segunda-feira, 27 de junho de 2016

ANÔNIMOS

ANÔNIMOS Por ROOSEVELT VIEIRA LEITE Comumente as pessoas dizem que o povo não tem rosto. Outros comentam que o povo não tem vontade; é massa amorfa. E ainda existem aqueles que são sábios e entendidos e que asseveram que o povo não diz ou que povo não tem fala... A feira livre é um lugar em que se pode confirmar ou refutar as teorias acima. Em Parangaba, no estado de Sergipe del Rei existe uma feira que já foi cartão postal da cidade. Os mais idosos falam dos tempos idos quando o povo da capital dizia: “Vamos a Parangaba”, o povo queria dizer: “Vamos a Feira”. Clodoaldo, aos sábados, fazia feira em Parangaba religiosamente; ele e sua esposa nunca perderam uma feira desde que se casaram. Clodoaldo era funcionário público, “tinha o seu” como dizia para os amigos, mas, gostava de ajudar dona Bispo nas feiras de Parangaba. O rapaz de 32 anos, estatura média, cor morena clara, olhos claros acastanhados, e cabelos pretos como a noite havia se afeiçoado por uma dona de beleza singular. As mulheres de José Freire possuem uma beleza sem igual. São altas, brancas, olhos azuis ou esverdeados, e corpos de estrelas de cinema. Dona Bispo era uma delas. Uma jovem freirense, no começo da vida. “Eu num perco tempo não”. “De trabalho eu num corro, macho”. Dizia a feirante para seu marido. Parangaba foi fundada em 1920. Com uma economia voltada para a agricultura, e uma localização geográfica privilegiada por estar no agreste itabaianense a terra das areias brancas cresceu e prosperou. Parangaba é um município sergipano situado no pé da Serra de Itabaiana. A cidade recebeu esse nome devido à cor de seu solo. Diz o povo, e ninguém sabe ao certo, é que Parangaba já foi mar. A povoação iniciou com a doação de uma grande porção de terra pelo senhor José Nogueira Neto, que doou uma área de lagoa seca a pessoas carentes. A povoação de Parangaba foi fundada pelos senhores Celestino Montalvão de Oliveira e Getúlio Rodrigues do Nascimento. As pessoas vieram morar na terra dada por seu Celestino no lugar onde hoje é a Igreja Matriz de São João Batista, padroeiro da cidade. A povoação passou a categoria de município em 11 de novembro de 1963. - Clodoaldo, num estou me sentido bem. Disse dona Bispo para seu Marido enquanto apertava a cabeça. Dona Bispo havia tido um sonho com a feira. O sonho lhe dizia que a feira daquele sábado seria muito sofrida. A mulher viu o céu escurecer, e do céu caíam chamas de fogo. - Mulher, se você num for eu num vou. - Num diga isso não, homem. - Meu amor sem você a feira não tem cor. - Então vamos. Dona Bispo respirou fundo, pegou o carro e desceu para a cidade das terras brancas. Por volta das quatro e meia da manhã, o casal termina de arrumar a barraca; naquele sábado o casal tinha: Tomate, chuchu, cenoura, pimentão, cebola branca e vermelha, quiabo bem molinho, mamão, laranja, abacaxi, jenipapo, melão, coco, manga, e maracujá. Cada feirante tem seu produto e cada um tenta se virar com o que tem; agora era só esperar o povo chegar. Às cinco horas, a freguesia aparece. Em toda feira do mundo aparecem tipos variados de pessoas. Dizem os mais velhos que a feira é um pedaço do mundo com o mundo todo dentro. De manhã cedo, não se liga som, mas, o falatório do povo parece uma melodia ritmada com diversas notas musicais. Tomezinho fala quase gritando sobre a mulher de Olegário, um amigo seu morador do povoado Rio das Pedras, que fez uma promessa para sua amada emagrecer: “E Olegário andou de joelhos até o topo da Serra do São José com uma pedra de 3 quilos na cabeça; o coitado fez isso na intenção de Santo Antônio”. O povo em voz uníssona disse que era muito amor. Contudo, nem todos viram a promessa de Olegário com essa lente: “Eu acho mesmo é que Olegário está emacumbado”. Dona Carla do povoado Jenipapo, membra da Comunidade Cristã “O Poder da Fé” clamou o sangue de Jesus na presença de todos. Entre uma conversa e outra, a vida particular das pessoas vai se tornando coisa pública. Mas, o que o povo da feira não perdoa mesmo neste prelúdio de feira é a vida dos políticos, mesmo com a mordaça do coronel; o povo quebra a norma, e abre o verbo com o vernáculo mais popular possível: “Será que vão acabar com a Bolsa Família?” “Se o tale de Temer fizer isso, vai ter guerra”. Disse um vendedor de macaxeira cujo apelido era “neguinho”. Na verdade, o homem nada tinha de negro. O apelido surgiu quando o povo descobriu o sinal de nascença que o mesmo tinha na nádega esquerda. Por muito tempo, o povo do povoado Cajaíba comentou o fato - O sinal de nascença do Senhor Evangelista Souza. Mas, a coisa ficou feia quando sua esposa questionou, no salão de beleza, como o povo descobriu a manchinha do marido. Na feira nada fica oculto, parece que nos becos e avenidas da feira, o arcano clarividente do Cristianismo se cumpre na letra: “Nada fica oculto aos olhos de Deus”, mas, na feira, é aos olhos do povo. A conversa cessa um pouco, a freguesia acordou; o relógio do Mercado da Carne, o popular “Taio de carne” marca seis horas. Os vendedores de cds e dvds piratas ainda não iniciaram sua