quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

VENTANIA E MARIANA

VENTANIA E MARIANA

Laranjeiras era parada obrigatória de muitos vendedores de escravos. A antiga terra de Sergipe Del Rei era lugar de muito dinheiro e de movimento de muita gente. As pessoas passavam por lá vindo de muitos outros lugares. Algumas delas deixaram suas vidas, outras nem souberam por que ficaram por lá. Laranjeiras era também parada de muitos contadores de histórias. Dona Marocas era uma delas. Dona Marocas viveu na Laranjeiras do início do século vinte. Era filha de agricultores que juntaram uns trocados e foram morar na sede. Dona Marocas estudou o curso normal em Aracaju e depois foi ser professora na rede pública. Maroquinha, como muitos a chamavam, era uma contadora de Histórias de todos os tipos e para todas as idades. Ninguém nunca soube ao certo como tudo começou. Diz-se que ela sentiu uma forte dor de cabeça e, depois de quatro dias de cama, saiu contando de tudo.
- Marocas, mulher, tenha fé em deus! Pare de falar tanta coisa! Estou sem suportar!
- Você sabia o que houve no alto da igreja do Bonfim em 1882?
- O que é que eu tenho a ver com isso? - respondeu irritada sua irmã mais velha. - Foi o Ventania, mulher! Ele beijou Mariana lá no alto na noite da missa de Reis.
- Sabe Marocas não suporto mais tuas histórias imbecis.

O tempo passou e Marocas tornou-se Maroquinha da tapioca. Da tapioca porque seu finado esposo vendia requeijão e outros produtos, dentre eles, a tão falada tapioca de dona Maroquinha, agora uma senhora aposentada da sala de aula. Dona Marocas era uma mulher fora de qualquer suspeita. Uma professora que se dedicou à educação de jovens e adultos por toda sua juventude. De volta a sua terra, em meados de 1964, em uma praça de sua cidade natal, ela se deparou com um grupo de jovens jogando capoeira.
- Meninos já contei para vocês a estória de Ventania?
- Não, tia Marocas, ainda não!
- Vocês querem que eu conte um dia?
- Sim, sim, dona Maroquinha! Conte hoje de tardinha!
- Tá bom, tá combinado, de tardinha eu volto aqui e conto, mas juntem mais rapazes.
- Certo! Dona Marocas continuou sua estrada até a casa velha do engenho. Era estranho, mas a velha gostava demais daquele lugar. Ali ela passou a manhã, lendo e olhando o tempo, depois foi para casa. Próximo ao prédio que hoje é a Universidade, Marocas tombou ao chão, virou-se em torno de seu corpo e olhou para cima. Todos estavam lá lhe olhando os olhos. Uns diziam uma coisa, outros diziam outras coisas. E havia aqueles que nada diziam, eram apenas curiosos.
- O que houve com a velha professora?
- Não sei. Eu estava aqui, e ela caiu sozinha.
- E foi, parece coisa feita!
- Uma mulher idosa, mas cheia de saúde.
- É sim, veja como ela está corada!
- Pois num é mulher? E se ela morrer? Vamos ficar sem a tapioca dela.
- O pior é que eu gosto muito de suas histórias.
- Dona Marocas, dona Marocas! Marocas acordou falando sobre o que viu perto do engenho. Dizia ela que Ventania se encontrava com Mariana nas ruínas do engenho velho. Os dois se amavam muito. Um amor que custou muito caro a ambos. Os negros sempre levavam seus donos nas costas. Um dia Ventania levava o coronel Zé Maria e sua mulher, Catarina, à Igreja do Bonfim. Era missa de Reis. No alto, bem no oitão da Igreja, Ventania beijou Mariana a primeira vez. Os dois já estavam se olhando há tempo. Quando Mariana viu que o negro havia chegado com seus pais no alto do morro, e sabendo que ele iria dar uma descansada atrás da Igreja, furtivamente, a moça passou por todos e chegou ao moço. Este estava de cabeça baixa olhando a silhueta da cidade lá embaixo. Ela disse:
- José?
- Sim.
- É você? Tá bem?
- Sinhazinha, já viu argum negro bem?
- Não se revolte, Ventania! Tem gente aqui que gosta muito de você. Os olhos de Mariana se entregaram na primeira olhada. O rapaz hesitou por um pouco, mas depois assumiu seu amor. Ele a beijou com intensa paixão. O desejo de ambos extrapolava o limite que a vida lhes dava. Os dois estavam presos um ao outro pela força do amor.
- Dona Marocas, continue a nos contar esta história!
- Qual? Meus filhos.
- A de Seu Ventania e Mariana.
- Ah, sim. Era noite em Laranjeiras, e todos estavam na Santa Missa de Reis. Era o ano de 1879. Laranjeiras estava cheia de filhos ilustres que haviam voltado de outras terras. O coronel Zé Maria discutia com seus amigos sobre não abolir os escravos. A cidade tomaria um baque muito grande.
- O que vamos fazer com a lavoura? Esses abolicionistas!
- Eh, seu coronel, o senhor fala em nome de todos nós, homens de bem desta terra. O que será do Cotinguiba sem a mão escrava?
- Pois é. Por isso é preciso eleger logo um deputado que lute junto ao Imperador, mostrando-lhe os perigos que estamos correndo, nós e seu império. O Brasil sempre será escravista, e pronto. As coisas sempre foram assim, e nós da lavoura, nós que produzimos as riquezas deste país, dizemos não a José do Patrocínio e sua corja. Falou o coronel com muita firmeza. Ventania e Mariana não se deram conta de que algumas pessoas que estavam na Missa dos Reis os viram a beijar-se. Pouco tempo depois, a história correu pela pequena Laranjeiras. “A filha de Zé Maria estava a beijar-se com um de seus escravos, chamado Ventania. Dizem que este é um capoeira muito perigoso. Isso lhe justifica o nome”.
- Eu não garanto porque não vi, mas dizem que dona Mariana namora um negro do coronel.
- Também escutei isso, Floresval. Mas, e qual é o problema? O amor é lindo.
- Não sei não, acho que vai sobrar para o negro. Ventania foi preso na quarta-feira da outra semana, após a festa dos Reis. Dois jagunços do coronel foram à senzala e trouxeram o rapaz. Zé Maria colocou o negro três dias no tronco. Enquanto isso pensaria no que era mais justo. Mariana nada sabia até que seu pai a chamou.
- Mariana, minha filha. Chamou o coronel Zé Maria a sua filha.
- Sim, meu pai, o senhor me chamou?
- Você está crescendo, eu acho melhor providenciar um marido para você. Seu pai estava preocupado.
- O senhor está preocupado com uma coisa que eu nem me lembro. Não penso em casar agora. Penso em estudar.
- Mariana! Não seja tola! Você acha que estudar é coisa de mulher?
- Acho que todos são iguais, homens e mulheres, negros e brancos.
- De preferência, o da senzala de seu pai não é? Mariana ficou sem jeito perante o pai e sentou-se de cabeça baixa. Zé Maria havia ferido sua presa no ponto fraco. Mariana amava José, o Ventania, e agora ela sabia que seu pai os separaria.
- O que o senhor vai fazer com ele?
- Isso não é de sua conta, mas vocês não se verão mais, entendeu?
- Sim, certo.

