegido. “Como assim, moço?” O pensamento precede a matéria, e esta nada mais é de que sua magia. As pessoas chegam aqui para lidarem com as formas mentais que produziram, e delas devem se livrar. O velho, então, disse: “Dê uma volta, e veja com seus olhos”. Miguel seguiu uma trilha que dava numa caverna iluminada. O combustível das lamparinas era feito de gordura humana. Por todo o extenso vale, lobos comiam os cadáveres espalhados neles. E isso se repetia a cada sete horas. Quando um lobo não comia a carne de alguém era porque a própria pessoa se comia. Miguel em seu percurso até a caverna iluminada viu muitas cenas como essa – alguém se comendo e gemendo de dores e sempre repetindo a mesma coisa: “Oi, meu Deus que sofrimento, ui, ui, ui”. A caverna era sinistra, embora iluminada; em seu interior tinha uma cama de pedra negra coberta com lençóis feitos de pele humana. O cheiro de enxofre enchia o lugar. Ao lado da cama havia uma senhora que respondia pelo nome de Dona Verônica. A mulher vestia-se de trapos e não tinha roupas íntimas; seu órgão sexual era exposto, e dele escorria uma secreção repugnante. A mulher, ao ver o bruxo de José Freire o saudou com um grito que fez as pedras dos montes correrem colina a baixo; a poeira ofuscou por alguns segundos a visão do mancebo. “Você veio moço, faz tempo que não te vejo, desde aquela noite na beira da barragem”. “Como assim, senhora, eu não a vi lá”. A senhora Verônica deu uma gargalhada peculiar às entidades atrasadas que baixam em terreiros espalhados pelo mundo a fora. “Eu era a cobra; e eu deixei você em paz com seu livro”. Miguel quando escuta a palavra livro engole sua saliva e diz: “Meu livro não, mas, devo confessar, ele tem sido de grande serventia; melhorei e cresci financeiramente; as pessoas me adoram; você precisa ver”. Como que de súbito, Miguel acorda em sua cama. A janela de seu quarto estava aberta e no teto do mesmo os morcegos fizeram seus leitos. Desse dia em diante Miguel realizou todos os feitiços do Grimórium de Gottam e se tornou um homem bilionário. Não havia em Sergipe homem mais rico que Miguel. Os políticos, mesmo sem gostarem dele, o bajulava e Miguel lhes dava dinheiro para suas campanhas. Para todos os fins, Miguel era o homem do ano em qualquer lugar nas terras dos Tupiniquins. Mas, isso não foi tudo. O dinheiro deu poder, prestígio, fama e outras coisas, mas não lhe deu a paz e a sanidade, e nem o verdadeiro amor das mulheres. O rapaz definhava aos poucos, mesmo sem o perceber. Certo dia, ele se deu conta que repetia a seguinte sentença: “Oi, meu Deus que sofrimento, ui, ui, ui”. Devido a estas coisas, o rapaz decidiu fazer o feitiço final do grimórium de Gottam – O exorcismo dos seres de Saturno. Segundo o livro, na página 177, aquele que evocar as forças de Saturno terá o poder sobre as demais esferas inclusive a lunar e a solar. Segundo, o sábio Salomão, Saturno não se dá nem com o sol, nem com a lua, e quem dominar os dois, dominará o Universo e porá seu trono no mais alto lugar. O feitiço seria feito num sábado de lua cheia, às 21 horas, voltado para o cardeal sul. Miguel não trabalhava no círculo mágico; o rapaz só tinha o pentagrama dos magos goécios. Miguel traçou um triângulo de evocação e fez sobre ele todos os conjuros. Pôs as ervas apropriadas juntamente com o pantáculo de Barfomet, e queimou os perfumes adequados, depois, de posse de sua espada mágica iniciou o grande conjuro ensinado por Jorsse Van Gottam. O mesmo é como segue: “Por Lúcifer, por Satã, por Barfomet, por todas as legiões do inferno acordem criaturas saturnianas; eu vos conjuro a virem até mim, e vos comando a fazerem tudo que eu quero. Eu, Miguel, rompi com o homem do Gólgota, e vos consagro este mundo que hora nasce pela força de meu mestre Jorsse Van Gottam”. Uma bola de fogo entrou na sala; ela vinha do cardeal sul. De dentro da bola ígnea saiu um menino de oito anos. A criança falava todas as línguas do mundo e isso fascinou a Miguel. - Quem é você? - Os anjos caíram e me seguem. - Quem é você, menino? A criança estendeu suas mãos na direção do pentagrama. As mesmas entraram em combustão, mas, não se consumiam. Miguel, então, viu na luz astral. O rapaz viu as nações da terra; os povos de todos os lugares, e as mais diversas religiosidades. O menino era adorado em tudo, e suas vontades eram feitas de todas as formas. O menino disse, finalmente: “Somente o Cordeiro de Deus resistiu ao meu livro, mesmo sendo tentado de todas as formas”. - Quem é o cordeiro? Perguntou Miguel assustado. - Deixa pra lá. Ajoelhe-se e diga meu nome vagarosamente: Barfomet. De dentro da esfera de fogo, saíram sete mulheres nuas, suas vaginas roncavam como quem dorme. Barfomet some como uma névoa, e nada diz e nada faz, e com ele foi a bola de fogo; as mulheres ficam com o novo iniciado do baixo astral. Dona Verônica apresenta-se ao rapaz em toda sua beleza. E a beleza da mulher era irresistível a qualquer homem viril. As damas e a Verônica iniciam a orgia festival cuja finalidade era colher o sêmen do rapaz. O rapaz ejaculou tanto que houve sêmen bastante para encher as oito taças. Cada mulher bebeu sua taça e engravidou do rapaz. O parto foi imediato, exceto Verônica que aguardava tudo em silencio. Das mulheres saíram crianças, umas do sexo masculino, outras do sexo feminino. As crianças nasceram na mesma hora do mesmo dia e todas eram pequenos capetinhas com um tridente na mão. Verônica se aproxima de Miguel; a bela moça diz para o rapaz que o desejo de tê-lo excede a tudo. Pois, uma alma custa o preço do mundo. No mesmo tempo as outras meninas se dissolveram como fumaça deixando sua prole para trás. Verônica deita-se na posição de coito. Miguel se aproxima da mulher e se ajoelha, lentamente introduz sua cabeça em seu órgão, depois os ombros; a mulher de gemia de prazer e dizia as palavras mais doces do mundo. O órgão da mulher engole os pés do rapaz e a escuridão toma conta do quarto. Os morcegos se agitam e dão voos rasantes pelo quarto. Os cães da vizinhança latem e uivam com muita empolgação. Verônica se levanta, se lava e veste sua roupa. Ninguém mais havia no quarto, Miguel havia sido engolido por ela, e ela se preparava para ir embora. “Mas, pera ai, eu sou um espírito, como preciso me preparar?” Verônica sabia que sua realidade era puramente mental, mas, agia como se estivesse no mundo das formas. A moça se olhou no espelho e se alegrou com o seu rosto. Verônica desiste de ir embora e dorme na cama de Miguel. No outro dia, às 8 da manhã, a mulher se levanta, se lava, faz o café, liga o radio, e se senta a mesa para comer. O radio dizia: “Miguel, o bilionário de José Freire será homenageado no dia 7 de julho do corrente ano. A homenagem diz respeito ao mundo dos negócios”. Verônica chora a morte do rapaz, mas, agradece estar no mundo novamente. As pessoas de José Freire notaram a mulher que estava na casa de Miguel. Algumas senhoras diziam: “É uma coisa errada trazer uma mulher para dentro de casa sem casar, mas, Miguel é tão bonzinho”. Outras eram mais duras e diziam: “É uma falta de respeito, onde já se viu”. Havia também as pessoas curiosas: “Quem é mesmo?”, “É o que dele?”