propaganda musical; para ser sincero, é uma verdadeira guerra santa entre os concorrentes, e a consequência de tudo isso é o povo ouvir de tudo, a feira toda. Na feira de Parangaba, o freguês pode comprar todos os sucessos do Brasil e do mundo pela bagatela de três reais. Como certa feita afirmou o sociólogo Marcos Damasceno: “A pirataria é uma contracultura, e ademais, é uma forma de democratizar o acesso à cultura oficial”. “Bem, se isso é fato, ninguém sabe, mas, que a cultura legal é cara é”. Esta foi a assertiva do vigário local, todavia, o povo da feira não gosta muito dessa figura religiosa, pois, o cidadão de fé pressionou a vossa excelência a prefeita local, dona Munique Nunes a mudar o dia da feira para o sábado. A intenção do religioso era aumentar a quantidade de fiéis na missa de domingo: “Vossa excelência tem que entender que para os católicos do mundo inteiro, o domingo é um dia santo; Jesus ressuscitou no domingo; a senhora é católica?” A mudança da feira para o sábado, segundo seu Melquizedeque, um feirante de José Freire, foi uma desgraça: “Faz trinta anos que trabalho aqui; a feira era quase a cidade toda, agora se resume a esse quadrado; tem mais vendedor de que cliente”. O desabafo de Melquizedeque expressa a opinião da maioria. De fato, a mudança da feira do domingo para o sábado afetou os negócios de forma considerável: - Esse filho do canso é um cabrunco! - Home num fale assim do padre, ele é um homem de Deus. - Homem de Deus é uma peste! Comadre eu num vendo mais nada! - Mas, rapaz quando Deus fecha uma porta ele abre uma janela. - Pois, pra mim num teve janela, não; só se for janela de cadeia. Em Parangaba, a feira é motivo de festa. Os mercadinhos, os bares, os restaurantes, e as pousadas das proximidades faturam com o fluxo de gente. A feira é um imã que atrai gente de todo o agreste e sertão sergipano. Por esta razão, é possível ouvir diferentes sotaques e falas que caracterizam a linguística sergipana. Uns dizem “mutxo” no lugar de muito, outros dizem “tu”, no lugar de você. Os diferentes falares não estão só na fonética ou sintática; a coisa penetra, também, à semântica; o verbo estufar, por exemplo sai de seu sentido lexical como meter em estufa, secar em estufa, ou intumescer ou inchar o peito, e assume o sentido de aparecer em um certo lugar: “Eu esperava Paulo à esquerda da Mons. Tavares, mas, ele estufou na Pedro Ribeiro”. Na cidade das terras brancas, a feira marcha adiante, nada a faz parar; é como se fosse o imperativo da vida, ou a própria vida pulsante. As pessoas, os seus diferentes papéis como feirantes, clientes, turistas, curiosos, ou apenas gente, sim, gente que vem; gente que vai e que representam a alma de nosso povo; um povo alegre de uma terra cheia de musicalidade, de uma sociedade que não cessa de crer e esperar por dias melhores. Em Parangaba, a feira é musica, é folguedo, é trabalho, é sofrimento, é dor, é vida, sonho e som, pois, de um lado, ouve-se o acordeom, a sanfona do trovador e do repentista, e de outro, as músicas baianas fazem o show. Os botecos ao redor da feira disputam espaço com as barracas de pinga serrana. Dizem as pessoas que esta é a melhor serrana do estado. Seu Antônio, um antigo vendedor de cigarro, charuto, fumo de rolo e pinga, certa feita disse: “Num adianta lutar contra nós, eu vendo a melhor cachaça do mundo”. Os bêbados que se amontoam em torno de sua barraca concordaram unanimemente com a declaração do comerciante. Seu Antônio convive com os etílicos há muito tempo; ele conhece a alma desse povo: “Beba, meu filho, beba! Esqueça-se da mulher”. “Oxente, macho!” Deixa essa história pra lá!” “Tome uma que passa!” Foi assim que a relação vendedor e consumidor foi crescendo e Antônio se tornou o maior comerciante de cigarros e pinga da feira. “Fumo bom é com Antônio”. A segunda maior feira do agreste sergipano, a feira de Parangaba, atrai feirantes de todo canto. O casal Clodoaldo e Bispo é prova disto. Clodoaldo e sua mulher estavam totalmente envolvidos na rotina da feira. Dona bispo havia pedido um cento de sacos plástico de um quilo, um cento de sacos de dois quilos e um cento de bolsa grossa que serve para por cocos. Dona Bispo era mais experiente de que seu marido, ela sabia a quantidade certa de tudo e podia prever, horas antes, se a feira seria boa ou não: - Hoje, Clodoaldo, a feira será “meiada”. “Meiada” é um termo linguístico da região que quer dizer “nem muito nem pouco”. Seu marido discorda dela: - Num vai ser meiada, não, mulher. Está todo mundo comentando que a feira de hoje é a feira do ano. - Homem, eu conheço isso há mais tempo que muita gente aqui. De fato, dona Bispo se criou na feira. Seus pais a traziam para feira desde criança. Com isso, a menina Bispo aprendeu todos os truques e sabia de todas as mazelas da profissão de seus pais. “Pois, eu digo: ‘Muita gente num é prova de sucesso’”. Seu marido sorriu para sua mulher e pensou consigo: “Eita mulher sabida”. Os dois se amavam. O funcionário do Estado de Sergipe teve problemas com sua ex-esposa Clementes. O rapaz casou-se cedo e deu tudo de si para ser feliz com a