sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

A MOÇA DA CALÇADA - O POEMA

Na calçada de meu prédio sentava uma moça às sete.
Fiel era menina ao relógio implacável.
A pobre criatura não percebia que os minutos, os segundos e até as horas rasgavam sua face com sucos na derme.
A terra debaixo de seus pés silenciosa lhe preparava uma cova.
Seu rosto, dia triste, dia alegre esperava o carro de seus sonhos e pesadelos.
Por vezes, o sorriso lhe curou as rugas.
Outro dia, seu queixo feria o chão;
O chão onde todos pisam e se cansam.
A moça sonhava proibida.
A desgraça estava na praça.
Na praça da frente, perto do posto, distante da gente.
Eu a amava no silêncio.
Suas lágrimas; sorvi contente.
Não lhe era parente.
Morávamos no mesmo prédio.
Andávamos na mesma rua.
Vivíamos o mesmo tédio.
Pois, ela não me via.
A pobre menina bonita que me enchia os olhos e acelerava o peito se foi.
O carro a levou; seu motorista vestido de terno bege era o foco do seu olhar.
No canto, a dez metros de lá, do seu costumeiro lugar de sentar, chorei sua partida.
O coração não escolhe a quem amar.
Enganoso e estranho órgão que pulsa sangue sem parar.
Em diástole e sístole ele te leva a lugares que não podes.
Crueldade da natureza!
Malvadeza!
Amar sem ser amado; uma tortura sem cura!


Nunca mais a vi.
Dizem que foi para São Paulo.
Pensei que a moça era carioca.
Beijei o lugar onde ela sentava todas as noites às sete.
Destruíram a calçada;
Construíram um Shopping.
Nada restou no chão de concreto.
– Psiu!
– Silêncio!
Vejo uma morena sentada na mesma calçada!
Vejo um amor não consumado.
Vejo um coração, agora, confortado.
A vejo na lembrança que ainda arde nos olhos do peito:
– Ela não tem defeito!
A culpa é da calçada…

PASSEIO

Aquele lugar era um quadrilátero.
O meu andar era trôpego como de um etílico descendo um beco escuro.
As pessoas sonham com o bem.
Contudo, estão presas em cantos de cimento de concreto e pedra.

Meus pés calçados de nudez e carne trêmula,
Não se cansam de caminhar na mesma longitude e latitude.
Desgastam-se sem consolo pela força de suas licitudes.
As solas de meus sapatos se desgrudam do mesmo como a manteiga derretida pelo sol.
Preciso de ti; não sei quem és; a espera, o silêncio, o desconfiar é minha atitude.
Ou quem sabe, preciso eu de uma mula que me suporte o peso da solidão.

Os homens buscam companhia.
Uma voz que lhes quebre o silêncio da impessoalidade urbana.
O passeio na braça à tarde é rotina;
O que esta em meu estômago é suco gástrico e azia.

As cidades têm suas praças.
Seus homens; seus passos.
Eu mesmo não disfarço.
Grito sobre seus bancos minhas desgraças:
“Essa é a sorte dos filhos de adão!”


Meu amigo onde está tua mão?

O mundo tem mais pessoas e menos gente.
Tem mais passeios que corações contentes.
Suas faces se escondem em máscaras;
Máscaras que caminham até o poente.
No fim do dia, o passeio acaba…

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

VENTANIA E MARIANA

VENTANIA E MARIANA

Laranjeiras era parada obrigatória de muitos vendedores de escravos. A antiga terra de Sergipe Del Rei era lugar de muito dinheiro e de movimento de muita gente. As pessoas passavam por lá vindo de muitos outros lugares. Algumas delas deixaram suas vidas, outras nem souberam por que ficaram por lá. Laranjeiras era também parada de muitos contadores de histórias. Dona Marocas era uma delas. Dona Marocas viveu na Laranjeiras do início do século vinte. Era filha de agricultores que juntaram uns trocados e foram morar na sede. Dona Marocas estudou o curso normal em Aracaju e depois foi ser professora na rede pública. Maroquinha, como muitos a chamavam, era uma contadora de Histórias de todos os tipos e para todas as idades. Ninguém nunca soube ao certo como tudo começou. Diz-se que ela sentiu uma forte dor de cabeça e, depois de quatro dias de cama, saiu contando de tudo.
- Marocas, mulher, tenha fé em deus! Pare de falar tanta coisa! Estou sem suportar!
- Você sabia o que houve no alto da igreja do Bonfim em 1882?
- O que é que eu tenho a ver com isso? - respondeu irritada sua irmã mais velha. - Foi o Ventania, mulher! Ele beijou Mariana lá no alto na noite da missa de Reis.
- Sabe Marocas não suporto mais tuas histórias imbecis.