. Mas, tinha mais um tipo de gente que gostava de ver os homens por cima: “Cabra macho, tá se aproveitando hein.” O fato é que a mulher precisava ser abordada, senão o povo morreria de curiosidade: - Oi moça, tá perdida? Perguntou um rapaz que respondia pelo nome de Jeroboão. - Sabe que estou mesma! Disse em tom de riso a moça Verônica. Então, o moço moreno claro, olhos castanhos claros e feição europeia, e de altura média continua: - Quer ir para onde? - Quero ir para um lugar tranquilo. Disse Verônica. - Vamos para a roça de meu pai. Propôs Jeroboão. - Vamos. A roça do pai do rapaz era próxima do centro da cidade, Em 10 minutos de moto os dois chegaram. A pequena casa quatro águas estava arrumadinha. Os poucos móveis causavam a impressão que o lugar era grande. Próximo da parede que dá para o poente havia um sofá. O casal foi para lá. Verônica se deitou no sofá e Jeroboão com ela. Enquanto os dois conversavam ouve-se o barulho de vozes que saiam de dentro das paredes da casa. Eram vozes de homens e mulheres. O casal percebe e sai em busca de uma explicação. Nenhuma explicação foi encontrada, e as vozes ficavam mais fortes. Os dois passaram a dizer a mesma coisa e o que diziam era sempre o mesmo: “Solve e coagula meu bode”. De súbito, as vozes saíram das paredes em forma humana e foram ter com o casal. Eram quatorze pessoas, 7 moças e 7 rapazes viris. A orgia varou as horas. Todo o sêmen derrabado foi ingerido por Verônica. A moça Verônica, então teve ânsias de vômito e náuseas e vomitou Miguel. Miguel sai são e salvo das entranhas de Verônica e com ele seguem sete legiões saturnianas. Miguel acorda de seu transe soado e com o coração acelerado. O transe foi muito real e assustador. O rapaz não tinha respostas para o que vira e sentira. A vida de Miguel estava mudando, mas, o mesmo não via. Os políticos de José Freire e de outros lugares tinham medo do rapaz devido o seu poder financeiro. Por isso tramavam contra ele e faziam de tudo, inclusive feitiços de magia negra para o rapaz não desejar a vida pública. Miguel sentiu uma profunda tristeza ao ver de perto a verdadeira face das pessoas, e de sua terra. A pobreza era encoberta por festas e orgias financiadas com dinheiro público. O povo não se encontrava em sua própria cidade. Miguel chorou por três dias e três noites até que decidiu doar parte do que tinha aos pobres de José Freire. - Miguel comprou dez carretas de alimento para dar aos pobres. Juvenal, quem diria que o filho de Amarantes ia ser esse homem bom. - Os pais dele eu conheci; eles eram gente boa. - E era; eu num sabia não. Tá o pai tá o filho. O Miguel deu comida aos pobres de José Freire, deu remédios, criou algumas instituições como a Casa Miguel dos Anjos que oferecia medicina clínica e ambulatorial a classe pobre. Miguel foi homenageado como o cidadão do ano de José Freire por várias vezes, mas, esta última foi a gota d’água. As rádios locais e de Itabaiana cobriram o evento que tinha como foco maior a estranha figura de um “João Ninguém” que misteriosamente tornou-se a pessoa pública mais prestigiada naquelas bandas do agreste sergipano. Mas, enquanto o rapaz recebia a bajulação do povo, sua residência era invadida por correligionários de vossa excelência: “Eu quero o maldito livro”. Acharam o livro de Miguel, o mesmo estava dentro de seu guarda-roupas, debaixo do terno que fora de seu finado pai. “Olha aí, deve ser esse o livro”. Frederico, um jovem negro freirense estendeu a mão direita para apanhar o Grimórium Mágico, quando as pontas de seus dedos o tocam, o mesmo se transforma num boca e morde a mão do rapaz; o livro flutua no ar ao sair do guarda-roupas. As pessoas que acompanham a Frederico saem em busca dele, e este se defende como sabe. O livro virou uma cobra jiboia, depois, o livro se transformou num rosto de criança, depois, o livro criou pernas e pulava pela casa inteira, e as pessoas corriam desesperadas para pega-lo, até que o Grimórium se enfureceu com a insistência dos homens, e partiu para o ataque. De seu interior saiam vozes de conjuros em diversas línguas; dardos venenosos que antes eram palavras feriram dois dos homens que acompanhavam o rapaz; estes morreram no local. No outro dia, não se falava em outra coisa: “Miguel é um bruxo”. As pessoas comentavam o ocorrido nas ruas e poucas avenidas da cidade. Alguns políticos foram a radio lamentar a morte dos dois cidadãos freirenses. “Isso é um absurdo”. Ninguém questionava o fato racionalmente; as pessoas diziam o que pensavam e não queriam saber o real valor das coisas. “Eu sabia que tanto dinheiro assim era coisa suja”. “Nunca vi pobre enricar pelo bem”. “Ele teve o que merece agora todo mundo sabe do seu segredo”. “Eu num ligo não, hoje, em dia quem manda no mundo é o dinheiro, e se ele o tem bom pra ele”. “O rapaz era gente boa”. “Que nada, ele é um verme que fez pacto com o satanás”. Padre Barreto, em sua missa dominical, afiou seu discurso segundo a homilética da razão pura: “Nada fica escondido aos olhos de Deus”. O prefeito lamentou o ocorrido: “Esse rapaz daria certo”. José Freire demorou a voltar à vida cotidiana. Não se falava outra coisa, todos queriam falar do bruxo filho da terra. Miguel se escondeu em casa com medo de sair na rua. Contudo, continuou dando aos pobres o pão precioso, o remédio sagrado, a ajuda financeira, e continuou a ganhar dinheiro. Um dia, o rapaz se cansou de tudo isso: “Eu dou tudo pra essa gente e ninguém me reconhece”. Miguel comprou uma corda nova para se matar às 6 da tarde de uma segunda feira, dia de Saturno. Amarrou a corda na escadaria de sua casa, e preparou-se para dar fim a sua triste vida. O livro estava aberto nos conjuros dos seres de Saturno cujo anjo guardião é Cassiel. Miguel fez o conjuro em seu pentagrama voltado para o cardeal Norte. Fez todo o ritual e se despediu do mundo. Enquanto seu corpo balançava na corda o rapaz sentia que duas pessoas se aproximavam dele. A primeira era dona Amarantes, a segunda, seu pai, seu Bartolomeu. A visão dos dois lhe encheu a alma de paz. - Que fazes meu filho? Disse as duas vozes uníssonas. Miguel os reponde com voz sufocada: “Eu quero sair desse mundo”. “Oi, meu Deus que sofrimento, ui, ui, ui”. - Mas, essa não é a hora. Miguel lhes diz que não suportava mais ver tanta coisa triste. Seus pais lhe dizem que o mundo é desse jeito, mas, que valia a pena viver um pouco mais. Miguel se cala por um instante, contudo, o peso de seu corpo trabalha contra ele. A corda o sufoca mortalmente; seu corpo antes trêmulo se entrega a inércia. O livro se move sozinho, toma a forma de uma boca, e engole o rapaz por inteiro. Muitos anos passaram; o povo nem mais comentava sobre Miguel, certo dia, um mancebo cujo nome era Gabriel da Luz andava pelas bandas da barragem por entre as juremas e macambiras. O rapaz encontrou um livro que tinha como autor o conde Jorsse Van Gottam. Ele levou o livro consigo. Um velho pescador que estava por lá viu a tudo e chorou de rosto voltado para as águas cristalinas da antiga barragem de José Freire... Fim