mulher de sua mocidade. Segundo Agnaldo Ribeiro, um comerciante de Campos, a mulher de Clodoaldo era ninfomaníaca. Não poucas foram as vezes que Agnaldo avisou ao amigo que sua amada estava com o Manelão em seu motel de luxo: “Clodoaldo, amigo, Clementes acaba de chegar com o Manelão”. O marido fiel e bom ia pegar sua amada no motel e sofria por isso a execração pública. Com o tempo, Clodoaldo viu que não era só o Manelão a fraqueza de sua amada, na verdade, era Rubinho, Miguelzinho, Carlinho e outros. Um dia, a paciência acabou, e Clodoaldo deixou sua amada: “Mulher, a ingratidão tira o afeto”. Clodoaldo foi para José Freire onde conheceu dona Bispo, e Clementes continuou sua filosofia de vida. Comenta o povo da Rua Itabaianinha, em Campos, que a mulher se escafedeu pelos sertões de Poço Verde com um vendedor de novelo de linha. - Bispo, seu Martins não veio ainda pegar os cocos. - Rapaz, eu estava pensando nisso agora. - Será que ele está doente? - Num sei, mas, ele reclama muito dos problemas de coração. Seu Martins era um policial aposentado. O tempo de policia lhe deu muita sabedoria e trato com a pessoa humana. Sempre quando ele vinha, a prosa na banca Bispo era muito proveitosa. Os comerciantes das bancas próximas interagiam na conversa e a coisa crescia quando o assunto era Política sergipana e nacional. Cada um dava sua opinião. O povo da feira comentava sobre seus problemas e quase sempre culpava a classe política, e quando isso ocorria Martins ficava vermelho, coçava o bigode e levantava a voz: “Tenho 76 anos, trinta anos de policia; tratei com todo tipo de bandido, mas, igual a esses nunca. Essa classe de gente devia era pegar prisão perpétua”. O povo quando via o sargento Martins expressar seu pensamento entrava num tipo de transe: “Martins é muito sabido”. Todos gostavam dele, por isso sentiram sua falta naquela feira: “Clodoaldo, dona Angelina disse que Martins não apareceu em Parangaba”. “Eu vou limpar os cocos e por no saco, quem sabe perto das 11 ele apareça”. “Não, homem, num limpe não porque se ele não aparecer a gente toma prejuízo, apenas separe os seis”. A feira de Parangaba continuava com o vento em popa. Contudo, os tomates, os pimentões, e outras verduras não saíam, ou seja, o povo estava achando caro o preço. O preço caro das verduras era por causa do cartel formado em Itabaiana. Na cidade Princesa da serra, os atacadistas de verdura tabelavam o preço e por isso forçavam o varejista a vender caro ou vender tudo a preço de nada. No caso do tomate e dos pimentões que boiavam nas barracas foi por causa dos feirantes que venderam o saquinho de um real em vez de vender no quilo. Essa é uma estratégia para não tomar prejuízo. No saquinho, o cliente tem a impressão que leva vantagem, e isso na feira é o que mais interessa. “Estão vendendo no saquinho, Bispo”. Clodoaldo e sua mulher prepararam a artilharia e o capitalismo local consagrou mais uma vez a lei da concorrência. Mesmo assim, a feira não estava bem ou boa. Todos se queixavam que não daria para cobrir nem as mercadorias quanto mais levar dinheiro para casa. Os vendedores de cds e dvds piratas, nesta altura da feira, vendiam seus produtos e tocavam suas músicas naquela altura típica das feiras locais: “Máximo volume”. É nessa hora que o povo sofre a hipnose coletiva que varia sua forma de acordo com a letra da música ou a melodia da mesma. Era época de São João, as músicas juninas de todos os tipos inundaram o lugar, o povo cantarolava seus sucessos enquanto esperava alguém surgir, ou quando vendia suas coisas. As barracas de carne assada e cerveja, e os restaurantes de lona adaptados ao redor da feira disputavam com a pirataria junina usando o Axé pirata. De pirata para pirata, as prostitutas que comumente prestam seu serviço social na feira dançavam ao som de “Mamãe deixa eu quicar” ou com o sucesso “Atola toda”. Isso provocou as irmãs do terço de Nossa Senhora do Bom Parto, que exatamente, naquela feira estavam vendendo os bilhetes da rifa para o evento: “O balaio de Nossa Senhora do Bom Parto”, no povoado das Flechas, em Itabaiana. O intuito das religiosas era levantar recursos para a construção de uma capelinha no dito povoado. - Mas, é um absurdo! Em plena luz do dia, uma gente dessa estirpe se exibindo na frente das famílias! Os homens que se encontravam nos estabelecimentos discordavam das religiosas, mesmo assim, as irmãs de caridade queriam parar o show. - Absurdo porque dona? Pergunta a menina de vida fácil, Cosminha. - Não dirija sua palavra mim, sua pervertida! - Mas, onde já viu uma coisa desta querendo me rebaixar! Retaliou Cosminha. A pequena multidão que se formava em torno da cena concorda com a moça. - Uma coisa desta!!! Continuou Cosminha. - O que sua prostituta barata? Revidou a religiosa segurando os bilhetes na mão. A religiosa era dona Pureza, a presidenta do terço do povoado das Flechas. Ela era uma senhora afro descendente, de porte alto e forte. A mulher era uma boa amostra do povo de mãe África. Cosminha odiava ser chamada de ‘puta barata’ por isso investiu mais uma vez contra a religiosa. - Foram os perdidos