O tempo passou e Marocas tornou-se Maroquinha da tapioca. Da tapioca porque seu finado esposo vendia requeijão e outros produtos, dentre eles, a tão falada tapioca de dona Maroquinha, agora uma senhora aposentada da sala de aula. Dona Marocas era uma mulher fora de qualquer suspeita. Uma professora que se dedicou à educação de jovens e adultos por toda sua juventude. De volta a sua terra, em meados de 1964, em uma praça de sua cidade natal, ela se deparou com um grupo de jovens jogando capoeira.
- Meninos já contei para vocês a estória de Ventania?
- Não, tia Marocas, ainda não!
- Vocês querem que eu conte um dia?
- Sim, sim, dona Maroquinha! Conte hoje de tardinha!
- Tá bom, tá combinado, de tardinha eu volto aqui e conto, mas juntem mais rapazes.
- Certo! Dona Marocas continuou sua estrada até a casa velha do engenho. Era estranho, mas a velha gostava demais daquele lugar. Ali ela passou a manhã, lendo e olhando o tempo, depois foi para casa. Próximo ao prédio que hoje é a Universidade, Marocas tombou ao chão, virou-se em torno de seu corpo e olhou para cima. Todos estavam lá lhe olhando os olhos. Uns diziam uma coisa, outros diziam outras coisas. E havia aqueles que nada diziam, eram apenas curiosos.
- O que houve com a velha professora?
- Não sei. Eu estava aqui, e ela caiu sozinha.
- E foi, parece coisa feita!
- Uma mulher idosa, mas cheia de saúde.
- É sim, veja como ela está corada!
- Pois num é mulher? E se ela morrer? Vamos ficar sem a tapioca dela.
- O pior é que eu gosto muito de suas histórias.
- Dona Marocas, dona Marocas! Marocas acordou falando sobre o que viu perto do engenho. Dizia ela que Ventania se encontrava com Mariana nas ruínas do engenho velho. Os dois se amavam muito. Um amor que custou muito caro a ambos. Os negros sempre levavam seus donos nas costas. Um dia Ventania levava o coronel Zé Maria e sua mulher, Catarina, à Igreja do Bonfim. Era missa de Reis. No alto, bem no oitão da Igreja, Ventania beijou Mariana a primeira vez. Os dois já estavam se olhando há tempo. Quando Mariana viu que o negro havia chegado com seus pais no alto do morro, e sabendo que ele iria dar uma descansada atrás da Igreja, furtivamente, a moça passou por todos e chegou ao moço. Este estava de cabeça baixa olhando a silhueta da cidade lá embaixo. Ela disse:
- José?
- Sim.
- É você? Tá bem?
- Sinhazinha, já viu argum negro bem?
- Não se revolte, Ventania! Tem gente aqui que gosta muito de você. Os olhos de Mariana se entregaram na primeira olhada. O rapaz hesitou por um pouco, mas depois assumiu seu amor. Ele a beijou com intensa paixão. O desejo de ambos extrapolava o limite que a vida lhes dava. Os dois estavam presos um ao outro pela força do amor.
- Dona Marocas, continue a nos contar esta história!
- Qual? Meus filhos.
- A de Seu Ventania e Mariana.
- Ah, sim. Era noite em Laranjeiras, e todos estavam na Santa Missa de Reis. Era o ano de 1879. Laranjeiras estava cheia de filhos ilustres que haviam voltado de outras terras. O coronel Zé Maria discutia com seus amigos sobre não abolir os escravos. A cidade tomaria um baque muito grande.
- O que vamos fazer com a lavoura? Esses abolicionistas!
- Eh, seu coronel, o senhor fala em nome de todos nós, homens de bem desta terra. O que será do Cotinguiba sem a mão escrava?
- Pois é. Por isso é preciso eleger logo um deputado que lute junto ao Imperador, mostrando-lhe os perigos que estamos correndo, nós e seu império. O Brasil sempre será escravista, e pronto. As coisas sempre foram assim, e nós da lavoura, nós que produzimos as riquezas deste país, dizemos não a José do Patrocínio e sua corja. Falou o coronel com muita firmeza. Ventania e Mariana não se deram conta de que algumas pessoas que estavam na Missa dos Reis os viram a beijar-se. Pouco tempo depois, a história correu pela pequena Laranjeiras. “A filha de Zé Maria estava a beijar-se com um de seus escravos, chamado Ventania. Dizem que este é um capoeira muito perigoso. Isso lhe justifica o nome”.
- Eu não garanto porque não vi, mas dizem que dona Mariana namora um negro do coronel.
- Também escutei isso, Floresval. Mas, e qual é o problema? O amor é lindo.
- Não sei não, acho que vai sobrar para o negro. Ventania foi preso na quarta-feira da outra semana, após a festa dos Reis. Dois jagunços do coronel foram à senzala e trouxeram o rapaz. Zé Maria colocou o negro três dias no tronco. Enquanto isso pensaria no que era mais justo. Mariana nada sabia até que seu pai a chamou.
- Mariana, minha filha. Chamou o coronel Zé Maria a sua filha.
- Sim, meu pai, o senhor me chamou?
- Você está crescendo, eu acho melhor providenciar um marido para você. Seu pai estava preocupado.
- O senhor está preocupado com uma coisa que eu nem me lembro. Não penso em casar agora. Penso em estudar.
- Mariana! Não seja tola! Você acha que estudar é coisa de mulher?
- Acho que todos são iguais, homens e mulheres, negros e brancos.
- De preferência, o da senzala de seu pai não é? Mariana ficou sem jeito perante o pai e sentou-se de cabeça baixa. Zé Maria havia ferido sua presa no ponto fraco. Mariana amava José, o Ventania, e agora ela sabia que seu pai os separaria.
- O que o senhor vai fazer com ele?
- Isso não é de sua conta, mas vocês não se verão mais, entendeu?
- Sim, certo.