ANÔNIMOS

ANÔNIMOS Por ROOSEVELT VIEIRA LEITE Comumente as pessoas dizem que o povo não tem rosto. Outros comentam que o povo não tem vontade; é massa amorfa. E ainda existem aqueles que são sábios e entendidos e que asseveram que o povo não diz ou que povo não tem fala... A feira livre é um lugar em que se pode confirmar ou refutar as teorias acima. Em Parangaba, no estado de Sergipe del Rei existe uma feira que já foi cartão postal da cidade. Os mais idosos falam dos tempos idos quando o povo da capital dizia: “Vamos a Parangaba”, o povo queria dizer: “Vamos a Feira”. Clodoaldo, aos sábados, fazia feira em Parangaba religiosamente; ele e sua esposa nunca perderam uma feira desde que se casaram. Clodoaldo era funcionário público, “tinha o seu” como dizia para os amigos, mas, gostava de ajudar dona Bispo nas feiras de Parangaba. O rapaz de 32 anos, estatura média, cor morena clara, olhos claros acastanhados, e cabelos pretos como a noite havia se afeiçoado por uma dona de beleza singular. As mulheres de José Freire possuem uma beleza sem igual. São altas, brancas, olhos azuis ou esverdeados, e corpos de estrelas de cinema. Dona Bispo era uma delas. Uma jovem freirense, no começo da vida. “Eu num perco tempo não”. “De trabalho eu num corro, macho”. Dizia a feirante para seu marido. Parangaba foi fundada em 1920. Com uma economia voltada para a agricultura, e uma localização geográfica privilegiada por estar no agreste itabaianense a terra das areias brancas cresceu e prosperou. Parangaba é um município sergipano situado no pé da Serra de Itabaiana. A cidade recebeu esse nome devido à cor de seu solo. Diz o povo, e ninguém sabe ao certo, é que Parangaba já foi mar. A povoação iniciou com a doação de uma grande porção de terra pelo senhor José Nogueira Neto, que doou uma área de lagoa seca a pessoas carentes. A povoação de Parangaba foi fundada pelos senhores Celestino Montalvão de Oliveira e Getúlio Rodrigues do Nascimento. As pessoas vieram morar na terra dada por seu Celestino no lugar onde hoje é a Igreja Matriz de São João Batista, padroeiro da cidade. A povoação passou a categoria de município em 11 de novembro de 1963. - Clodoaldo, num estou me sentido bem. Disse dona Bispo para seu Marido enquanto apertava a cabeça. Dona Bispo havia tido um sonho com a feira. O sonho lhe dizia que a feira daquele sábado seria muito sofrida. A mulher viu o céu escurecer, e do céu caíam chamas de fogo. - Mulher, se você num for eu num vou. - Num diga isso não, homem. - Meu amor sem você a feira não tem cor. - Então vamos. Dona Bispo respirou fundo, pegou o carro e desceu para a cidade das terras brancas. Por volta das quatro e meia da manhã, o casal termina de arrumar a barraca; naquele sábado o casal tinha: Tomate, chuchu, cenoura, pimentão, cebola branca e vermelha, quiabo bem molinho, mamão, laranja, abacaxi, jenipapo, melão, coco, manga, e maracujá. Cada feirante tem seu produto e cada um tenta se virar com o que tem; agora era só esperar o povo chegar. Às cinco horas, a freguesia aparece. Em toda feira do mundo aparecem tipos variados de pessoas. Dizem os mais velhos que a feira é um pedaço do mundo com o mundo todo dentro. De manhã cedo, não se liga som, mas, o falatório do povo parece uma melodia ritmada com diversas notas musicais. Tomezinho fala quase gritando sobre a mulher de Olegário, um amigo seu morador do povoado Rio das Pedras, que fez uma promessa para sua amada emagrecer: “E Olegário andou de joelhos até o topo da Serra do São José com uma pedra de 3 quilos na cabeça; o coitado fez isso na intenção de Santo Antônio”. O povo em voz uníssona disse que era muito amor. Contudo, nem todos viram a promessa de Olegário com essa lente: “Eu acho mesmo é que Olegário está emacumbado”. Dona Carla do povoado Jenipapo, membra da Comunidade Cristã “O Poder da Fé” clamou o sangue de Jesus na presença de todos. Entre uma conversa e outra, a vida particular das pessoas vai se tornando coisa pública. Mas, o que o povo da feira não perdoa mesmo neste prelúdio de feira é a vida dos políticos, mesmo com a mordaça do coronel; o povo quebra a norma, e abre o verbo com o vernáculo mais popular possível: “Será que vão acabar com a Bolsa Família?” “Se o tale de Temer fizer isso, vai ter guerra”. Disse um vendedor de macaxeira cujo apelido era “neguinho”. Na verdade, o homem nada tinha de negro. O apelido surgiu quando o povo descobriu o sinal de nascença que o mesmo tinha na nádega esquerda. Por muito tempo, o povo do povoado Cajaíba comentou o fato - O sinal de nascença do Senhor Evangelista Souza. Mas, a coisa ficou feia quando sua esposa questionou, no salão de beleza, como o povo descobriu a manchinha do marido. Na feira nada fica oculto, parece que nos becos e avenidas da feira, o arcano clarividente do Cristianismo se cumpre na letra: “Nada fica oculto aos olhos de Deus”, mas, na feira, é aos olhos do povo. A conversa cessa um pouco, a freguesia acordou; o relógio do Mercado da Carne, o popular “Taio de carne” marca seis horas. Os vendedores de cds e dvds piratas ainda não iniciaram sua propaganda musical; para ser sincero, é uma verdadeira guerra santa entre os concorrentes, e a consequência de tudo isso é o povo ouvir de tudo, a feira toda. Na feira de Parangaba, o freguês pode comprar todos os sucessos do Brasil e do mundo pela bagatela de três reais. Como certa feita afirmou o sociólogo Marcos Damasceno: “A pirataria é uma contracultura, e ademais, é uma forma de democratizar o acesso à cultura oficial”. “Bem, se isso é fato, ninguém sabe, mas, que a cultura legal é cara é”. Esta foi a assertiva do vigário local, todavia, o povo da feira não gosta muito dessa figura religiosa, pois, o cidadão de fé pressionou a vossa excelência a prefeita local, dona Munique Nunes a mudar o dia da feira para o sábado. A intenção do religioso era aumentar a quantidade de fiéis na missa de domingo: “Vossa excelência tem que entender que para os católicos do mundo inteiro, o domingo é um dia santo; Jesus ressuscitou no domingo; a senhora é católica?” A mudança da feira para o sábado, segundo seu Melquizedeque, um feirante de José Freire, foi uma desgraça: “Faz trinta anos que trabalho aqui; a feira era quase a cidade toda, agora se resume a esse quadrado; tem mais vendedor de que cliente”. O desabafo de Melquizedeque expressa a opinião da maioria. De fato, a mudança da feira do domingo para o sábado afetou os negócios de