que Ele procurou; seu tição do cão! Ao ouvir a palavra tição, a religiosa soltou os bilhetes e partiu pra cima de Cosminha que de imediato, num ato reflexo pulou para cima do balcão do bar adaptado. Lá de cima a mulher requebrando o corpo sensualmente dizia: “Isso você num tem, neguinha, e eles adoram”. Os rapazes gostaram da cena e aos gritos gritavam “Cosminha”; as demais moças da vida fizeram o mesmo e com isso a feira prestou atenção ao caso. Ora, as meninas dançavam e se requebravam, ora os homens diziam o que queriam a elas e o clima tornava-se cada vez mais tenso. A religiosa, não parou e continuou em coro com suas colegas: “Vamos chamar a polícia, isso é atendado ao pudor”. - Clodoaldo! Armaram o “barraco” com as putas da frente. - Como rapaz? - Dona Bispo! Lembra-se de Cosminha aquela prostituta que faz vida nos canaviais? - Lembro. Num lembro o que homem? Pois, ela arrumou confusão com as mulheres da rifa do terço. - Num diga! Eita, mundo perdido! E agora? - Já chamaram a polícia. - Polícia! Exclamou Clodoaldo. - Sim, Clodoaldo, e o pior é que o delegado Peixoto está de plantão hoje. Clodoaldo pediu licença a sua esposa e foi com o mensageiro ver o caso. Embora tenha confusão na feira, ela não para de verdade, pois, o povo sempre insiste no que quer. E esse é o caso dos carregadores também. A feira tem de tudo, e os carregadores prestam um serviço sem igual. Sem eles, a feira perde seu dinamismo. Isto pode ser comprovado pelas madames; essas senhoras, não gostam de carregar peso, e por muitas razões; suas feiras são frequentemente gordas, tão gordas como suas contas bancárias, ou de seus maridos, ou dos dois, Deus o sabe. O carregador mais solicitado da feira é o Mundinho. Mundinho é um afro descendente de porte elegante. O rapaz nasceu e se criou em Laranjeiras, mas, sem estudo, e sem recursos, foi para o canavial, logo em seguida, comprou um carrinho de mão e foi fazer ‘carrego’ em Parangaba. O rapaz fez uma conta muito simples. Um carrego simples custa cinco reais, um mais pesado, ou mais distante chega a dez reais. Se fizer 10, 20 carregos por feira mais descarregar e carregar os caminhões, eu faço algum dinheiro, e depois, tenho a semana toda para fazer outros bicos. Mundinho se profissionalizou no frete de feira e se tornou no mais solicitado. Mundinho trabalhava sem camisa e de bermudas. Seu corpo era atlético, podia-se ver toda a anatomia do sistema muscular humano. As mulheres adoravam o serviço de Mundinho; naquela feira, na hora da confusão, apareceu o momento que dona Valterlene esperava ansiosa a mais de mês. - Mundinho leve minhas coisas! Havia poucas pessoas do lado de dentro da feira. Assim, quase ninguém viu Mundinho e dona Valterlene, a galega mais volumosa da cidade. Parangaba, como as demais cidades do agreste de Sergipe teve no século XVII a influência holandesa. As marcas da passagem do povo do Norte da Europa estavam estampadas no fenótipo de muitos munícipes da terra de São João Batista. Valterlene era uma prova inconteste da história. Uma mulher de tipo e de beleza muito cobiçável. Seus cabelos ruivos mais os seus olhos verdes deixavam qualquer um de queixo caído, ou como dizia o finado Antenor, que Deus o tenha na pátria celestial: “de espada na mão”. - Pois, não, dona Valterlene! O rapaz posicionou seu carrinho para colocar as coisas dentro; a senhora o ajudava e foi nesse instante que os dois se olharam. O rapaz a olhava como que visse um lombo de carne de boi de primeira cozido no molho madeira, e ela o via como um Anjo da Luz caído em suas mãos. No percurso, a senhora manteve-se a certa distancia do moço. “Valterlene, minha filha a aparência e a discrição são tudo para uma dama”. “Sim, mamãe”. A menina de oitos anos aprendeu a sabedoria das senhoras aos pés de sua amada genitora. “Nunca dê pistas de seus segredos, uma verdadeira dama, sempre se mantêm distante de falatórios”. “Sim, mamãe”. A casa de Valterlene distava uma distância razoável da feira, por isso, a viagem seria de uns vinte minutos. Para Valterlene seriam minutos críticos. A galega tinha seu coração acelerado, mas, Mundinho não; a galega tinha seus olhos atentos a todos e a tudo, especialmente, a dona Firmina, a velha da conversa, mas, Mundinho não; a bem de toda a verdade, Mundinho era apenas um carregador de feira; mas a Galega Valterlene tinha uma reputação a preservar. “Valterlene, lembre-se todos os dias de quem você é filha”. “Sim, mamãe”. “Valterlene, seu pai é filho de um dos homens mais ilustres do Povoado Ribeira, ele comia na casa do prefeito”. “Sim, mamãe”. Valterlene casou com um comerciante de agrotóxicos e foi morar em Aracaju. O tempo vivido na cidade grande não foi muito bom, ademais, seu amado esposo teve um aneurisma e faleceu. Valterlene vendeu o negócio para o sócio de seu amado e voltou para sua terra, desde então, a galega de Parangaba mora só, e nos finais de semana frequenta a Igreja Cristo Nova Esperança do Pastor Inácio. Os dois estavam chegando ao destino. Dona Firmina seguindo a tradição montava plantão na minúscula área de sua casa. Ela viu e ouviu quando Valterlene pediu