Aquele dia fora o pior da vida daquela princesinha. Mariana era uma princesa em Laranjeiras. Era isso que o povo dizia. Seu coração era bom, e seu jeito amável de ser conquistava logo as pessoas. O povo dividiu-se em torno da história de amor proibido. Mariana casa ou não com o José Ventania? Enquanto dona Marocas contava a história, o povo ficava embriagado com suas palavras, e as pessoas aos poucos iam procurando um lugar perto da velhinha contadora de histórias. “Agora, essa parte de nossa estória se torna mais triste. Eu comparo isso ao sofrimento de Nosso Senhor”. O coronel mandou pôr o Zé Ventania na praça principal para ser punido em público como exemplo, e teve o apoio do padre e do juiz da comarca. “A disciplina deve ser severa para que este caso não se repita com outras pessoas”. Ventania apanhou por sete minutos sob o olhar de toda a cidade, brancos e negros. As prostitutas da casa de bordel que ficava atrás do mercado choravam e gritavam enquanto Ventania agoniza ante o peso da chibata. Após o açoite, os homens do coronel o levaram de volta para a senzala. A mente de Ventania manteve firme a imagem do momento do beijo. O cheiro da moça ainda enchia o olfato do rapaz.
- Parece que o amor não tem cor, você não acha, dona Marocas - perguntou um rapaz magro, de cabelo ruivo.
- É, meu filho. O amor uniu os dois mesmo estando em lados opostos. Agora a sina do destino os alcançaria no fim de 1882.
- Como assim, tia Marocas? O ano passou. Mariana não casou e foi estudar com as freiras. Ventania foi vendido para uma fazenda em Alagoas, uma fazenda de um amigo de Zé Maria. Era o tal coronel Manoel Ferreira. Um homem muito poderoso em Alagoas e aliado dos monarquistas. Ventania passou esses três anos pensando em um jeito de fugir e roubar Mariana da casa do coronel. Não sei como, essa parte da estória nunca foi bem contada. Mas, o povo mais velho dizia que Ventania fez pacto com o coisa ruim. Havia na senzala um Babalaô; Babalaô é um tipo especial de sacerdote do culto negro. O seu nome era Joaquim. Pai Joaquim, como todos o chamavam. Pai Joaquim havia visto nos olhos de Ifá que Ventania veria Mariana novamente, “e o destino seguia seu curso como a corrente de um rio”.
- Bem, eu não sei de nada, mas o tal Joaquim era um feiticeiro velho, mexia com o coisa - falou espantada dona Marocas.
- Não fale sem saber mulher - respondeu seu Martins, um umbandista morador de Laranjeiras. Ventania sumiu da senzala de Ferreira. Foi morar em um quilombo perto da barra dos coqueiros. O tempo passou, e o capoeira resolveu visitar Laranjeiras. Era noitinha de 22 de outubro de 1882. Ventania, de barba grande e cabelo de tranças, caminha pelas calçadas de Laranjeiras. Ele segue em direção à igreja do Bonfim. No meio do caminho, ele rouba um cavalo preto como a sua cor e tão forte quanto ele. Dois outros rapazes o acompanha. Havia um culto lá no alto. Ventania sobe a ladeira e fica à espreita para ver se encontra Mariana. Mariana estava dentro do santuário. Sua alma estava em paz na presença de Deus, mas sua intuição dizia que algo muito bom estava para acontecer, de fato, aconteceu, Ventania entra santuário adentro montado em um cavalo e aproxima-se de Mariana e diz à moça: “Mariana, venha comigo, e seremos felizes”. A jovem moça foi embora com o negro na frente de seus pais e de toda a sociedade. Nunca se sabe o que um coração apaixonado pode fazer. Ventania deixou dois amigos do lado de fora caso houvesse tiros, e de fato, um dos capangas do coronel atirou para cima porque temeu acertar o tiro em Mariana. Na mesma noite, os dois tomaram uma condução para São Cristóvão. Pernoitaram lá e depois desapareceram no mundo como fugitivos. Zé Maria chorou muito a perda de sua filha, principalmente pela forma como tudo aconteceu. A mãe de Mariana se apegou com o seu santo até o dia que o divino a levou de volta para o lar celestial.
- O que aconteceu com Mariana, dona Marocas?
- Ah, meu filho, você não perde por esperar, mas essa história é muito bela. Mariana e Ventania foram morar em Rio Real. Naquela época a cidade era acanhada, mas a semelhança de Laranjeiras tinha muito o que se fazer lá, mesmo para um negro recém- alforriado como Ventania, digamos, alforriado por imposição. Ventania colocava água nas casas e Mariana costurava para as pessoas. Fazia remendos a princípio, depois o povo se apegou ao seu trabalho e foram procurando a moça. O lar deles, apesar das diferenças várias entre eles, era feliz. Os filhos foram aparecendo. Deus, o divino, os abençoou com três filhos. Duas mulheres e um rapaz. O rapaz nasceu primeiro, era o Leandro, e as meninas eram Juliana e Beatriz. A vida de Mariana e Ventania foi como a de todos. Os anos passam e com eles o implacável peso da idade chega. Ventania morreu primeiro. Deu uma dor nas costas e dessa dor, o negro arriou. Mariana ainda viveu uns dias. Quando Juliana, sua filha, teve o primeiro neto, Mariana ainda pensava em José Ventania. Ela morreu, e nunca se arrependeu do que fez.
- Que estória esquisita, dona Marocas! Chega me arrepiei toda. Disse a menina Flavinha, filha de seu Amarante.
- É, minha filha, quando eu tinha sua idade, eu costumava ver um velho contando essa história. Um dia me aproximei dele e perguntei qual era o nome dele. Então ele disse:
- Por que vosmercê pergunta meu nome?
- Porque acho que já te vi em algum lugar.
- Fia, carece saber o que?
- Só o seu nome.
- Olhe, minha fia, no dia que Ventania chegou à senzala de Manoel Ferreira, eu sabia que ele era filho de Ogum. Sua mãe era Oxum. Então, ele estava com a espada de Ogum e o amor de Oxum com ele. Eu entreguei a ele o oráculo e disse que sua vida seria como qualquer uma sobre a terra. E não foi assim? Ninguém espere nada além do que a terra pode dar, pois o que é, é isso. A cidade de Laranjeiras cresceu. Muita coisa mudou. Não tem mais dona Marocas. A igreja do Bonfim ainda está lá. As ruínas do engenho velho também.