forma considerável: - Esse filho do canso é um cabrunco! - Home num fale assim do padre, ele é um homem de Deus. - Homem de Deus é uma peste! Comadre eu num vendo mais nada! - Mas, rapaz quando Deus fecha uma porta ele abre uma janela. - Pois, pra mim num teve janela, não; só se for janela de cadeia. Em Parangaba, a feira é motivo de festa. Os mercadinhos, os bares, os restaurantes, e as pousadas das proximidades faturam com o fluxo de gente. A feira é um imã que atrai gente de todo o agreste e sertão sergipano. Por esta razão, é possível ouvir diferentes sotaques e falas que caracterizam a linguística sergipana. Uns dizem “mutxo” no lugar de muito, outros dizem “tu”, no lugar de você. Os diferentes falares não estão só na fonética ou sintática; a coisa penetra, também, à semântica; o verbo estufar, por exemplo sai de seu sentido lexical como meter em estufa, secar em estufa, ou intumescer ou inchar o peito, e assume o sentido de aparecer em um certo lugar: “Eu esperava Paulo à esquerda da Mons. Tavares, mas, ele estufou na Pedro Ribeiro”. Na cidade das terras brancas, a feira marcha adiante, nada a faz parar; é como se fosse o imperativo da vida, ou a própria vida pulsante. As pessoas, os seus diferentes papéis como feirantes, clientes, turistas, curiosos, ou apenas gente, sim, gente que vem; gente que vai e que representam a alma de nosso povo; um povo alegre de uma terra cheia de musicalidade, de uma sociedade que não cessa de crer e esperar por dias melhores. Em Parangaba, a feira é musica, é folguedo, é trabalho, é sofrimento, é dor, é vida, sonho e som, pois, de um lado, ouve-se o acordeom, a sanfona do trovador e do repentista, e de outro, as músicas baianas fazem o show. Os botecos ao redor da feira disputam espaço com as barracas de pinga serrana. Dizem as pessoas que esta é a melhor serrana do estado. Seu Antônio, um antigo vendedor de cigarro, charuto, fumo de rolo e pinga, certa feita disse: “Num adianta lutar contra nós, eu vendo a melhor cachaça do mundo”. Os bêbados que se amontoam em torno de sua barraca concordaram unanimemente com a declaração do comerciante. Seu Antônio convive com os etílicos há muito tempo; ele conhece a alma desse povo: “Beba, meu filho, beba! Esqueça-se da mulher”. “Oxente, macho!” Deixa essa história pra lá!” “Tome uma que passa!” Foi assim que a relação vendedor e consumidor foi crescendo e Antônio se tornou o maior comerciante de cigarros e pinga da feira. “Fumo bom é com Antônio”. A segunda maior feira do agreste sergipano, a feira de Parangaba, atrai feirantes de todo canto. O casal Clodoaldo e Bispo é prova disto. Clodoaldo e sua mulher estavam totalmente envolvidos na rotina da feira. Dona bispo havia pedido um cento de sacos plástico de um quilo, um cento de sacos de dois quilos e um cento de bolsa grossa que serve para por cocos. Dona Bispo era mais experiente de que seu marido, ela sabia a quantidade certa de tudo e podia prever, horas antes, se a feira seria boa ou não: - Hoje, Clodoaldo, a feira será “meiada”. “Meiada” é um termo linguístico da região que quer dizer “nem muito nem pouco”. Seu marido discorda dela: - Num vai ser meiada, não, mulher. Está todo mundo comentando que a feira de hoje é a feira do ano. - Homem, eu conheço isso há mais tempo que muita gente aqui. De fato, dona Bispo se criou na feira. Seus pais a traziam para feira desde criança. Com isso, a menina Bispo aprendeu todos os truques e sabia de todas as mazelas da profissão de seus pais. “Pois, eu digo: ‘Muita gente num é prova de sucesso’”. Seu marido sorriu para sua mulher e pensou consigo: “Eita mulher sabida”. Os dois se amavam. O funcionário do Estado de Sergipe teve problemas com sua ex-esposa Clementes. O rapaz casou-se cedo e deu tudo de si para ser feliz com a mulher de sua mocidade. Segundo Agnaldo Ribeiro, um comerciante de Campos, a mulher de Clodoaldo era ninfomaníaca. Não poucas foram as vezes que Agnaldo avisou ao amigo que sua amada estava com o Manelão em seu motel de luxo: “Clodoaldo, amigo, Clementes acaba de chegar com o Manelão”. O marido fiel e bom ia pegar sua amada no motel e sofria por isso a execração pública. Com o tempo, Clodoaldo viu que não era só o Manelão a fraqueza de sua amada, na verdade, era Rubinho, Miguelzinho, Carlinho e outros. Um dia, a paciência acabou, e Clodoaldo deixou sua amada: “Mulher, a ingratidão tira o afeto”. Clodoaldo foi para José Freire onde conheceu dona Bispo, e Clementes continuou sua filosofia de vida. Comenta o povo da Rua Itabaianinha, em Campos, que a mulher se escafedeu pelos sertões de Poço Verde com um vendedor de novelo de linha. - Bispo, seu Martins não veio ainda pegar os cocos. - Rapaz, eu estava pensando nisso agora. - Será que ele está doente? - Num sei, mas, ele reclama muito dos problemas de coração. Seu Martins era um policial aposentado. O tempo de policia lhe deu muita sabedoria e trato com a pessoa humana. Sempre quando ele vinha, a prosa na banca Bispo era muito proveitosa. Os comerciantes das bancas próximas interagiam na conversa e a coisa crescia quando o assunto era Política sergipana e nacional. Cada um dava sua opinião. O povo da feira comentava sobre seus problemas e quase sempre culpava a classe política, e quando isso ocorria Martins ficava vermelho, coçava o bigode e levantava a voz: “Tenho 76 anos, trinta anos de policia; tratei com todo tipo de bandido, mas, igual a esses nunca. Essa classe de gente devia era pegar prisão perpétua”. O povo quando via o sargento Martins expressar seu pensamento entrava num tipo de transe: “Martins é muito sabido”. Todos gostavam dele, por isso sentiram sua falta naquela feira: “Clodoaldo, dona Angelina disse que Martins não apareceu em Parangaba”. “Eu vou limpar os cocos e por no saco, quem sabe perto das 11 ele apareça”. “Não, homem, num limpe não porque se ele não aparecer a gente toma prejuízo, apenas separe os seis”. A feira de Parangaba continuava com o vento em popa. Contudo, os tomates, os pimentões, e outras verduras não saíam, ou seja, o povo estava achando caro o preço. O preço caro das verduras era por causa do cartel formado em Itabaiana. Na cidade Princesa da serra, os atacadistas de verdura tabelavam o preço e por isso forçavam o varejista a vender caro ou vender tudo a preço de nada. No caso do tomate e dos pimentões que boiavam nas barracas foi por causa dos feirantes que venderam o saquinho de um real em vez de vender no quilo. Essa é uma estratégia para não tomar prejuízo. No saquinho, o cliente tem a impressão que leva vantagem, e isso na feira é o que mais interessa. “Estão vendendo no saquinho, Bispo”. Clodoaldo e sua mulher prepararam a artilharia e o capitalismo local consagrou mais uma vez a lei da concorrência. Mesmo assim, a feira não estava bem ou boa. Todos se queixavam que não daria para cobrir nem as mercadorias quanto mais levar dinheiro para casa. Os vendedores