ao rapaz para entrar: “Mundinho, tu podes me ajudar a por tudo para dentro?” “Oxente, dona, num tem problema!” O rapaz viu aquilo como algo não usual, mas, não era motivo para saliências. Sua experiência lhe dizia que esmola demais o cego desconfia. Os dois entraram na residência; dona Firmina se ergue de sua cadeira de ferro e entra para gretar melhor de sua janela da sala da frente que possui um buraquinho estratégico: “Vou ficar de olho nos dois, aí, tem treita!” A velha Firmina era uma senhora viúva que morava com o neto Bartolomeu. Firmina aos 77 anos não fazia outra coisa, exceto, passar sua vida de aposentada observando a tudo que se passa na rua ou onde ela pode ver. A solidão, a falta de seus amados e a preocupação com o rapaz que criava a fez uma pessoa presa ao seu mundo, a única janela para fora que ela tinha era a dita janela da frente; com um banquinho de madeira, e todas as horas livres a idosa podia olhar o mundo externo e ver televisão ao mesmo tempo. “Mundinho entrou e até agora nada dele sair, aí, tem coisa estranha; oh, Bartolomeu, vá correndo chamar a comadre Nadir”. O rapaz foi num raio e voltou como um trovão: “Ela disse que vem já!” “Psiu, deixa de zoada moleque, num tá vendo que estou ocupada!” “Mas, ocupada com que, vó?” “Fique lá fora e veja se escuta o que Valterlene e Mundinho estão dizendo!” “Onde eles estão?” “Dentro de casa abestado, dentro de casa!” “Tá bom, vou ver!” O rapaz pôs o ouvido na parede que dava para um terreno baldio. A parede era a parede da cozinha de Valterlene, todavia, o rapaz nada ouviu. “Eles estão falando baixo, vó” “Oh, criatura de Deus, onde já se viu se ouvir a conversa dos outros desta forma, és retardo é?” “Entre de fininho no hall e veja o que escuta; coisa burra!” “Pera, aí, né vó; agora a senhora passou dos limites” “Caminha menino, faça o que estou mandando!” Bartolomeu abriu o portão de ferro da casa, entrou no hall de mansinho, e se pôs a ouvir a conversa dos dois. - Mundinho, me explica aí essa vida que vives! Valterlene deu um sorriso. O rapaz envergonhado lhe responde como pode. - Vida como? Trabalhar na feira é a única coisa que se tem aqui. Em Parangaba, ou tu trabalhas para a prefeitura, na roça e no canavial, ou na feira, num tem mais nada. - Você deve levar cada cantada! O rapaz baixou a cabeça e nada disse em retorno. - Tá com vergonha de dizer! Vamos Mundinho abra o jogo! Valterlene estava perdendo o rumo que sua genitora lhe ensinara. - Não dona Valterlene, as mulheres daqui nunca me assediaram. Meu trabalho é como qualquer um. - Qualquer um como, Mundinho! Onde se trabalha nu da cintura pra cima? Elas quando veem esse muque ficam doidas! O rapaz deixou as coisas na cozinha e caminhou na direção da porta da frente quando escuta novamente a voz de sua contratante: “Venha tomar um cafezinho, está bem quentinho e bem pretinho”. Mundinho tentou recusar o convite, mas, a dama foi mais insistente: “Senta ai moço, deixa que te sirvo”. O delegado Peixoto chegou e encontrou a confusão feita na feira. A moça livre Cosminha discutia com a religiosa enquanto o povo dizia o que pensava sobre o ocorrido. - Eu num acho que as meninas fizeram alguma coisa errada. Afinal, diversão é diversão. Disse o moço Ptolomeu, vendedor de nós moscada. - Eu discordo. Disse Márcio, um cidadão de trinta anos vendedor de vassouras de palha. - Eu acho que Peixoto vai enquadrar as duas por tumultuarem a feira. Disse seu Vasconcelos, um vendedor de baldes, bacias e artigos de ferragens. - Eu num quero saber das opiniões de vocês. Disse o delegado Peixoto. A autoridade policial estava acompanhada de seus dois homens de confiança: O primeiro era o soldado Cruz, e o segundo era Leu, o cabo. Cruz era um moço de 35 anos, um rapaz não muito inteligente, contudo, concursado. Leu era um senhor de meia idade que entrou para policia quando tinha 23 anos. Naquela época, por meio de um trem da alegria e da influencia política entrou para as forças policiais. Na feira, todo mundo tem alguma coisa para dizer, seja verdade ou mentira, mito ou realidade, fato é, na feira de Parangaba o povo diz o que pensa ou acha ser justo: - Mas, sua pessoa num pode fazer assim. É abuso de autoridade! Externou seu ponto de vista, Rodrigo das maçãs. - Mas, você num é besta para me dizer o que eu devo fazer num é rapaz. O humilde vendedor de maçãs travou os beiços e se amuou. Então continuou Peixoto. - Bem, vamos ouvir as partes. A senhora religiosa tomou a palavra e contou sua queixa. O mesmo fez Cosminha. O delegado Peixoto tentou apaziguar as coisas, mas as duas mulheres, resistiram segundo suas convicções. “Eu quero que a lei acabe esta farra devassa!” Bradou a religiosa. “Não senhor, nós fazemos isso todas as feiras e nunca ninguém reclamou, e além do mais quem vem para cá é maior de idade, e aqui num tem mulher de família”. O cabo Leu e o soldado Cruz como por instinto, concordaram com a prostituta. A religiosa não gostou e explodiu de fúria na frente de todos: “Pois, eu vou para a imprensa de Itabaiana, e vou contar o que se passe nesta feira”. “É muita falta de vergonha!” Apoiaram a religiosa