ROOSEVELT VIEIRA LEITE, 19/04/11

LEMBRANÇAS

A janela de seu quarto era uma moldura.
Moldura de beleza estranha.
Beleza da estranha.
Aquela que se tornou tão íntima que quando me mudei de prédio senti muitas saudades.
Às vezes parecia uma rosa.
Uma cheirosa rosa de todas as manhãs.
Às vezes era um rosto que me suscitava recordações.
Lembranças de alguém.
Além.
Ali.
Ou quem sabe, cá no peito, aqui.
Um dia a janela foi fechada por dentro.
Em vez da moça,
Uma vidraça fria.
Ou quente no meio do dia.
Sol de saudades.
Saudades da moça.
Da janela moldura.
Das lembranças despertadas.
Depois me mudei também.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

O SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO

Procurando entender melhor o sujeito, e, principalmente, o sujeito educando, ou “aquele que sofre a ação incisiva de discursos pedagógicos formadores de mentalidades e construtores do senso de realidade legitimado pelas ciências e pelas sociedades” que eu escrevo, meu caro Souza, estes rabiscos, desta feita, o foco está no ‘sujeito da enunciação’.

O sujeito da enunciação é o mesmo sujeito da recepção. Os papeis são alternados no transcorrer do dialogo ou na epifania de ambos. Contudo, o que os une é o mesmo código, e a mesma realidade material. Pois, para que o circuito se complete é necessário que os dois comunguem de uma mesma língua e que estejam inseridos no mesmo contexto material. Não podemos, meu caro Souza, abrir mão do fato de que as linguagens estão em constante relação com as condições históricas e materiais da sociedade. O pensamento do sujeito é, portanto, em grande parte, um constructo que reflete os modelos de produção e consumo legitimados por uma sociedade num determinado tempo e espaço.

O sintagma sujeito, no mundo da linguística foi usado pela primeira vez por Benveniste. Parece que para o pensador Francês, o sujeito não é apenas portador de um código, mas, é um enunciador, ou que o sujeito precisa dizer e o faz enunciando a partir das estruturas de um código que lhe foi internalizado durante o seu processo ontogênico.

Tanto o enunciador como o receptor sofrem a coesão desse código que delimita sua capacidade de expressão no mundo, e o instrumentaliza pela sua estrutura estruturante e semiótica. O uso do código, portanto, não está amarrado ao seu complexo lexical, mas, seu corpo semântico se transmuta pela necessidade enunciativa. Assim, o sujeito diz por necessidade, e isso transcende a vontade de dizer.

É importante, meu caro Souza, observarmos que a necessidade de dizer pode ser puramente instintual. O homem fala por hábito e quase sempre nem avalia o que disse. Esse aspecto do enunciado deve ser estudado pelo campo da psicologia, pois, nos ditos do sujeito devem estar os lampejos da atividade inconsciente individual e coletiva. O sujeito que aqui se apresenta como foco, é apenas, o sujeito educando que enuncia e recebe o enunciado.

O sujeito educando está sobre o efeito do discurso da educação oficial. Logo cedo, ele entra em crise, pois, os discursos que advém de sua casa não se harmonizam com aqueles que ele encontra na escola. A realidade material de seu primeiro lugar no mundo entra em conflito com a nova realidade apresentada. Nesse contexto, o sujeito educando cessa a enunciação e entra em silêncio, ou, cria admiração e vontade de enunciar, fazendo assim, o sujeito da enunciação se integra a gigantesca malha enunciativa que constitui o fluido sociolinguístico de nossa sociedade.