de cds e dvds piratas, nesta altura da feira, vendiam seus produtos e tocavam suas músicas naquela altura típica das feiras locais: “Máximo volume”. É nessa hora que o povo sofre a hipnose coletiva que varia sua forma de acordo com a letra da música ou a melodia da mesma. Era época de São João, as músicas juninas de todos os tipos inundaram o lugar, o povo cantarolava seus sucessos enquanto esperava alguém surgir, ou quando vendia suas coisas. As barracas de carne assada e cerveja, e os restaurantes de lona adaptados ao redor da feira disputavam com a pirataria junina usando o Axé pirata. De pirata para pirata, as prostitutas que comumente prestam seu serviço social na feira dançavam ao som de “Mamãe deixa eu quicar” ou com o sucesso “Atola toda”. Isso provocou as irmãs do terço de Nossa Senhora do Bom Parto, que exatamente, naquela feira estavam vendendo os bilhetes da rifa para o evento: “O balaio de Nossa Senhora do Bom Parto”, no povoado das Flechas, em Itabaiana. O intuito das religiosas era levantar recursos para a construção de uma capelinha no dito povoado. - Mas, é um absurdo! Em plena luz do dia, uma gente dessa estirpe se exibindo na frente das famílias! Os homens que se encontravam nos estabelecimentos discordavam das religiosas, mesmo assim, as irmãs de caridade queriam parar o show. - Absurdo porque dona? Pergunta a menina de vida fácil, Cosminha. - Não dirija sua palavra mim, sua pervertida! - Mas, onde já viu uma coisa desta querendo me rebaixar! Retaliou Cosminha. A pequena multidão que se formava em torno da cena concorda com a moça. - Uma coisa desta!!! Continuou Cosminha. - O que sua prostituta barata? Revidou a religiosa segurando os bilhetes na mão. A religiosa era dona Pureza, a presidenta do terço do povoado das Flechas. Ela era uma senhora afro descendente, de porte alto e forte. A mulher era uma boa amostra do povo de mãe África. Cosminha odiava ser chamada de ‘puta barata’ por isso investiu mais uma vez contra a religiosa. - Foram os perdidos que Ele procurou; seu tição do cão! Ao ouvir a palavra tição, a religiosa soltou os bilhetes e partiu pra cima de Cosminha que de imediato, num ato reflexo pulou para cima do balcão do bar adaptado. Lá de cima a mulher requebrando o corpo sensualmente dizia: “Isso você num tem, neguinha, e eles adoram”. Os rapazes gostaram da cena e aos gritos gritavam “Cosminha”; as demais moças da vida fizeram o mesmo e com isso a feira prestou atenção ao caso. Ora, as meninas dançavam e se requebravam, ora os homens diziam o que queriam a elas e o clima tornava-se cada vez mais tenso. A religiosa, não parou e continuou em coro com suas colegas: “Vamos chamar a polícia, isso é atendado ao pudor”. - Clodoaldo! Armaram o “barraco” com as putas da frente. - Como rapaz? - Dona Bispo! Lembra-se de Cosminha aquela prostituta que faz vida nos canaviais? - Lembro. Num lembro o que homem? Pois, ela arrumou confusão com as mulheres da rifa do terço. - Num diga! Eita, mundo perdido! E agora? - Já chamaram a polícia. - Polícia! Exclamou Clodoaldo. - Sim, Clodoaldo, e o pior é que o delegado Peixoto está de plantão hoje. Clodoaldo pediu licença a sua esposa e foi com o mensageiro ver o caso. Embora tenha confusão na feira, ela não para de verdade, pois, o povo sempre insiste no que quer. E esse é o caso dos carregadores também. A feira tem de tudo, e os carregadores prestam um serviço sem igual. Sem eles, a feira perde seu dinamismo. Isto pode ser comprovado pelas madames; essas senhoras, não gostam de carregar peso, e por muitas razões; suas feiras são frequentemente gordas, tão gordas como suas contas bancárias, ou de seus maridos, ou dos dois, Deus o sabe. O carregador mais solicitado da feira é o Mundinho. Mundinho é um afro descendente de porte elegante. O rapaz nasceu e se criou em Laranjeiras, mas, sem estudo, e sem recursos, foi para o canavial, logo em seguida, comprou um carrinho de mão e foi fazer ‘carrego’ em Parangaba. O rapaz fez uma conta muito simples. Um carrego simples custa cinco reais, um mais pesado, ou mais distante chega a dez reais. Se fizer 10, 20 carregos por feira mais descarregar e carregar os caminhões, eu faço algum dinheiro, e depois, tenho a semana toda para fazer outros bicos. Mundinho se profissionalizou no frete de feira e se tornou no mais solicitado. Mundinho trabalhava sem camisa e de bermudas. Seu corpo era atlético, podia-se ver toda a anatomia do sistema muscular humano. As mulheres adoravam o serviço de Mundinho; naquela feira, na hora da confusão, apareceu o momento que dona Valterlene esperava ansiosa a mais de mês. - Mundinho leve minhas coisas! Havia poucas pessoas do lado de dentro da feira. Assim, quase ninguém viu Mundinho e dona Valterlene, a galega mais volumosa da cidade. Parangaba, como as demais cidades do agreste de Sergipe teve no século XVII a influência holandesa. As marcas da passagem do povo do Norte da Europa estavam estampadas no fenótipo de muitos munícipes da terra de São João Batista. Valterlene era uma prova inconteste da história. Uma mulher de tipo e de beleza muito cobiçável. Seus cabelos ruivos mais os seus olhos verdes deixavam qualquer um de queixo caído, ou como dizia o finado Antenor, que Deus o tenha na pátria celestial: “de espada na mão”. - Pois, não, dona Valterlene! O rapaz posicionou seu carrinho para colocar as coisas dentro; a senhora o ajudava e foi nesse instante que os dois se olharam. O rapaz a olhava como que visse um lombo de carne de boi de primeira cozido no molho madeira, e ela o via como um Anjo da Luz caído em suas mãos. No percurso, a senhora manteve-se a certa distancia do moço. “Valterlene, minha filha a aparência e a discrição são tudo para uma dama”. “Sim, mamãe”. A menina de oitos anos aprendeu a sabedoria das senhoras aos pés de sua amada genitora. “Nunca dê pistas de seus segredos, uma verdadeira dama, sempre se mantêm distante de falatórios”. “Sim, mamãe”. A casa de Valterlene distava uma distância razoável da feira, por isso, a viagem seria de uns vinte minutos. Para Valterlene seriam minutos críticos. A galega tinha seu coração acelerado, mas, Mundinho não; a galega tinha seus olhos atentos a todos e a tudo, especialmente, a dona Firmina, a velha da conversa, mas, Mundinho não; a bem de toda a verdade, Mundinho era apenas um carregador de feira; mas a Galega Valterlene tinha uma reputação a preservar. “Valterlene, lembre-se todos os dias de quem você é filha”. “Sim, mamãe”. “Valterlene, seu pai é filho de um dos homens mais ilustres do Povoado Ribeira, ele comia na casa do prefeito”. “Sim, mamãe”. Valterlene casou com um comerciante de agrotóxicos e foi morar em Aracaju. O tempo vivido na cidade grande não foi muito bom, ademais, seu amado esposo teve um aneurisma e faleceu. Valterlene vendeu o negócio para o sócio de seu amado e voltou para sua terra, desde então, a galega de Parangaba mora só, e