suas amigas e simpatizantes. Ao ouvir a palavra “imprensa”, Peixoto lembrou-se das rádios de Itabaiana; o homem corou as maças de seu rosto e olhou para seus companheiros. Leu franziu a testa; Cruz fez o sinal sagrado dos cristãos e depois beijou a mão. “O que é isso macho?” “Tá doido?” Exclamou o delegado. “Vamos todos para a delegacia, então”. Encerrou o assunto, pelo menos no momento, a autoridade da lei. Enquanto isso, uma ventania forte e repentina desceu a serra de Itabaiana assobiando sobre Parangaba, e com ela nuvens negras cobriram o céu. Valterlene e Mundinho faziam amor no quarto, quando a porta da frente abriu com a força dos ventos e com ele Firmina e seu neto entram na sala da casa. “Oi!” “Tem gente?” “Mulher, eu vi a porta estufar para dentro deste jeito, e vim ver se tinha alguém em casa”. O casal se pôs quieto, cada um segurando sua respiração. A idosa prosseguiu. “Oi, ô de casa, tem gente?” Alguns minutos depois, a idosa se deu por satisfeita, virou-se para seu mancebo neto e lhe disse: “É meu filho, num tem gente não, vamos fechar a porta, quem sabe Valterlene ainda não chegou da feira”. O menino concordou com sua vó acrescentando que ela chegaria com Mundinho. O vento não dava tréguas. Nuvens escuras cobriram os céus de Parangaba. Nas barracas da feira não se comentava outra coisa: “Mundinho torou a galega Valterlene”. As opiniões eram diversas, cada um segundo seu mundo, dizia o que achava ser o certo: - Eu acho que Valterlene e Mundinho tem todo o direito de serem felizes. - Pois eu discordo. Uma mulher de família com um desqualificado daquele. - Mulher, deixa de ser preconceituosa; só porque o rapaz é negro! - Sabe de uma coisa, as coisas nem sempre são o que parecem. Isto é coisa dele, o demo. - Bem que eu desconfiava; quantas vezes vi Valterlene pelas bandas da casa de pai Maneco. - O Mundinho deve ter parte com o chifrudo, pois, uma mulher destes tipo num é coisa pra todo mundo não. - Na atualidade, a relações sociais são fluídas e multifacetadas. As pessoas comentavam o ocorrido e não olhavam para cima. O forro do teto da delegacia gemia com a força eólica e as nuvens se tornavam mais densas e escuras. As duas mulheres e suas acompanhantes davam seu depoimento e enquanto isso, na feira, Clodoaldo e sua mulher vendiam verduras e frutas para seus últimos clientes. O casal mal olhava para o outro; aqueles seriam os últimos minutos de mais uma feira. Nem o vento, nem as nuvens escuras desanimaram o povo; a feira marchava adiante. Os papéis voavam do chão flutuando livremente no ar, e depois caiam sobre cascas de cana, restos de quiabos, folhas de cenoura, alface, pedaços disso e daquilo. O toldo instalado sobre as barracas tremia como que quisesse dançar com a irmã ventania. Sempre foi assim, a feira resiste a tudo, pois, ela é como a alma do povo nordestino. O Brasil herdou um povo que a nada se verga. “Clodoaldo, ponha as cebolas no saco enquanto eu arrumo os tomates na caixa”. O casal Bispo pôs as coisas no caminhão e junto com os demais feirantes seguiram estrada para José Freire. A feira ficou atrás, mas, em Parangaba, o povo percebeu algo estranho no céu. As nuvens formaram um anel e dentro dele um olho enorme se formou. O olho era alaranjado, da cor de tangerina, e as nuvens variavam as cores, ora eram cinza escuro ou ora eram cinza abacate com tons de violeta. Os ventos ficaram mais agressivos e o povo temeu: “É o fim do mundo!” Gritou, o irmão Farias e acrescentou diminuindo o tom de voz: “É a volta de Jesus”. “Que nada de volta de ninguém, vai ter é um temporal”. Disse seu Tiago que comia um pedaço de melancia e cuspia os caroços no chão. No caminhão, o casal Bispo, também percebeu o céu. Clodoaldo olhou sua mulher nos olhos, apertou sua mão direita e lhe disse: “Desde o primeiro dia que te conheci, eu vi que viveríamos o melhor do mundo, te adoro”. Dona Bispo sentiu seu coração acelerar com a voz do esposo; lembrou-se do sonho que tivera antes, e pensou consigo: “Meu Deus que tempo é esse?”. Os trovões ribombaram, o céu tremeu e a feira foi para dentro do mercado de carne. Os raios rasgavam os céus desde a serra até o vale atrás da cidade. O povo ouviu sobre os toldos e telhas do mercado de carne o som de água, era como se fosse uma chuva fina, uma garoa. Tomé, um carregador de dezesseis anos olha para o céu para ver o que era; uma gota cai em seu braço esquerdo, era uma minúscula gota da chuva que principiava cair sobre a cidade. O rapaz traz o braço ao nariz, cheira e grita espantado: “É merda!” O olho, no alto do céu contraiu seus anéis que formavam um corpo com três circunferências concêntricas. Os trovões apavoram a cidade do pé da serra e certamente toda a Itabaiana via tudo. O tempo fechou por completo não havia um lugar no céu que não fosse de cor cinza escuro, as nuvens formavam uma massa grossa estacionada sobre os municípios daquela região ou, talvez do estado. Os cachorros que frequentam a feira se esconderam debaixo das barracas; os animais latiam e uivavam como se fosse noite de lua cheia. Aos poucos, o silencio foi se instalando no lugar; aquelas pessoas antes