Mas, qual é a força que pode calar o sujeito? O sujeito jamais se cala ou para de receber a enunciação, meu caro Souza. O sujeito pulsa em palavras que podem surgir de dentro de si mesmo e se dirigirem a si ou emergirem do seu entorno rumo a um receptor, seja real ou não. Calar o sujeito, aqui, é fazê-lo um ser monológico, isso é o mesmo que dizer que o sujeito não diz para o outro, pois, o seu dizer já é o dizer do outro, uma vez que os discursos recebidos por ele se constituíram em meros sinais sem a representação de um novo sentido. Dizer, ou enunciar pode ser entendido como representar um novo sentido.

A escola e a casa enunciam de forma diferente. Isso é o mesmo que dizer que o aluno trará consigo os discursos de suas relações primarias. Assim, uma sociedade com déficit de capital intelectual precisa de uma educação que democratize o acesso a esse capital. No nosso caso, a educação do sertão, a família também precisa ir à escola. Caso contrário, haverá um distanciamento sempre maior entre escola e sociedade. Essa assimetria na capacidade de representar o mundo faz com que a sociedade não perceba sua escola e a escola não perceba a sociedade. Ambas nada dizem para o outro, ambas falam monólogos.

A recepção do discurso educativo da escola é precária porque o educando, na fonte, foi vitimizado por uma sociedade ignorante e iletrada. Concluímos, então, que o sujeito educando terá a educação que sua sociedade entende ou deseja. O dito, dessa forma permanece mito, um mito sem decifração. A escola fortalece os mitos sociais, ou seus ditos, e os mesmos integram o psiquismo da escola. As duas não crescem, pelo contrário, se engessam no mundo mítico do dizer sem saber, do representar o vácuo e do monólogo do discurso inoculado por uma classe que avidamente locupleta vantagens dessa realidade inerte.

Sua pessoa deve dizer que isso é algo que já foi dito e que não carece mais de discursão. Mas, minha pessoa insiste em dizer novamente sobre a escola que é a materialidade das ideologias de uma dada sociedade, sejam ideologias positivas ou negativas, desculpe-me a classificação. Se uma determinada sociedade reproduz um modelo de exclusão social no qual ela foi forjada historicamente, inevitavelmente, a escola terá ressonâncias dessas ideologias e quase que organicamente reproduzirá o mesmo modelo, pois, as ideologias ou enunciados que possuem força social formam e sedimentam mentalidades, e as mentalidades se transformam em materialidades, ou comportamento e estrutura social.

Vendo a escola a partir da enunciação, podemos concluir que o professor é o primeiro ator que deforma o processo de epifanização do sujeito; sua ação se limita a sujeitar o sujeito à ordem consagrada pela força dos enunciados historicamente legitimados. O professor assim como o educando são vítimas de uma mentalidade que se reproduz de forma quase natural pelos mecanismos de convencimento social, e um deles é a escola.

Então, será que devemos acabar com a escola?

Certamente que não! Precisamos, pois, entendê-la melhor. O educador possui o discurso que pode transformar realidades. Veja que a grade curricular possui informações que podem fazer qualquer encéfalo enxergar melhor sua realidade e tonar-se um enunciador mais consciente de seu mundo. Isso lhe oferece, não apenas, ferramentas epistemológicas para desvelar o real e ou exercer funções sociais melhores remuneradas elevando seu status social, mas, também, a capacidade de produzir novos enunciados que transformem as mentalidades. Uma geração pode ser sucedida por outra diferente, basta que os atores do processo vejam e desejem que ela surja. Esse é o grande milagre do poder dizer diferente!

O sujeito da enunciação é o sujeito da representação do real. O real é invenção do sujeito. Tudo fora da representação é natureza, é água, fogo, ar e terra. O representar o real, portanto, o criar realidades é a epifania do sujeito. O sujeito não criou o planeta, mas, tenha certeza que foram os homens que criaram o mundo. Enunciar pode ser visto como representar ou dar sentido ou entender o sentido ou perceber o sentido de outrem. Fabricamos realidades e somos engolidos por elas. São os nossos enunciados que dizem qual é a nossa escola!

A escola do sertão é a materialidade da mentalidade formada pelos enunciados históricos de nossa colonização e como representamos historicamente nossa realidade de produção e consumo. Isso é o mesmo que dizer que o gado estará atrás da cerca e ninguém perceberá que gado é dinheiro, é poder político, é formação de opinião. O educando do sertão não dialoga com a paisagem ao seu redor, pois, sua capacidade de perceber as representações constituídas não lhe permite ir além das cercas. Assim o homem e o gado formam a mesma paisagem.

O sujeito da enunciação somente se epifaniza quando sua voz, embora, cheia de ecos de outros se constitui seu enunciado, seu momento único de dizer e representar seu mundo, seu sertão. Assim, meu caro Souza, a escola do sertão não diz o novo – é uma velha caduca, uma caixa de ecos daqueles que enunciaram no passado. Nossas crianças estão caladas, falam por instinto, e dizem o dizer do outro.

Então, como acabar o monólogo e iniciarmos um diálogo no sertão?