nos finais de semana frequenta a Igreja Cristo Nova Esperança do Pastor Inácio. Os dois estavam chegando ao destino. Dona Firmina seguindo a tradição montava plantão na minúscula área de sua casa. Ela viu e ouviu quando Valterlene pediu ao rapaz para entrar: “Mundinho, tu podes me ajudar a por tudo para dentro?” “Oxente, dona, num tem problema!” O rapaz viu aquilo como algo não usual, mas, não era motivo para saliências. Sua experiência lhe dizia que esmola demais o cego desconfia. Os dois entraram na residência; dona Firmina se ergue de sua cadeira de ferro e entra para gretar melhor de sua janela da sala da frente que possui um buraquinho estratégico: “Vou ficar de olho nos dois, aí, tem treita!” A velha Firmina era uma senhora viúva que morava com o neto Bartolomeu. Firmina aos 77 anos não fazia outra coisa, exceto, passar sua vida de aposentada observando a tudo que se passa na rua ou onde ela pode ver. A solidão, a falta de seus amados e a preocupação com o rapaz que criava a fez uma pessoa presa ao seu mundo, a única janela para fora que ela tinha era a dita janela da frente; com um banquinho de madeira, e todas as horas livres a idosa podia olhar o mundo externo e ver televisão ao mesmo tempo. “Mundinho entrou e até agora nada dele sair, aí, tem coisa estranha; oh, Bartolomeu, vá correndo chamar a comadre Nadir”. O rapaz foi num raio e voltou como um trovão: “Ela disse que vem já!” “Psiu, deixa de zoada moleque, num tá vendo que estou ocupada!” “Mas, ocupada com que, vó?” “Fique lá fora e veja se escuta o que Valterlene e Mundinho estão dizendo!” “Onde eles estão?” “Dentro de casa abestado, dentro de casa!” “Tá bom, vou ver!” O rapaz pôs o ouvido na parede que dava para um terreno baldio. A parede era a parede da cozinha de Valterlene, todavia, o rapaz nada ouviu. “Eles estão falando baixo, vó” “Oh, criatura de Deus, onde já se viu se ouvir a conversa dos outros desta forma, és retardo é?” “Entre de fininho no hall e veja o que escuta; coisa burra!” “Pera, aí, né vó; agora a senhora passou dos limites” “Caminha menino, faça o que estou mandando!” Bartolomeu abriu o portão de ferro da casa, entrou no hall de mansinho, e se pôs a ouvir a conversa dos dois. - Mundinho, me explica aí essa vida que vives! Valterlene deu um sorriso. O rapaz envergonhado lhe responde como pode. - Vida como? Trabalhar na feira é a única coisa que se tem aqui. Em Parangaba, ou tu trabalhas para a prefeitura, na roça e no canavial, ou na feira, num tem mais nada. - Você deve levar cada cantada! O rapaz baixou a cabeça e nada disse em retorno. - Tá com vergonha de dizer! Vamos Mundinho abra o jogo! Valterlene estava perdendo o rumo que sua genitora lhe ensinara. - Não dona Valterlene, as mulheres daqui nunca me assediaram. Meu trabalho é como qualquer um. - Qualquer um como, Mundinho! Onde se trabalha nu da cintura pra cima? Elas quando veem esse muque ficam doidas! O rapaz deixou as coisas na cozinha e caminhou na direção da porta da frente quando escuta novamente a voz de sua contratante: “Venha tomar um cafezinho, está bem quentinho e bem pretinho”. Mundinho tentou recusar o convite, mas, a dama foi mais insistente: “Senta ai moço, deixa que te sirvo”. O delegado Peixoto chegou e encontrou a confusão feita na feira. A moça livre Cosminha discutia com a religiosa enquanto o povo dizia o que pensava sobre o ocorrido. - Eu num acho que as meninas fizeram alguma coisa errada. Afinal, diversão é diversão. Disse o moço Ptolomeu, vendedor de nós moscada. - Eu discordo. Disse Márcio, um cidadão de trinta anos vendedor de vassouras de palha. - Eu acho que Peixoto vai enquadrar as duas por tumultuarem a feira. Disse seu Vasconcelos, um vendedor de baldes, bacias e artigos de ferragens. - Eu num quero saber das opiniões de vocês. Disse o delegado Peixoto. A autoridade policial estava acompanhada de seus dois homens de confiança: O primeiro era o soldado Cruz, e o segundo era Leu, o cabo. Cruz era um moço de 35 anos, um rapaz não muito inteligente, contudo, concursado. Leu era um senhor de meia idade que entrou para policia quando tinha 23 anos. Naquela época, por meio de um trem da alegria e da influencia política entrou para as forças policiais. Na feira, todo mundo tem alguma coisa para dizer, seja verdade ou mentira, mito ou realidade, fato é, na feira de Parangaba o povo diz o que pensa ou acha ser justo: - Mas, sua pessoa num pode fazer assim. É abuso de autoridade! Externou seu ponto de vista, Rodrigo das maçãs. - Mas, você num é besta para me dizer o que eu devo fazer num é rapaz. O humilde vendedor de maçãs travou os beiços e se amuou. Então continuou Peixoto. - Bem, vamos ouvir as partes. A senhora religiosa tomou a palavra e contou sua queixa. O mesmo fez Cosminha. O delegado Peixoto tentou apaziguar as coisas, mas as duas mulheres, resistiram segundo suas convicções. “Eu quero que a lei acabe esta farra devassa!” Bradou a religiosa. “Não senhor, nós fazemos isso todas as feiras e nunca ninguém reclamou, e além do mais quem vem para cá é maior de idade, e aqui num tem mulher de família”. O cabo Leu e o soldado Cruz como por instinto, concordaram com a prostituta. A religiosa não gostou e explodiu de fúria na frente de todos: “Pois, eu vou para a imprensa de Itabaiana, e vou contar o que se passe nesta feira”. “É muita falta de vergonha!” Apoiaram a religiosa suas amigas e simpatizantes. Ao ouvir a palavra “imprensa”, Peixoto lembrou-se das rádios de Itabaiana; o homem corou as maças de seu rosto e olhou para seus companheiros. Leu franziu a testa; Cruz fez o sinal sagrado dos cristãos e depois beijou a mão. “O que é isso macho?” “Tá doido?” Exclamou o delegado. “Vamos todos para a delegacia, então”. Encerrou o assunto, pelo menos no momento, a autoridade da lei. Enquanto isso, uma ventania forte e repentina desceu a serra de Itabaiana assobiando sobre Parangaba, e com ela nuvens negras cobriram o céu. Valterlene e Mundinho faziam amor no quarto, quando a porta da frente abriu com a força dos ventos e com ele Firmina e seu neto entram na sala da casa. “Oi!” “Tem gente?” “Mulher, eu vi a porta estufar para dentro deste jeito, e vim ver se tinha alguém em casa”. O casal se pôs quieto, cada um segurando sua respiração. A idosa prosseguiu. “Oi, ô de casa, tem gente?” Alguns minutos depois, a idosa se deu por satisfeita, virou-se para seu mancebo neto e lhe disse: “É meu filho, num tem gente não, vamos fechar a porta, quem sabe Valterlene ainda não chegou da feira”. O menino concordou com sua vó acrescentando que ela chegaria com Mundinho. O vento não dava tréguas. Nuvens escuras cobriram os céus de Parangaba. Nas barracas da feira não se comentava outra coisa: “Mundinho torou a galega Valterlene”. As opiniões eram diversas, cada um segundo seu mundo, dizia o que achava ser o certo: - Eu acho que Valterlene e Mundinho tem todo o direito de serem felizes. - Pois