alegres e descontraídas tornaram-se caladas e pensativas. A reflexão sobre o que estava ocorrendo tomou conta das mentes. Alguns riam baixinho, outros choramingavam como que sentissem que havia algo estranho. Os céus ribombaram sete vezes, e o som dos trovões cresceu sete vezes. O povo gritou de medo e chamou por Deus. Seu Marquinho prometeu a Deus que nunca mais mentiria para sua mulher. Carlos prometeu que ia parar de beber se o mundo não acabasse; Netinha repetiu sete vezes o Pai-Nosso, e para cada um três Ave-marias. Clodoaldo e sua mulher viram quando o céu se enrugou em torno do olho e depois se ouviu um estrondo que fez as pedras da serra caírem; depois do estrondo caiu do céu uma chuva caudalosa; era uma substância excrescente. “Mãe, é bosta!” “Está chovendo fezes do céu”. Disse o Padre Gil para sua paroquiana Margarida. A chuva caía sobre a terra; as pessoas se esquivavam do excremento humano, contudo, com o tempo, as ruas, as avenidas, as valas e tetos de casas e prédios estavam cobertos de fezes. O cheiro subiu; com isso as pessoas reclamaram. Para nada serviram as queixas; montanhas de fezes se acumulavam em todo canto, e os céus não davam tréguas. Subitamente, raios caíram em pontos específicos de toda a região; muitas pessoas foram abduzidas. Entre elas estavam: Clodoaldo e sua amada, Mundinho e sua galega, e o delegado com suas meninas encrenqueiras. Essas pessoas se viram a navegar num mar de excrementos humanos. O mar era grande, não se podia ver uma margem, ou uma ilha; mas, havia uma corrente que os levava para algum lugar: “Vamos nadar meu amor, vamos seguir a corrente”. Dizia Clodoaldo, com voz cansada, a sua amada. As demais pessoas faziam o mesmo, no entanto, todas estavam quietas e seus olhos olhavam para frente. O cheiro das águas, no princípio foi insuportável, depois de algumas horas, as pessoas notaram que não mais incomodava tanto. A densidade do líquido excrescente era muito grande. Era quase impossível alguém afogar-se, exceto se o cansaço a tomasse. Na verdade, eles estavam atolados no excremento e este os arrastava para algum lugar. - Sejamos racionais! Iniciou uma prosa o delegado Peixoto. - Se o liquido esta correndo, então ele deve está indo para um lugar mais baixo. - Com certeza! Concordou Mundinho e com ele Valterlene. - Sim! Todos foram unânimes. - Vamos evitar fazer esforço e deixar a natureza agir. Concluiu Peixoto. O mar de excremento tinha vida própria. Em alguns lugares, a corrente diminuí; a marcha das pessoas fica mais lenta. Nesses pontos surgiam seres estranhos; eram figuras humanas cuja alma havia sido adormecida. Essas pessoas diziam as mesmas coisas; repetiam as mesmas palavras até a exaustão. “Faça a sua parte”. “Faça a diferença”. “O mundo será melhor”. “Tente, invente, faça um futuro diferente”. “Somos todos iguais”. “Não polua a natureza”. Havia aqueles que sugavam a alma das outras pessoas e depois colocavam um fantasma dentro. Quem passasse por isso, teria sua consciência roubada. Todas as suas memorias e desejos seriam os do seu algoz. Depois disso, essas pessoas tentavam convencer as demais de que seu mundo é melhor: “Nosso mundo é bom, nosso Deus é o verdadeiro, nossa fé é legitima”. No mar de excrementos não houve outra opção para o grupo, exceto, se unir. A religiosa e a prostituta se abraçaram e as duas rezaram a Deus. O mundo foi coberto com seus próprios excrementos e com ele a feira de Parangaba. “Vó, estão dizendo na rua que nós estamos atolados na merda”. Dona Firmina coçou os olhos e depois, pois, as mãos na boca e por entre os dedos a idosa disse para seu neto: “Disso eu já sabia há muito”. O grupo avistou ao longe uma luz forte. Parecia que a viagem estava chegando ao fim. Aos poucos, na linha do horizonte, se formava a imagem de uma baia e nela uma praia seca e ensolarada. Atrás, ao fundo, na areia da praia havia sombreiros e embaixo deles pessoas bonitas e bem vestidas a conversar, a beber e a comer. Essas pessoas diziam as mesmas coisas; cada uma tinha seu ponto de vista, no entanto, o mesmo circulava em torno de uma opinião geral: “Está tudo bem e caminha de acordo com o sistema das coisas”. As pessoas da praia repetiam palavras chaves umas para as outras: “O sucesso é uma questão de escolha”. “Todos têm direitos iguais”. “Há oportunidades iguais para todos”. Com suas mentes em harmonia com o sentimento coletivo; o povo da praia não via outro mundo, apenas o deles. Mundinho comentou com o grupo que estava com muita fome e tão logo pusesse os pés na areia ia tirar a barriga da miséria. O delegado Peixoto não esperava a hora de tomar um banho de água limpa. O casal bispo se manteve calado para ver os fatos. Dona Pureza e Cosminha, de mãos dadas, não paravam de rezar. Finalmente, o grupo está em terra firme novamente. As pessoas que estavam na areia não lhes dava atenção, parecia que não lhes via. Cada um conversava com seu amigo e amiga as coisas de todo dia ou sobre negócios ou política. Em momento algum, as pessoas comentavam sobre o ocorrido em Parangaba. Quando algum problema era levantado por alguém, era dito que em quinze dias a