Em tempo idos já expusemos ao nosso ilustre sociólogo que entendemos que a condição natural dos homens é de diálogo. Ninguém foge dele! Conversamos conosco ou dialogamos conosco, com as coisas, e com os animais. O homem sempre será um ser em relação a outro. Foi essa posição que nos constituiu animais dialógicos desde os primeiros tempos de nossa história. Olhamos sempre para o outro que, ora somos nós mesmos, ou um ser virtual, ou um ser real. O outro ou o receptor fecha o circuito conosco e ambos se moldam em função do que dizem e da posição que os dois têm ao dizer. A assimetria ao dizer é inevitável, pois, é também condição natural a dominação do outro pelo discurso, nem sejamos nécios! O animal ainda sobrevive na civilização dos homens. As relações geopolíticas, as relações sociais, ou até mesmo o cotidiano das praças e ruas de nossas cidades atestam que o homem tende ao convencimento e dominação do outro. A nossa relação com o outro é santa e profana, é divina e diabólica e tudo isso se traduz em humanidade.



Usamos o termo monólogo acima para deixar claro que o dizer sem um contra-dizer é como se fosse um monólogo, uma realidade de uma única dimensão, um olhar numa só perspectiva. Ora, se enunciar pressupõe um ‘outro’, ou um receptor, então, naturalmente, nossa condição é de diálogo. Posto isso, acabar o monólogo não existe de fato, pois, este não existe. O que é preciso é aproximar os interlocutores, dar-lhes condições de barganha, dar-lhes sentidos que gerem mais sentidos para que as relações entre os homens se tornem mais humanas. Dialogar é humanizar a fera que urge pela carniça que está no campo.

O diálogo só é possível se as partes possuem competências para enunciar o novo. Caso contrário, os homens tem a impressão que dizem algo, mas, na realidade, sua voz é a voz de alguém que o domina e o sujeita a uma ordem consagrada pela historia das relações matérias de determinada sociedade. Ocorrendo isso o sujeito é um sujeitado, o ser sujeito único se dilui no discurso do outro. O sujeito não se epifaniza; torna-se gado, o gado além das cercas do sertão.

A epifania do sujeito enquanto sujeito único é a epifania de sua unicidade. A epifania de suas marcas compartilhadas com o todo social, e de sua unicidade enquanto sujeito único no mundo. O enunciar para ter o sentido aqui apresentado não é o dito das conversas triviais das ruas e becos das cidades, mas, deve ser o ato único, sublime, o lampejo de consciência que ilumina toda a malha que o envolve. A unicidade do sujeito lhe garante marcas próprias que são só suas. Essas peculiaridades ocorrem porque o sujeito enquanto um “devir histórico” é auto transcendente; o sujeito transcende no eixo das diacronias e se epifaniza nas coordenadas sincrônicas do ato enunciativo. Desta forma, o enunciar é um ato único do ser de ser ao dizer, de se diferenciar ou se distanciar das marcas do outro mesmo que este continue implacavelmente sendo seu hospede.

A substância do sujeito enquanto sedimento ideológico; construção semiótica e psíquica de uma personalidade que externa furtivamente sua identidade não poderia se expressar de uma forma melhor do que por meio das linguagens, e entre elas está a língua, principalmente, enquanto parole. No entanto, não devemos desprezar as outras, pois, o sujeito sempre buscará uma forma de expressão no mundo. Ele é massa-sentido e produtor de sentidos.

Mais uma vez, minha angustia toma conta de mim, meu caro Souza. Pois representar o mundo é tão necessário para o homem como ar que o mesmo respira. Ligamo-nos, de forma tão visceral ao material ideológico formador de nossa subjetividade que esse pode inervar-se e psicossomatizar doenças, até letais, na nossa máquina biológica. Sua pessoa, Mestre das Ciências Sociais e psicanalista sabe muito mais de que esse humilde pedagogo sobre os efeitos dos sentidos na maquina fisiológica.

Alhures, falamos sobre o enunciar enquanto representação de mundo ou sentido de realidade. O sujeito ao se epifanizar surge por trás de uma máscara na qual ele esconde seu animal, ou sua verdadeira face. O sujeito, sem consciência disso no momento epifânico, o faz de forma natural, é a amnésia necessária para que o seu psiquismo se adeque a realidade social. Assim, dizer da racionalidade é dizer de uma centelha de luz em um recorte no tempo enunciativo. Dizer da consciência é a mesma coisa. Essas duas irmãs trabalham juntas para negar o que somos realmente: Mamíferos falantes; animais perigosos e belicosos. Somos a mais mortal criatura sobre a terra. Assim, humanizar o animal é preciso. Essa é uma das funções éticas da Educação.

Ora, meu amigo, se a epifania do sujeito via linguagem, e no caso deste breve ensaio, via enunciado esconde a realidade do mesmo, então, afinal, onde encontrar o sujeito? A resposta a essa pergunta é fundamental para que o educador exerça seu trabalho com ética e objetividade. Pois, se não conheço o homem que pretendo educar; como educa-lo, então? Para que? Qual o modelo?

A história da educação humana é a historia de teorias, de propostas, de modelos, de filosofias, enfim, a história dos mais diversos conceitos de homem que já conseguimos produzir. Portanto, infere-se pelo testemunho da história da educação humana que o homem educa as gerações em função de um sentido de realidade, e este está culturalmente ligado à malha de sentidos de uma determinada sociedade, em um determinado tempo e espaço. Estou dizendo que as relações materiais concretas dos homens é que dizem qual o sentido da realidade, assim, elas inspiram as mais diversas teorias sobre a Educação humana.