eu discordo. Uma mulher de família com um desqualificado daquele. - Mulher, deixa de ser preconceituosa; só porque o rapaz é negro! - Sabe de uma coisa, as coisas nem sempre são o que parecem. Isto é coisa dele, o demo. - Bem que eu desconfiava; quantas vezes vi Valterlene pelas bandas da casa de pai Maneco. - O Mundinho deve ter parte com o chifrudo, pois, uma mulher destes tipo num é coisa pra todo mundo não. - Na atualidade, a relações sociais são fluídas e multifacetadas. As pessoas comentavam o ocorrido e não olhavam para cima. O forro do teto da delegacia gemia com a força eólica e as nuvens se tornavam mais densas e escuras. As duas mulheres e suas acompanhantes davam seu depoimento e enquanto isso, na feira, Clodoaldo e sua mulher vendiam verduras e frutas para seus últimos clientes. O casal mal olhava para o outro; aqueles seriam os últimos minutos de mais uma feira. Nem o vento, nem as nuvens escuras desanimaram o povo; a feira marchava adiante. Os papéis voavam do chão flutuando livremente no ar, e depois caiam sobre cascas de cana, restos de quiabos, folhas de cenoura, alface, pedaços disso e daquilo. O toldo instalado sobre as barracas tremia como que quisesse dançar com a irmã ventania. Sempre foi assim, a feira resiste a tudo, pois, ela é como a alma do povo nordestino. O Brasil herdou um povo que a nada se verga. “Clodoaldo, ponha as cebolas no saco enquanto eu arrumo os tomates na caixa”. O casal Bispo pôs as coisas no caminhão e junto com os demais feirantes seguiram estrada para José Freire. A feira ficou atrás, mas, em Parangaba, o povo percebeu algo estranho no céu. As nuvens formaram um anel e dentro dele um olho enorme se formou. O olho era alaranjado, da cor de tangerina, e as nuvens variavam as cores, ora eram cinza escuro ou ora eram cinza abacate com tons de violeta. Os ventos ficaram mais agressivos e o povo temeu: “É o fim do mundo!” Gritou, o irmão Farias e acrescentou diminuindo o tom de voz: “É a volta de Jesus”. “Que nada de volta de ninguém, vai ter é um temporal”. Disse seu Tiago que comia um pedaço de melancia e cuspia os caroços no chão. No caminhão, o casal Bispo, também percebeu o céu. Clodoaldo olhou sua mulher nos olhos, apertou sua mão direita e lhe disse: “Desde o primeiro dia que te conheci, eu vi que viveríamos o melhor do mundo, te adoro”. Dona Bispo sentiu seu coração acelerar com a voz do esposo; lembrou-se do sonho que tivera antes, e pensou consigo: “Meu Deus que tempo é esse?”. Os trovões ribombaram, o céu tremeu e a feira foi para dentro do mercado de carne. Os raios rasgavam os céus desde a serra até o vale atrás da cidade. O povo ouviu sobre os toldos e telhas do mercado de carne o som de água, era como se fosse uma chuva fina, uma garoa. Tomé, um carregador de dezesseis anos olha para o céu para ver o que era; uma gota cai em seu braço esquerdo, era uma minúscula gota da chuva que principiava cair sobre a cidade. O rapaz traz o braço ao nariz, cheira e grita espantado: “É merda!” O olho, no alto do céu contraiu seus anéis que formavam um corpo com três circunferências concêntricas. Os trovões apavoram a cidade do pé da serra e certamente toda a Itabaiana via tudo. O tempo fechou por completo não havia um lugar no céu que não fosse de cor cinza escuro, as nuvens formavam uma massa grossa estacionada sobre os municípios daquela região ou, talvez do estado. Os cachorros que frequentam a feira se esconderam debaixo das barracas; os animais latiam e uivavam como se fosse noite de lua cheia. Aos poucos, o silencio foi se instalando no lugar; aquelas pessoas antes alegres e descontraídas tornaram-se caladas e pensativas. A reflexão sobre o que estava ocorrendo tomou conta das mentes. Alguns riam baixinho, outros choramingavam como que sentissem que havia algo estranho. Os céus ribombaram sete vezes, e o som dos trovões cresceu sete vezes. O povo gritou de medo e chamou por Deus. Seu Marquinho prometeu a Deus que nunca mais mentiria para sua mulher. Carlos prometeu que ia parar de beber se o mundo não acabasse; Netinha repetiu sete vezes o Pai-Nosso, e para cada um três Ave-marias. Clodoaldo e sua mulher viram quando o céu se enrugou em torno do olho e depois se ouviu um estrondo que fez as pedras da serra caírem; depois do estrondo caiu do céu uma chuva caudalosa; era uma substância excrescente. “Mãe, é bosta!” “Está chovendo fezes do céu”. Disse o Padre Gil para sua paroquiana Margarida. A chuva caía sobre a terra; as pessoas se esquivavam do excremento humano, contudo, com o tempo, as ruas, as avenidas, as valas e tetos de casas e prédios estavam cobertos de fezes. O cheiro subiu; com isso as pessoas reclamaram. Para nada serviram as queixas; montanhas de fezes se acumulavam em todo canto, e os céus não davam tréguas. Subitamente, raios caíram em pontos específicos de toda a região; muitas pessoas foram abduzidas. Entre elas estavam: Clodoaldo e sua amada, Mundinho e sua galega, e o delegado com suas meninas encrenqueiras. Essas pessoas se viram a navegar num mar de excrementos humanos. O mar era grande, não se podia ver uma margem, ou uma ilha; mas, havia uma corrente que os levava para algum lugar: “Vamos nadar meu amor, vamos seguir a corrente”. Dizia Clodoaldo, com voz cansada, a sua amada. As demais pessoas faziam o mesmo, no entanto, todas estavam quietas e seus olhos olhavam para frente. O cheiro das águas, no princípio foi insuportável, depois de algumas horas, as pessoas notaram que não mais incomodava tanto. A densidade do líquido excrescente era muito grande. Era quase impossível alguém afogar-se, exceto se o cansaço a tomasse. Na verdade, eles estavam atolados no excremento e este os arrastava para algum lugar. - Sejamos racionais! Iniciou uma prosa o delegado Peixoto. - Se o liquido esta correndo, então ele deve está indo para um lugar mais baixo. - Com certeza! Concordou Mundinho e com ele Valterlene. - Sim! Todos foram unânimes. - Vamos evitar fazer esforço e deixar a natureza agir. Concluiu Peixoto. O mar de excremento tinha vida própria. Em alguns lugares, a corrente diminuí; a marcha das pessoas fica mais lenta. Nesses pontos surgiam seres estranhos; eram figuras humanas cuja alma havia sido adormecida. Essas pessoas diziam as mesmas coisas; repetiam as mesmas palavras até a exaustão. “Faça a sua parte”. “Faça a diferença”. “O mundo será melhor”. “Tente, invente, faça um futuro diferente”. “Somos todos iguais”. “Não polua a natureza”. Havia aqueles que sugavam a alma das outras pessoas e depois colocavam um fantasma dentro. Quem passasse por isso, teria sua consciência roubada. Todas as suas memorias e desejos seriam os do seu algoz. Depois disso, essas pessoas tentavam convencer as demais de que seu mundo é melhor: “Nosso mundo é bom, nosso Deus é o verdadeiro, nossa fé é legitima”. No mar de excrementos não houve outra opção para o grupo, exceto, se unir. A religiosa