Aquele dia fora o pior da vida daquela princesinha. Mariana era uma princesa em Laranjeiras. Era isso que o povo dizia. Seu coração era bom, e seu jeito amável de ser conquistava logo as pessoas. O povo dividiu-se em torno da história de amor proibido. Mariana casa ou não com o José Ventania? Enquanto dona Marocas contava a história, o povo ficava embriagado com suas palavras, e as pessoas aos poucos iam procurando um lugar perto da velhinha contadora de histórias. “Agora, essa parte de nossa estória se torna mais triste. Eu comparo isso ao sofrimento de Nosso Senhor”. O coronel mandou pôr o Zé Ventania na praça principal para ser punido em público como exemplo, e teve o apoio do padre e do juiz da comarca. “A disciplina deve ser severa para que este caso não se repita com outras pessoas”. Ventania apanhou por sete minutos sob o olhar de toda a cidade, brancos e negros. As prostitutas da casa de bordel que ficava atrás do mercado choravam e gritavam enquanto Ventania agoniza ante o peso da chibata. Após o açoite, os homens do coronel o levaram de volta para a senzala. A mente de Ventania manteve firme a imagem do momento do beijo. O cheiro da moça ainda enchia o olfato do rapaz.
- Parece que o amor não tem cor, você não acha, dona Marocas - perguntou um rapaz magro, de cabelo ruivo.
- É, meu filho. O amor uniu os dois mesmo estando em lados opostos. Agora a sina do destino os alcançaria no fim de 1882.
- Como assim, tia Marocas? O ano passou. Mariana não casou e foi estudar com as freiras. Ventania foi vendido para uma fazenda em Alagoas, uma fazenda de um amigo de Zé Maria. Era o tal coronel Manoel Ferreira. Um homem muito poderoso em Alagoas e aliado dos monarquistas. Ventania passou esses três anos pensando em um jeito de fugir e roubar Mariana da casa do coronel. Não sei como, essa parte da estória nunca foi bem contada. Mas, o povo mais velho dizia que Ventania fez pacto com o coisa ruim. Havia na senzala um Babalaô; Babalaô é um tipo especial de sacerdote do culto negro. O seu nome era Joaquim. Pai Joaquim, como todos o chamavam. Pai Joaquim havia visto nos olhos de Ifá que Ventania veria Mariana novamente, “e o destino seguia seu curso como a corrente de um rio”.
- Bem, eu não sei de nada, mas o tal Joaquim era um feiticeiro velho, mexia com o coisa - falou espantada dona Marocas.
- Não fale sem saber mulher - respondeu seu Martins, um umbandista morador de Laranjeiras. Ventania sumiu da senzala de Ferreira. Foi morar em um quilombo perto da barra dos coqueiros. O tempo passou, e o capoeira resolveu visitar Laranjeiras. Era noitinha de 22 de outubro de 1882. Ventania, de barba grande e cabelo de tranças, caminha pelas calçadas de Laranjeiras. Ele segue em direção à igreja do Bonfim. No meio do caminho, ele rouba um cavalo preto como a sua cor e tão forte quanto ele. Dois outros rapazes o acompanha. Havia um culto lá no alto. Ventania sobe a ladeira e fica à espreita para ver se encontra Mariana. Mariana estava dentro do santuário. Sua alma estava em paz na presença de Deus, mas sua intuição dizia que algo muito bom estava para acontecer, de fato, aconteceu, Ventania entra santuário adentro montado em um cavalo e aproxima-se de Mariana e diz à moça: “Mariana, venha comigo, e seremos felizes”. A jovem moça foi embora com o negro na frente de seus pais e de toda a sociedade. Nunca se sabe o que um coração apaixonado pode fazer. Ventania deixou dois amigos do lado de fora caso houvesse tiros, e de fato, um dos capangas do coronel atirou para cima porque temeu acertar o tiro em Mariana. Na mesma noite, os dois tomaram uma condução para São Cristóvão. Pernoitaram lá e depois desapareceram no mundo como fugitivos. Zé Maria chorou muito a perda de sua filha, principalmente pela forma como tudo aconteceu. A mãe de Mariana se apegou com o seu santo até o dia que o divino a levou de volta para o lar celestial.
- O que aconteceu com Mariana, dona Marocas?
- Ah, meu filho, você não perde por esperar, mas essa história é muito bela. Mariana e Ventania foram morar em Rio Real. Naquela época a cidade era acanhada, mas a semelhança de Laranjeiras tinha muito o que se fazer lá, mesmo para um negro recém- alforriado como Ventania, digamos, alforriado por imposição. Ventania colocava água nas casas e Mariana costurava para as pessoas. Fazia remendos a princípio, depois o povo se apegou ao seu trabalho e foram procurando a moça. O lar deles, apesar das diferenças várias entre eles, era feliz. Os filhos foram aparecendo. Deus, o divino, os abençoou com três filhos. Duas mulheres e um rapaz. O rapaz nasceu primeiro, era o Leandro, e as meninas eram Juliana e Beatriz. A vida de Mariana e Ventania foi como a de todos. Os anos passam e com eles o implacável peso da idade chega. Ventania morreu primeiro. Deu uma dor nas costas e dessa dor, o negro arriou. Mariana ainda viveu uns dias. Quando Juliana, sua filha, teve o primeiro neto, Mariana ainda pensava em José Ventania. Ela morreu, e nunca se arrependeu do que fez.
- Que estória esquisita, dona Marocas! Chega me arrepiei toda. Disse a menina Flavinha, filha de seu Amarante.
- É, minha filha, quando eu tinha sua idade, eu costumava ver um velho contando essa história. Um dia me aproximei dele e perguntei qual era o nome dele. Então ele disse:
- Por que vosmercê pergunta meu nome?
- Porque acho que já te vi em algum lugar.
- Fia, carece saber o que?
- Só o seu nome.
- Olhe, minha fia, no dia que Ventania chegou à senzala de Manoel Ferreira, eu sabia que ele era filho de Ogum. Sua mãe era Oxum. Então, ele estava com a espada de Ogum e o amor de Oxum com ele. Eu entreguei a ele o oráculo e disse que sua vida seria como qualquer uma sobre a terra. E não foi assim? Ninguém espere nada além do que a terra pode dar, pois o que é, é isso. A cidade de Laranjeiras cresceu. Muita coisa mudou. Não tem mais dona Marocas. A igreja do Bonfim ainda está lá. As ruínas do engenho velho também.


ROOSEVELT VIEIRA LEITE, 19/04/11

LEMBRANÇAS

A janela de seu quarto era uma moldura.
Moldura de beleza estranha.
Beleza da estranha.
Aquela que se tornou tão íntima que quando me mudei de prédio senti muitas saudades.
Às vezes parecia uma rosa.
Uma cheirosa rosa de todas as manhãs.
Às vezes era um rosto que me suscitava recordações.
Lembranças de alguém.
Além.
Ali.
Ou quem sabe, cá no peito, aqui.
Um dia a janela foi fechada por dentro.
Em vez da moça,
Uma vidraça fria.
Ou quente no meio do dia.
Sol de saudades.
Saudades da moça.
Da janela moldura.
Das lembranças despertadas.
Depois me mudei também.