As religiões, os mitos, os heróis, os vilões, os super-heróis, os monumentos, as instituições, os títulos, as insígnias, os brasões, enfim, todos os símbolos e criação humana falam de sua relação objetiva com os meios de produção e consumo de riquezas. A divisão do trabalho, as hierarquias, as estruturas sociais e tudo mais que criamos são sentidos oriundos de nossa relação com a matéria ou com a sobrevivência. Num sentido mais amplo, com a nossa relação com as riquezas e sua distribuição. Portanto, educar é sonhar e fazer sonhar. Pois, se não há um conceito único de homem, se não há uma substância concreta, se não temos uma pista para encontrar o sujeito, então, tudo que dizemos sobre ele pode ser um sonho ou um sentido dado em um dado momento; uma atividade onírica em estado de vigília. Nossa espécie precisa acreditar que existe um sentido além da matéria, ou o sentido UNO. Quanto a este, não é propósito deste ensaio discuti-Lo.

Assim, meu caro Souza, a epifania do sujeito é um sonho para si e para o outro. Enunciar o mundo é dizer de nossos sonhos num primeiro momento. Todavia enunciar é criar na matéria pela matéria pensante, ou a vontade do homem um mundo objetivo onde nele os homens jogam o jogo da realidade, ou de sua conjuntura socioeconômica. A relação do homem com a natureza produziu uma realidade ideológica que embora sonho nos afeta objetivamente. Cabe ao educador sonhar com o educando, mantê-lo sonhando, pois, a civilização precisa continuar, todavia, é, também, um fim ético da educação fazer o sujeito perceber que não há sentido em toda a malha de sentidos, cabe, então, a ele, unicamente a ele, produzir os seus sentidos dentro das possibilidades do jogo que já está posto. Sonhar é também escolha e escolher faz parte do jogo da vida.

À percepção dessas coisas deve o educador estimular seus pupilos. Isso é possível sem comprometer a proposta conteudista das instituições de educação. Somente percebendo que sonhamos é que acordamos, e quando isso ocorre nos encontramos a sonhar novamente.

Reduzir as assimetrias discursivas entre os interlocutores; aproximá-los, e garantir ao educando a capacidade de sonhar, e de despertar para sonhar de novo, é o fim último da missão de um educador. O educando precisa saber que não existe um modelo real de sujeito, mas, que existem diferentes olhares, ou sonhos sobre o mesmo. O sujeito só pode ser percebido no ato único da enunciação.

Meu caro Souza, as crianças do sertão sonham. Há uma geração chegando mais uma vez. Minha angustia aumenta a cada passo que vejo entre nossos colegas a falta de percepção da realidade. Muitos acreditam no real como se ele merecesse plena confiança. Muitos dos companheiros estão presos a uma visão mítica de um sujeito que pode ser visto, ou tocado; de uma substância constituinte do mesmo, de uma epifania plena do ser. Esquecem os homens que somos um sendo; um perpétuo movimento de sentidos, um devir na busca do UNO.

Para concluir, meu amigo sociólogo, na natureza não há sentido. Todo sentido é criação do homem, exceto, o UNO. Não quero te excitar falando Dele, apenas digo que na matéria o verdadeiro sentido é a falta de sentido. Educando assim, libertarás a ti mesmo e aos teus discípulos. Muita paz e Luz!

É bom? Então, compartilhe com seus amigos.

PONTO FINAL

A natureza acordou no silêncio do caos.
De súbito, uma sinfonia alcançou os termos do universo.
O criador, ou o logos fez todas as coisas como o poeta constrói seus versos.
Uma a uma foram amarradas as esferas por rimas perfeitas.
Contudo, no olhar pequeno, do grão de areia que pela terra esperanças semeia.
Tudo parece confuso, um caos persistente!

O silêncio do imenso espaço causa uma estranha e perturbadora inquietação.
Na terra, o lar dos homens, a visão do cosmos, é tão pequena quanto as órbitas de seus olhos.
Seja aqui, ou entre as estrelas, a falta de palavras despe tudo de sentidos.
A natureza se torna nada e o nada mais um nada – é a física do silêncio.

Assim, dizem os homens que dizer é preciso.
Pois, os filhos dos anjos consomem palavras.
E nas palavras estão seus sonhos.
E neles seus caminhos.

O silêncio rouba as almas das almas.
E quando este se instala entre queridos.
É sinal que o mal avassala.
É maré destruidora que aniquila tudo à beira da praia.
Que faz do olhar brilhante um vidro fosco.
Que torna os amantes pares distantes.
Apenas viajantes que esperam o transporte na mesma sala.

Dizem que o silêncio tem seu momento.
Sobre isso, agora, não comento.
Uma vez que dizer é preciso.
A palavra certa é faca afiada.
Uma incisão perfeita onde há suspeitas.
Faz a alma sair do tormento.
Faz a dúvida partir do peito.
Une os casais, os devolve ao bendito leito.

– Ah, se tu dissesses só uma palavra!
– Ah, se tu abrisses os lábios e rasgasses as vestes!
– Ah, se teu amor me coubesse!