e a prostituta se abraçaram e as duas rezaram a Deus. O mundo foi coberto com seus próprios excrementos e com ele a feira de Parangaba. “Vó, estão dizendo na rua que nós estamos atolados na merda”. Dona Firmina coçou os olhos e depois, pois, as mãos na boca e por entre os dedos a idosa disse para seu neto: “Disso eu já sabia há muito”. O grupo avistou ao longe uma luz forte. Parecia que a viagem estava chegando ao fim. Aos poucos, na linha do horizonte, se formava a imagem de uma baia e nela uma praia seca e ensolarada. Atrás, ao fundo, na areia da praia havia sombreiros e embaixo deles pessoas bonitas e bem vestidas a conversar, a beber e a comer. Essas pessoas diziam as mesmas coisas; cada uma tinha seu ponto de vista, no entanto, o mesmo circulava em torno de uma opinião geral: “Está tudo bem e caminha de acordo com o sistema das coisas”. As pessoas da praia repetiam palavras chaves umas para as outras: “O sucesso é uma questão de escolha”. “Todos têm direitos iguais”. “Há oportunidades iguais para todos”. Com suas mentes em harmonia com o sentimento coletivo; o povo da praia não via outro mundo, apenas o deles. Mundinho comentou com o grupo que estava com muita fome e tão logo pusesse os pés na areia ia tirar a barriga da miséria. O delegado Peixoto não esperava a hora de tomar um banho de água limpa. O casal bispo se manteve calado para ver os fatos. Dona Pureza e Cosminha, de mãos dadas, não paravam de rezar. Finalmente, o grupo está em terra firme novamente. As pessoas que estavam na areia não lhes dava atenção, parecia que não lhes via. Cada um conversava com seu amigo e amiga as coisas de todo dia ou sobre negócios ou política. Em momento algum, as pessoas comentavam sobre o ocorrido em Parangaba. Quando algum problema era levantado por alguém, era dito que em quinze dias a pessoa teria a resposta ou o problema resolvido. Quando alguém chamava seu próximo de mau caráter, a pessoa se defendia dizendo com face inocente e voz contunde: “Sou inocente, minha vida é um livro aberto”. O grupo andou por entre os frequentadores daquela praia. Não acharam suas comidas costumeiras, mas, o que comeram lhes aumentou o apetite. A cozinha daquela gente era aperiente. Ninguém conseguia parar de comer e isso lhes obrigavam a defecar e vomitar várias vezes no mesmo dia. Quando alguém queria se aliviar, a praia era o lugar certo. Todas as fezes e vômitos daquela população escorriam para praia, criando, desta forma, um oceano de fezes e dejetos de todos os tipos. “Vamos fazer alguma coisa para que essa gente note que estamos aqui”. Disse Clodoaldo para sua esposa. A questão foi posta em debate. - Por que não chamarmos a atenção deles? - Mas como? - Sei não. Dona Pureza deu uma sugestão – Cantar músicas religiosas. O grupo fez assim: Enquanto Pureza cantava, eles batiam palmas e acompanhavam. As pessoas daquela baia acompanharam a canção com muito gosto, mas, não deram atenção ao grupo. Frustrados, mas, não desanimados. O grupo se reúne novamente. - Deve ter alguma coisa que possa impactá-los. Disse Clodoaldo. - Certamente. Concordou Peixoto. - Então, digam! Disse dona Bispo. - Eu acho que eles vão nos notar se jogarmos água neles, empurrarmos alguém ou quebrarmos as cadeiras, mesas, etc. O grupo com certa reserva concordou em fazer isso, exceto dona Pureza. O grupo fez o combinado. Alguns minutos depois, as pessoas da baia começaram a falar alto: “Hoje, não se tem mais paz, a violência e o vandalismo imperam em nossa terra”. Mas, logo em seguida continuaram com o seu costume de todos dos dias. O grupo insiste em mais uma nova abordagem, agora seria Cosminha. A menina livre teria que cantar e dançar “Chupa que é de uva”. A menina fez o que sempre fez nos dias de feira em Parangaba. Cosminha levava os homens ao delírio com sua sensualidade. As pessoas da paria adoraram o show da menina, mas, havia algo errado, eles não viam a jovem pobre que se tornou mãe solteira muito cedo; era como se ela não pertencesse àquele mundo. Finalmente, o delegado Peixoto traz um plano mais agressivo: “Nos meus longos anos de profissão aprendi que o ser humano tem um ponto fraco; a isso ninguém resiste”. “E o que é delegado?” “O bolso”. Respondeu a autoridade com muita convicção. O grupo roubou as carteiras de quem pode, depois, roubaram tudo que tinha valor: Anéis, pulseiras, relógios, celulares etc. As pessoas da baia, então, conduziram uma investigação. As autoridades do lugar apareceram e trouxeram o relatório policial: “Foi o povo”. Afirmou o Capitão Bicudo. “O povo?” Admirado exclamou o secretário de segurança da baia. A resposta foi imediata. O destacamento de cinquenta soldados cercou o grupo e os puseram num barco e os deixaram em alto mar. Um soldado do destacamento disse com muita emoção: “A gente suporta tudo para proteger a sociedade num é Martins?” “Como?” “Eu digo, a gente aguenta até o fedor de bosta nesta profissão”. “Ah, isso é mesmo; no cumprimento do dever o soldado passa por tudo”. O barco era pequeno para todas as pessoas do grupo, com dificuldade e sempre trocando de lugar, pois, as pessoas trocavam de lugar a cada quinze minutos. “Num aguento mais delegado Peixoto”. “Dona Pureza, num esquenta, não; Deus vai dar um jeito”. O barco navegou por sete horas até parar e não se mover mais. “E agora Clodoaldo?” “Mulher, num sei o que dizer”. De fato, ninguém sabia de nada. Suas vidas estavam nas mãos do todo poderoso. Sem comida, sem água ou garantia alguma o grupo eclético de Parangaba esperava a morte chegar. - Pera! - O que homem? - veja! - O que rapaz? - Olha! - Onde, macho? - Ali! O mar formava um redemoinho; ele crescia e ficava forte. “Ah, meu Deus, em tuas mãos entrego meu espírito”. Disse dona Pureza com muita sinceridade. O redemoinho foi se aproximando. As mulheres gritavam e se abraçavam umas as outras e os homens faziam o mesmo. O barco foi engolido pelo mar de excremento. O delegado e suas meninas despertam na delegacia. Apavorados olham para si e estão limpos, não havia mais fedor de fezes ou marca de nada. Dona Pureza e Cosminha se entendem finalmente. As diferenças foram postas de lado, e o delegado deu um jeitinho para o boletim de ocorrência não ser registrado. Mundinho volta para a feira. Os caminhões sentiam sua falta. O povo gritava: “Onde está Mundinho?” “Está na hora”. As pessoas faziam o de sempre. “Carregar os caminhões para voltarem para casa”. Parangaba era a mesma cidade de todos os dias - Um pedaço de Sergipe cravado em ouro – Um lugar de sonhos, esperança e realizações. Valterlene acorda em casa. A moça passa a mão nos lençóis da cama e suspira a palavra “Mundinho”. Clodoaldo e sua amada despertam ao chegarem a José Freire. - Mulher, tu dormistes como eu? - Sim, tive um sonho estranho, com muita merda. - Eu também. Vou jogar no bicho. Sonhar com merda é bom. - Meu amor mais uma feira. - É, graças a Deus, mais uma feira. FIM