pessoa teria a resposta ou o problema resolvido. Quando alguém chamava seu próximo de mau caráter, a pessoa se defendia dizendo com face inocente e voz contunde: “Sou inocente, minha vida é um livro aberto”. O grupo andou por entre os frequentadores daquela praia. Não acharam suas comidas costumeiras, mas, o que comeram lhes aumentou o apetite. A cozinha daquela gente era aperiente. Ninguém conseguia parar de comer e isso lhes obrigavam a defecar e vomitar várias vezes no mesmo dia. Quando alguém queria se aliviar, a praia era o lugar certo. Todas as fezes e vômitos daquela população escorriam para praia, criando, desta forma, um oceano de fezes e dejetos de todos os tipos. “Vamos fazer alguma coisa para que essa gente note que estamos aqui”. Disse Clodoaldo para sua esposa. A questão foi posta em debate. - Por que não chamarmos a atenção deles? - Mas como? - Sei não. Dona Pureza deu uma sugestão – Cantar músicas religiosas. O grupo fez assim: Enquanto Pureza cantava, eles batiam palmas e acompanhavam. As pessoas daquela baia acompanharam a canção com muito gosto, mas, não deram atenção ao grupo. Frustrados, mas, não desanimados. O grupo se reúne novamente. - Deve ter alguma coisa que possa impactá-los. Disse Clodoaldo. - Certamente. Concordou Peixoto. - Então, digam! Disse dona Bispo. - Eu acho que eles vão nos notar se jogarmos água neles, empurrarmos alguém ou quebrarmos as cadeiras, mesas, etc. O grupo com certa reserva concordou em fazer isso, exceto dona Pureza. O grupo fez o combinado. Alguns minutos depois, as pessoas da baia começaram a falar alto: “Hoje, não se tem mais paz, a violência e o vandalismo imperam em nossa terra”. Mas, logo em seguida continuaram com o seu costume de todos dos dias. O grupo insiste em mais uma nova abordagem, agora seria Cosminha. A menina livre teria que cantar e dançar “Chupa que é de uva”. A menina fez o que sempre fez nos dias de feira em Parangaba. Cosminha levava os homens ao delírio com sua sensualidade. As pessoas da paria adoraram o show da menina, mas, havia algo errado, eles não viam a jovem pobre que se tornou mãe solteira muito cedo; era como se ela não pertencesse àquele mundo. Finalmente, o delegado Peixoto traz um plano mais agressivo: “Nos meus longos anos de profissão aprendi que o ser humano tem um ponto fraco; a isso ninguém resiste”. “E o que é delegado?” “O bolso”. Respondeu a autoridade com muita convicção. O grupo roubou as carteiras de quem pode, depois, roubaram tudo que tinha valor: Anéis, pulseiras, relógios, celulares etc. As pessoas da baia, então, conduziram uma investigação. As autoridades do lugar apareceram e trouxeram o relatório policial: “Foi o povo”. Afirmou o Capitão Bicudo. “O povo?” Admirado exclamou o secretário de segurança da baia. A resposta foi imediata. O destacamento de cinquenta soldados cercou o grupo e os puseram num barco e os deixaram em alto mar. Um soldado do destacamento disse com muita emoção: “A gente suporta tudo para proteger a sociedade num é Martins?” “Como?” “Eu digo, a gente aguenta até o fedor de bosta nesta profissão”. “Ah, isso é mesmo; no cumprimento do dever o soldado passa por tudo”. O barco era pequeno para todas as pessoas do grupo, com dificuldade e sempre trocando de lugar, pois, as pessoas trocavam de lugar a cada quinze minutos. “Num aguento mais delegado Peixoto”. “Dona Pureza, num esquenta, não; Deus vai dar um jeito”. O barco navegou por sete horas até parar e não se mover mais. “E agora Clodoaldo?” “Mulher, num sei o que dizer”. De fato, ninguém sabia de nada. Suas vidas estavam nas mãos do todo poderoso. Sem comida, sem água ou garantia alguma o grupo eclético de Parangaba esperava a morte chegar. - Pera! - O que homem? - veja! - O que rapaz? - Olha! - Onde, macho? - Ali! O mar formava um redemoinho; ele crescia e ficava forte. “Ah, meu Deus, em tuas mãos entrego meu espírito”. Disse dona Pureza com muita sinceridade. O redemoinho foi se aproximando. As mulheres gritavam e se abraçavam umas as outras e os homens faziam o mesmo. O barco foi engolido pelo mar de excremento. O delegado e suas meninas despertam na delegacia. Apavorados olham para si e estão limpos, não havia mais fedor de fezes ou marca de nada. Dona Pureza e Cosminha se entendem finalmente. As diferenças foram postas de lado, e o delegado deu um jeitinho para o boletim de ocorrência não ser registrado. Mundinho volta para a feira. Os caminhões sentiam sua falta. O povo gritava: “Onde está Mundinho?” “Está na hora”. As pessoas faziam o de sempre. “Carregar os caminhões para voltarem para casa”. Parangaba era a mesma cidade de todos os dias - Um pedaço de Sergipe cravado em ouro – Um lugar de sonhos, esperança e realizações. Valterlene acorda em casa. A moça passa a mão nos lençóis da cama e suspira a palavra “Mundinho”. Clodoaldo e sua amada despertam ao chegarem a José Freire. - Mulher, tu dormistes como eu? - Sim, tive um sonho estranho, com muita merda. - Eu também. Vou jogar no bicho. Sonhar com merda é bom. - Meu amor mais uma feira. - É, graças a Deus, mais uma feira. FIM

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