Dos astros ouviria essa criatura a mais suave melodia.
Com isso não mais suplicaria a luz do sol;
Nem desejaria a claridade da lua;
Nem das trevas teria medo.
Seria eu como no início de tudo.
– Éramos conversa de amigos!
– Éramos um diálogo garrido!

Mais uma vez a natureza acordou no silêncio do caos.
Viu que não havia poesia e se calou por um instante…

É bom? Então, compartilhe com seus amigos.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

FENDA

FENDAS
Por Roosevelt Vieira Leite

A ferida antiga foi aberta; dela saíram cartas e telefonemas que me fizeram pensar que o sol se perdeu em algum lugar que eu não sei.
A noite com suas lembranças dilaceraram o tecido cardíaco que apesar de tudo insistia em continuar.
- Mas, andar para onde se tua cama ficou atrás?
- Mas, pensar no que está na frente não faz sentido se tua água ficou na estrada.
Os homens são pequeninos quando falamos de sentimento.
Os homens são meninos que nada podem quando na alma lhes pesa a mão da moça.
Não acredito que tu me ouças, pois, só sabe disso quem viveu na avenida ilusão.
Nela, tuas lágrimas são legítimas;
Nela, tua dúvida é verdade, e a mesma te engole com confissões de boêmio;
Nela, não se pode correr além das faixas já postas, ou dos limites que fazem a trama de tudo.
Há tramas no mundo!
Há trancas no coração!
Há palavras que enganam!
Há gente que cospe a semente que foi regada com gotas d´água de mina; líquido puro, genuína e preciosa substancia que inspira os moradores da terra.
- Não, não me fales mais de nosso passado!
- Por favor, nele não tenho legado; nem dinheiro herdado!
- Há um fardo que na vida seja boa ou sofrida todo homem mais cedo ou mais tarde terá que suportar – o amar e não ser amado!
Esta é a sentença para ti que creste na dona que passeava toda faceira.
Esta é a cadeia onde terás por preso teu peito crédulo, ou tua fama acorrentada aos beiços do povo.
- Dizes para mim “Onde está tua pombinha?”
- Não sei, ela se foi.
Eis que vejo a donzela cobiçada por homens velhos e novos. Os mancebos dançavam no ritmo de suas entranhas. Mas, ninguém se engane: “Toda vagina terá um preço; toda paixão traz consigo algum tipo de solidão”.
- Oh, homem de dores! Foge do vazio dessa dona!
Pois, no final de tudo isso te restará apenas lembranças opacas de uma sala vazia cheia de sombras inimigas.
Conheci um varão que amava sua bela mulher. Ele construiu um castelo quando ninguém acreditava que resistisse ao tempo de ventos fortes e assassinos. O tempo mudou; a ventania veio, e o castelo ali ficou; uma construção resistente que nem laços de parentes; coisa de família que unicamente a morte pode interromper, mas, nunca acabar.
Contudo, na mesa de um bar tu estás. Contudo, dentro de uma garrafa de líquido etílico aprisionastes tua vida.
- Oh, dor! Que batalha perdida!
Desci a ladeira da serra e comigo estava a cabocla do rio. Eu e ela nos beijamos na estrada; o céu sorriu e nós dois sumimos numa fenda do horizonte onde o sol se encontrava...

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

É NATAL EM CAMPOS

É natal em Campos;

A avenida sete de junho parece um rio de gente.

É gente de todo canto e de toda cor.

São faces sorridentes, ou olhares de dor.

É natal em Campos;

O gado continua no pasto;

O povo permanece crendo, pois, no sertão, acreditar é vício.

Ainda vejo um “cariri” envergar seu arco.

Ainda existem “negros” nas senzalas.

No comércio da cidade, as calçadas tem o piso liso.

Feliz de quem nele não escorrega.

Se você me saudar, dar-te-ei um abraço, um sorriso.

Isso é coisa que não se nega, mesmo, se no estômago a comida estiver fria.

É o resto da fome do dia;

É a flecha que ninguém pega.

É uma noite sem lua num sertão sem pão.

Para muitos, o natal de Campos não tem esperança.

É natal e Papai Noel de papel.

É uma alma que se cansa.

Uma caçada sem presa, só pressa.

E ai de quem nela tropeça.

É natal em Campos;

Carros de som pela cidade espalhados;

O povo em todo canto de radio ligado;

Mensagens de felicidades nos intervalos comerciais.

Isto é Campos; é terra de cristãos.

Somos irmãos; compartilhamos do mesmo chão.

O chão do sertão.

Do sertão de Peão, de São João, de vaquejada, de banhos na barragem, de missas aos domingos, de imposto de renda, de tiroteio na rua, de gente nua em vestidos de gala.

O sertão tem veredas e encruzilhadas cercadas de fazendas.

É natal em Campos, a vida continua.

É uma corrida sem volta.

É uma viagem de ida.

É a sorte tua, que por nada ninguém troca.

É natal em Campos.

É natal no sertão.

É tempo de presentes, de abraçar os parentes depois de um dia de sol quente.

É natal em Campos de Rio Real.

É missa do galo.



É Ave-Maria.

É ambulância na estrada com uma vida aflita e uma verba vazia derramada como água no copo de poucos.

É madrugada em Campos.

É noite calada.

É boca cerrada de medo ou covardia.

É natal em Campos;

É Real…